sábado, 30 de setembro de 2023

ÂNSIA DE LIBERDADE

 

Tenho para mim que os gatos - aí incluída a Cleonice - não têm donos, apenas cuidadores. Os cães, ao contrário, são de um servilismo, de uma subserviência quase abjeta, tão dependentes são do bicho homem. Estão sempre à cata de aprovação, de carinho, de atenção. Gatos, não, estão pouco se lixando para a carência afetiva de seus cuidadores. Sinceramente falando, além da elegância de movimentos, o que mais admiro nos animais da espécie Felis catus é sua independência.

 

Já cachorro é um bicho muito carente, sempre pronto a lamber quem os acaricia, sempre pronto a reconhecer a liderança e autoridade dos humanos, pouco importando se moram em mansões ou se dormem nas calçadas em cima de um cobertor ou colchão velho.

 

Por isso, para mim sinônimo de liberdade e independência é o gato. Mas há situações em que fico tentado a acreditar que o espírito de liberdade dos gatos talvez tenha afetado, tenha se incorporado em alguns membros da família canis lúpus familiaris.

 

Por que estou escrevendo esta gororoba? Para registrar o último episódio conhecido da "saga" de um animalzinho que fez meu coração bater diferente. Um cachorrinho frágil, inseguro e muito bonitinho, que mexeu com a minha cabeça ao ponto de dedicar a ele os posts “Meu Coração É Do Tamanho De Um Cachorro”, “Ele Voltou” e “Precisando De Banho”. Pois bem, este texto agora é o ponto final, a pá de cal nessa história.

 

Que termina assim: Apesar da casinha de plástico e vasilhas de água e comida continuarem perto da entrada do prédio vazio onde o cãozinho escolheu se abrigar, eu não mais o via. Todos os dias, passando em frente ao imóvel vazio, instintivamente olhava para aquele ponto que algum vigia escolheu para que ele se acomodasse. Mas, cachorrinho que é bom mesmo, nem sinal.

 

Um dia a casinha e as vasilhas também sumiram. O raciocínio lógico foi pensar que o vigilante que o acolheu e dele tratou o tivesse levado para casa. OK! Hoje, entretanto, bem cedinho, ao passar pela ruazinha para ir à padaria, parei o carro para pedir notícias do cãozinho ao vigia que trancava o portão. E a notícia que recebi foi esta:

 

- não era um cachorrinho, era uma cadelinha que virou o xodó de todos os guardas que se revezam para fazer a vigilância do imóvel vazio;

- tinha realmente medo de carros;

- estava grávida e teve um filhotinho ali mesmo;

- depois disso foi castrada;

- o filhotinho foi dado para adoção;

- um dia ela desapareceu definitivamente, sem que ninguém saiba o que aconteceu.

 

Foi aí que eu me lembrei dos gatos. Essa cadelinha era uma senhorinha de aparência ajuizada, não aparentava ser adepta da vida loca que aqueles animais levam em suas andanças noturnas pelos telhados das casas. Mãe zelosa e aflita, talvez tenha saído à procura do filhote retirado de sua proteção. Pode ser... Entretanto, talvez a realidade é que abrigue dentro de si uma permanente e "felina" ânsia de liberdade.



EU NÃO QUIS SER MINISTRO DA FAZENDA

Algum tempo atrás, quando ainda trabalhava, recebi um e-mail que continha no final, depois da identificação do remetente, uma frase dramática que era mais ou menos assim: “nós somos o resultado de nossas escolhas”. Lembro-me de que fiquei muito impressionado e até procurei memorizá-la. O único defeito é que só vim a conhecê-la já perto de me aposentar. Mas, se você pensar um pouco, verá que ela é verdadeira.

Ao longo da vida, sempre fazemos escolhas, lógico. A maioria é de pouca importância ou influência. Algumas, entretanto, são tão fundamentais que mudam a direção de toda uma vida, mais ou menos como o efeito produzido em um feixe de luz, que se encurva ao passar próximo de um corpo celeste de grande massa (essa comparação foi feita só para impressionar e encher o saco). 

Quando são boas, ótimo; o problema surge quando são idiotas, ou melhor, quando somos idiotas demais. Essa xaropada foi só para introduzir um caso, uma lembrança de um fato rigorosamente verídico que aconteceu comigo, relacionado à escolha de minha profissão.

A história é a seguinte: quando chegou a época de prestar vestibular, matriculei-me em um cursinho que era muito, muito bom. A minha intenção era fazer engenharia, pois meu irmão e dois primos já estavam fazendo esse curso. Além disso, existia ainda um tio que era engenheiro civil. Por conta dessa influência, o maria-vai-com-as-outras aqui começou a se preparar para o exame que aconteceria só no final do ano. E tome física, química, geometria descritiva, plana e espacial, álgebra, desenho geométrico e sei lá mais o quê.

Ao voltar das férias de julho, fomos surpreendidos com a notícia da unificação do vestibular, feita pela UFMG. Isso significava que todo mundo faria as provas no mesmo dia e que todos fariam prova de todas as matérias do ensino médio; ou seja, além das matérias já mencionadas, teríamos que estudar português, biologia, história, geografia e inglês ou francês. Em compensação, foram excluídas as provas de desenho geométrico e a temida prova oral. Beleza. Sinceramente, as aulas ficaram bem mais divertidas com a mudança. Gostei principalmente de biologia e português. Então, como prova de minha antiguidade, fica claro que prestei o primeiro vestibular unificado da história da UFMG, com oito provas (uma por dia) realizadas no Mineirão.

O problema surgiu quando se iniciou o período de inscrição. Os candidatos eram obrigados a ir à reitoria, localizada no campus da UFMG (longe pra caramba), para pegar uma ficha de inscrição, pagar taxas e depois voltar com a ficha já preenchida. Até aí tudo normal. A questão é que essa ficha precisava ser preenchida à mão, com letra de forma, ou datilografada.

Antes de continuar, preciso voltar a um momento anterior ao período das inscrições. Como o vestibular havia sido unificado e poderia optar por qualquer um dos cursos oferecidos, fiquei indeciso na hora de escolher aquele que pretendia fazer. Minha mãe sugeriu que eu fizesse medicina (talvez devesse tê-la escutado), mas recusei no ato. As opções pré-selecionadas por mim foram engenharia, arquitetura, economia, administração de empresas e psicologia. Qual dessas cinco opções seria a mais indicada?

Foi aí que o bicho pegou e a roda do destino começou a se movimentar. De cara, descartei arquitetura, pois sentia não ter a criatividade necessária para ser um bom profissional. Essa foi a única escolha baseada apenas no bom senso. Depois, foi a vez de riscar psicologia, pois (olha a merda começando a acontecer) como já estava com a cabeça meio dançada acreditei que talvez não fosse uma boa mexer ainda mais com meu cérebro (sem comentários).

Restavam três opções e a próxima a ser detonada foi administração. A explicação é patética e digna de pena, mas verdadeira: eu acreditava que o administrador deveria necessariamente ser dono de empresa ou filho do dono de uma!!!!!!! (Eu não era muito ignorante, eu era mais que isso, eu era retardado mental para pensar uma idiotice dessas!)

Sobravam, portanto, engenharia e economia. E foi aí que chegou o momento de preencher a ficha. Meu pai tinha uma máquina de escrever e o boçal aqui, para não escrever com letra de forma, colocou a ficha na máquina. Comecei a “catar milho”, datilografando com um dedo apenas. Estava indo tudo bem até chegar ao campo onde precisava indicar o curso pretendido.

Comecei lentamente a digitar “ENG”... e parei. Fiquei puto com essa escolha, uma escolha que já havia feito na infância graças à influência de meu tio. Eu queria ser igual a ele e “projetar” casas (engenheiro não projeta casas, pois isso é atribuição de arquiteto). Naquele instante, resolvi que queria mesmo era estudar economia (que eu nem sabia exatamente o que era). Peguei uma daquelas borrachas de duas cores e tentei apagar as letras “NG”, mas o papel, que era uma espécie de cartolina, começou a levantar aquela “penugem” de folha rasurada. Mas no modelo estava impressa essa advertência: “esta ficha não pode ser rasurada”. 

Fiquei alguns instantes olhando a filha da puta daquela ficha – que ficaria rasurada se eu teimasse em continuar a atacá-la com a borracha. Se isso acontecesse, eu precisaria voltar à reitoria para pegar outra ficha. Mas, sabe como é, a reitoria era longe, eu precisaria pegar dois ônibus, gastaria muito tempo, ficaria de saco cheio, etc., etc. Então tomei uma das grandes decisões da minha vida, uma escolha que determinaria meu futuro profissional e boa parte da minha vida como um todo: – "quer saber de uma coisa? Foda-se, fica engenharia mesmo!” 

Com o bom senso que eu demonstrei ter, se tivesse cursado economia poderia até, quem sabe, ter virado um ministro da fazenda de viés heterodoxo de algum governo populista (duh!), mas acabei só engenheiro mesmo. 

Essa história apenas comprova que existem escolhas tão decisivas para o futuro de uma pessoa, que precisam ser muito bem refletidas, calmamente estudadas, pesados todos os prós e os contras antes da decisão final. Mais ou menos assim como eu fiz...

(19/01/2015)


sexta-feira, 29 de setembro de 2023

DOAÇÃO DE EMOÇÕES

No dia 27 de setembro é celebrado o Dia Nacional da Doação de Órgãos. Considero a doação de órgãos o último ato de nobreza e de solidariedade que alguém poderia ter. Gostaria de doar meus órgãos! Gostaria que meus filhos concordassem com esse meu desejo. Quais órgãos poderiam ser doados? Rins, coração, pulmão, pâncreas, fígado e córneas?
 
Creio que nem todos poderiam ser doados, como é o caso de meu fígado: apesar de nunca ter sobrecarregado esse órgão com a ingestão de tonéis e mais tonéis de cerveja ao longo da vida, fiz alguma coisa parecida ao consumir leite com achocolatado em quantidade tão alta que fez um ex-colega perguntar se eu tinha algum tipo de comércio ao me flagrar com 120 litros de leite e seis quilos de toddy em um carrinho de supermercado. Fiquei um pouco constrangido ao dizer que aquele era o consumo previsto para um mês. Resultado: esteatose hepática.
 
Mas os outros órgãos seriam uma boa doação? Uma doação útil para quem receber uma parte de mim? Sou idoso, tenho setenta e três mal/bem vividos anos e temperamento um pouco romântico e sonhador. Por isso, pergunto mais uma vez: meus órgãos seriam realmente uma boa doação?
 
Meu coração, por exemplo, funcionaria bem no peito de outra pessoa depois de ter se sobressaltado tantas vezes, de ter quase explodido pela expectativa daquele primeiro encontro? Ou de sempre bater mais acelerado movido ora pelo medo, ora pelo ódio ou paixão?
 
E os pulmões, ainda seriam úteis depois de tantos suspiros  de alívio, decepção, tristeza ou esperança pela vida afora? Mas, principalmente, já instaladas nos olhos de alguém, as córneas se iluminariam ao cruzar com o olhar de alguma paixão antiga e nunca totalmente esquecida?
 
Não, acho que não, essa memória, essas emoções nunca serão transplantadas para ninguém! 

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

CULTURA MUITO INÚTIL

Muitos anos atrás, eu ganhei um livro sensacional, cujo título era “O Livro dos Fatos”. Eram páginas e mais páginas da mais pura (e deliciosa) cultura inútil, mas, se você se dispusesse a ler mais de três páginas de uma vez, dava até azia, tal era o volume e diversidade desses fatos. Meu pai era meio maluco por esse tipo de coisa (assim como eu) e encantou-se com o tal livro. Encantou-se tanto que nunca mais devolveu (o que foi depois corrigido por minha irmã). Sem stress.

Pois bem, recebi um e-mail de um amigo com umas “centas” informações absolutamente inúteis, exatamente do jeito que gosto. Algumas chamaram mais minha atenção. Por isso, mesmo não sendo capitão, peguei o gancho (vixe!) e resolvi transformar a coisa em diálogos curtos. Olhaí.

Sabia que na Grécia antiga, jogar uma maçã a uma mulher era uma proposta de casamento? Pegá-la significava aceitação.
-   É, mas se a moça não gostasse e o sujeito ficasse puto, poderia ter um bate-boca assim:
    *     Eu joguei a maçã EM você, não PARA você, sua vaca!
    *     Ah, é? Eu sempre soube que você era uma maçã podre, seu merda!


-   Tá escrito aqui que as pessoas inteligentes têm mais zinco e cobre em seu cabelo...
-   Isso é sacanagem! Se for verdade, como meus cabelos não param de cair, daqui a pouco serei classificado como retardado (pensando bem, já devo ser considerado assim por algumas pessoas).


-   Sabia que se você estiver no fundo de um poço ou embaixo de uma chaminé alta e olhar para cima, você vê estrelas, mesmo estando no meio do dia?
-   Ahã, e iria ver muitas mais se uma pedra caísse lá de cima...


-   Olha que doido: quando uma pessoa morre, a audição é o último sentido a desaparecer! E o primeiro sentido perdido é a visão.
-   Quem mediu essa merda? E pra que serve perder a audição por último? Só se for para chegar algum débil mental e sussurrar no seu ouvido: - “Você morreu, mané”!


-   Outro dia eu li que soldados em formação não podem marchar quando atravessam pontes, porque poderiam criar vibração suficiente para derrubar a ponte.
-   Ah, é? Mas pode acontecer de os soldados estarem voltando para algum lugar depois de ganhar alguma batalha ou jogo e o sargentão gritar - “Hip, hip!!” Aí a negrada responde - “Hurra!!” Nesse caso, o Clube de Engenharia já demonstrou que o tipo de vibração ocorrido não derruba pontes.


-   Essa é legal! Tudo pesa um por cento menos no equador.
-   O que me incomoda é que toda obra pública ao sul do equador fica sempre dez por cento mais cara que no hemisfério norte.


-   Essa é muuuito importante: sabia que a letra J não aparece em nenhum lugar da tabela periódica dos elementos?
-   Fala sério! Esse é um assunto em que eu preferia nem tocar, mas que a verdade seja finalmente conhecida. A elevada modéstia me fez sugerir que o elemento químico conhecido como Jotabelium, de número atômico 104,5 não fosse incluído na Tabela Periódica.

escrito em 12/12/2014

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

ANTICONSTITUCIONALISSIMAMENTE


Segundo a Wikipédia, o título deste post é a maior palavra da língua portuguesa. Um palavrão, portanto.

Em 2003 encaminhei um texto erroneamente atribuído ao Millor Fernandes – muito engraçado e cheio de palavrões – para um ex-chefe mala que, de tão pedante que era, usava linguagem escrita para falar. Em resposta ao envio despreocupado do texto de humor, começou a me provocar com perguntas sem fim, durante uns três ou mais meses. Eram e-mails quase diários, escritos em linguagem empolada, pernóstica, cheia de traças e teias de aranha. E eu respondia do mesmo jeito pedante, um pouco para mimetizá-lo, um pouco por esnobismo mesmo (fui colega do príncipe Charles, pô!). 

Como o assunto deste texto é o uso de palavrões, resolvi transcrever algumas dessas respostas (resgatadas de backups antigos) – verdadeiras pérolas de pedantismo – que dei sobre esse assunto. De lá para cá a coisa mudou. Aliás, aproveito para deixar claro que todas as coisas que escrevo hoje utilizam – por opção pessoal – uma linguagem coloquial, frequentemente mal educada e sem modos. A mim causam mais desconforto os erros de gramática que cometo do que as palavras de baixo calão que eu possa utilizar.

Assim, feitos os devidos esclarecimentos, vamos ao resgate de reflexões em estilo que a revista Veja classificaria de “pedestre”.

Não sou antropólogo, sociólogo, psicólogo ou teólogo. Longe de mim, portanto, o “logos”. Sou apenas um pobre engenheiro (cujo sufixo também se aplica a atividades mais prosaicas e carentes de uma atividade intelectual mais efervescente – ferreiro, carpinteiro, marceneiro, pedreiro e outros). Como tenho baixa autocrítica, vivo “teorizando” e “refletindo” sobre coisas que não entendo bem. No duro, no duro, sou apenas um simplório, um matuto que tenta se passar por ladino. Sobra-me atrevimento, faltam-me “engenho e arte”. (12/09/2003)

Penso que há um vigor nas palavras de baixo calão que as ditas “eufônicas” não têm. As palavras chulas “gritam”, enquanto aquelas recomendadas pelas boas maneiras apenas “sussurram” ou dizem à meia voz. Essas palavras carregam em si uma “energia potencial” muito grande, uma força expressiva bruta de tal forma, que, ao serem usadas, liberam emoção pura, quase atômica. Fico pensando que por dizerem respeito a comportamentos ou secreções (excreções?) orgânicas que a sociedade acostumou-se a esconder, condenar ou evitar – por puramente animais e instintivos (longe, portanto, da razão) – acabam funcionando como catarse. Essa força explosiva que carregam quando usadas agressivamente, acaba sendo preservada mesmo quando utilizadas de forma amistosa ou ironicamente. Acho que é por aí. (12/09/2003)
           
Por morarmos na rua principal de acesso e saída do bairro, por onde passavam carros, ônibus e bondes, eu e meu irmão permanecemos muito tempo presos em casa, até quase o final da infância, pois não podíamos sair sem a companhia de adultos nem brincar nos campos de futebol de várzea próximos de nossa casa, tal como fazia a molecada da vizinhança. Um dia, quando meu irmão já estava autorizado a sair sozinho pelas proximidades, fui com ele a algum lugar. Ao passar perto de dois meninos que discutiam, ouvimos um deles soltar um “filho da puta!”. Aquilo me mesmerizou, hipnotizou, pois era uma expressão tabu. Virei para meu irmão e disse “você viu o que o Alvinho falou? Ele disse F.P.!!!” Olha que coisa ridícula e hipócrita! Eu nem sonhava saber o significado de “puta”, mas sabia que aquilo era um palavrão. Se eu tivesse ficado calado, tudo bem, mas sempre me lembro e me impressiono com a hipocrisia e a carga de repressão sobre uma criança de sete ou oito anos contidas nesse episódio.

Devo dizer que se enganam os que acreditam que eu sou um apologista da linguagem “boca suja”. Não sou (de verdade!). Como tenho temperamento de camaleão, me expresso de acordo com o ambiente em que estou. Por exemplo, se estiver conversando com um padre, é só ora pro nobis pra lá, aleluia pra cá e amém (bazinga!). E quando converso com pessoas mais velhas que eu (o que está cada vez mais difícil de acontecer) jamais falo um palavrão, pois entendo que devo respeitar a diferença de comportamentos aprendidos em épocas distintas. É o caso de minha sogra.

Mas há outros exemplos: logo depois de formado, fui admitido em uma empresa onde trabalhavam sete irmãos do dono. Para complicar mais, esse sujeito era sobrinho de bispo, irmão de freira e pai de padre. Apesar de gente finíssima, era um mega carola. Assim, nos três anos em que trabalhei lá, fiquei sem dizer um único palavrão no horário de trabalho. Em compensação, no emprego seguinte, encontrei um ambiente barra pesada onde casos de orgias e bacanais (no popular, surubas) eram alegremente contados pelos diretores e gerentes. Resultado: destravei a língua de uma vez só (mas nunca participei das putarias). Em minha defesa, posso dizer que mesmo usando às vezes uma linguagem de deixar carroceiro orgulhoso, apenas tento não cair na profundidade rasa de muito texto que leio por aí. Xô, hipocrisia!

A título de conclusão, reservei outra “reflexão” dirigida ao antigo chefe mala.

Para mim, mesmo que não seja de bom tom, falar palavrões é uma coisa meio catártica. Funcionariam como um fio-terra, colocando-nos de novo em contato com a Mãe Natureza. Penso que as palavras “fortes” nos provocam um safanão cerebral, devolvem-nos (ainda que inconscientemente) a percepção do que efetivamente somos: animais com processos cerebrais mais evoluídos, mas animais (e, por isso, instinto puro), em última análise. Eufemisticamente, diria que os palavrões e palavras correlatas são como que “rugidos e rosnados”. (15/09/2003)

Hoje, se recebesse um e-mail de alguém com as bobagens empoladas que escrevi há mais de dez anos (claro, depois de passado o susto ao ler esse lixo), eu ficaria tentado a responder de forma cautelosa, elegante e fleumática, digitando:

– Você pode até não "arquivar", mas está deixando "a gaveta aberta". 

Escrito em 11/12/2014


segunda-feira, 25 de setembro de 2023

VEM, ASTEROIDE!

 

Já faz um tempo que eu criei a expressão “Síndrome da Divindade Adquirida” para identificar falas e comportamentos equivocados, radicais ou preconceituosos. Os portadores dessa “síndrome” são pessoas geralmente desagradáveis e ignorantes que se arvoram a ser deus, a donas da verdade – como se nos relacionamentos humanos houvesse – ou pudesse haver - só uma verdade (a deles, lógico).
 
Ao longo dos séculos a necessidade de encontrar culpados para fenômenos naturais, cataclismos, tsunamis, terremotos, fome ou epidemias sempre levou as multidões desesperadas ou enfurecidas a caçar bruxas, perseguir judeus e a condenar comportamentos que a “moral” do momento entendesse serem perniciosos, viciosos ou pecaminosos e diretamente responsáveis por qualquer tipo de tragédia que estivesse atingindo a população. E tome histeria, má fé, calúnias, mentiras, preconceitos e superstições, sentimentos na maioria das vezes ancorados em uma interpretação equivocada e literal de textos considerados sagrados e escritos há mais de 2.000 anos.
 
Em minha opinião os fundadores ou formatadores das grandes religiões eram pessoas com inteligência muito acima da média e, depois de muita meditação e reflexões sobre a essência da vida, estavam interessados apenas em passar mensagens edificantes e normas para um convívio harmonioso e fraterno entre aqueles que os seguiam. Mas a ignorância sempre atrapalha ou desvirtua as boas intenções originais. A moral, por exemplo, degenerou em moralismo. A fé pura levou à crendice e rejeição ou condenação do que ou quem era diferente do que se imaginava ser correto. A síndrome da divindade adquirida fez com que muitas pessoas se sentissem no direito de perdoar ou amaldiçoar quem estava de acordo ou contra seus preconceitos.
 
Nunca é demais lembrar que os ensinamentos originais transmitidos oralmente seriam depois registrados, escritos e retransmitidos de acordo com os preconceitos, cultura e entendimento de quem os escreveu. E se imaginarmos a imensa ignorância e desconhecimento de fenômenos naturais ou doenças que atingiam as primeiras comunidades poderemos deduzir que tudo o que fosse diferente das tradições locais e do “senso comum” representavam ou poderiam representar ameaças aos lugares onde se manifestavam.
 
Em outras palavras, a loucura ou demência, a crença em outra fé, a individualidade ou independência de pensamento e comportamentos nunca deveriam ser toleradas, mas proibidas, perseguidas ou punidas. “Você não acredita no MEU Deus? Deve ser por isso que minha cabra morreu. Será torturado ou queimado para se purificar”. (no caso dos queimados o certo seria dizer “pururuficar”). “Ah, você sente atração por alguém do mesmo sexo que o seu? Você não procria nem produz descendentes que possam ajudar a trabalhar a terra. Vai para a fogueira, seu(sua) degenerado(a)!” “Seu povo não acredita na nossa fé e seus pais crucificaram Nosso Senhor? Desgraçado, será torturado para se arrepender desses pecados!” Você é bruxa, fez pacto com o demônio e amaldiçoou nosso povo, nossas colheitas ou nossos rebanhos? Será queimada viva para pagar por seus crimes!”
 
Bom, isso é só um exercício de imaginação, mas existem preconceitos que lembram cometas, pois nunca somem definitivamente, sempre voltam a aparecer. Estava eu posto em sossego, incomodado apenas pelas dores e tristezas próprias da minha idade quando li uma notícia sobre um projeto de lei que tenta ressuscitar um tema que parecia já estar “pacificado”.
 
Eu tinha prometido a mim mesmo não falar mais de política neste blog. Por isso, apenas registrarei o que um bando de idiotas de extrema direita pretende fazer. Segundo a notícia, pretende-se votar um projeto de lei que visa proibir o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Acontece que a união estável homoafetiva é reconhecida pelo STF (Supremo Tribunal Federal) desde 2011 no Brasil! Além disso, em 2013, o Conselho Nacional da Justiça (CNJ) determinou que todos os cartórios do país realizassem casamentos homoafetivos.
 
Parece ser um comportamento comum entre os evangélicos e católicos “xiitas” a condenação do casamento gay graças à interpretação equivocada e literal dos textos bíblicos. E isso vem de longe! “No início do século IV, após se converter à fé cristã, o imperador romano Constantino decretou que a homossexualidade era antinatural, já que o sexo deveria ter por único objetivo a procriação. Ele ordenava a decapitação dos ‘infratores’". É mole?
 
E tem mais: a Peste Negra, transmitida por ratos e pulgas matou 25 milhões de pessoas na Europa no século XIV. Adivinha qual foi um dos motivos que encontraram para explicar a tragédia? “O ‘pecado’ em que viviam os homossexuais foi um dos motivos apontados para o surgimento da desgraça, que seria uma espécie de castigo divino cujas consequências todos, sem exceção, deveriam sofrer”.

Aparentemente, quanto mais radicais, fundamentalistas, sem cultura e ignorantes, mais algumas pessoas precisam acreditar no Deus cruel, punitivo e vingativo do Antigo Testamento. Por isso, é desanimador ler sobre essas barbaridades do passado e perceber seus ecos em pleno século 21 - basta ler este argumento do relator ("coincidentemente" pastor evangélico e filiado ao partido do ex-presidente) para o projeto de lei que se pretende votar: “o casamento representa uma realidade objetiva e atemporal, que tem como ponto de partida e finalidade a procriação, o que exclui a união entre pessoas do mesmo sexo”.

Obscurantismo e preconceito desse nível só me fazem pensar em uma frase que aprendi com meu filho: “A espécie humana é um equívoco da Natureza”. Mas há uma solução definitiva contida na hashtag que criei depois disso: #vemasteroide. Só assim  para acabar com esse tipo de problema!

 

AVE, ADÃO!

Outro dia ocorreu-me uma ideia para mexer com algumas pessoas com quem convivo. Como não tenho nenhum embasamento teórico para sustentar esse raciocínio, o texto a seguir serve apenas para cutucar os ateus com vara curta.

Segundo a Bíblia, o homem foi assim criado: (Gen. 1:26)Então Deus disse: 'Façamos o homem à nossa imagem e semelhança'(...)”.

Embora eu seja darwinista e ache boa parte do Antigo Testamento um amontoado de crenças, lendas e maluquices, sou tentado a concordar com a citação acima. Aliás, acho legal também o uso do plural majestático (“façamos”). Tá bom, vou me explicar antes de levar a primeira pedrada. A viagem é a seguinte:

O homo sapiens sapiens distinguiu-se dos outros animais por ter um cérebro capaz de estabelecer formas de comunicação, aprendizado e organização muito sofisticadas. Então, pense bem e tente imaginar esse pessoal exposto a todo tipo de perigo, à mercê dos fenômenos naturais e sei lá mais o quê. Se fossem como os outros animais, as únicas preocupações seriam correr de (ou atrás de), comer, dormir e se reproduzir. Mas, mesmo sem entender por que, isso não era o bastante para eles. Natural que, tendo os atributos cerebrais necessários, começassem a olhar o céu de forma inquisitiva, a tentar antecipar-se aos perigos que sempre estavam por perto (feras, doenças, raios, enchentes, etc.). Alguma explicação devia existir para toda essa complexidade!

Eu acredito que aí é que entrou o conceito da divindade, ou melhor, a necessidade da divindade. Só um ser superior poderia explicar a existência de tantos fenômenos não compreendidos.

Isso está parecendo papo de ateu, mas não é (eu - ainda - sou católico). Em minha opinião, à medida que a espécie humana ia absorvendo experiências e conhecimentos, mais necessária tornava-se a adoração de um (ou mais de um) deus que, afinal, regularia aquela baderna toda.

Por conta disso, na infância da humanidade (volto a dizer que essa é minha opinião) os maiores avanços tecnológicos, as expressões artísticas mais sofisticadas, as melhores normas de conduta teriam sido criadas e utilizadas para celebrar e agradar a(s) divindade(s).

Assim, sem perceber, os homens foram se moldando à imagem e à semelhança do que eles entendiam que era Deus (ou deuses), pois, quanto mais semelhantes e mais próximos da(s) divindade(s), mais a salvo de perigos e doenças poderiam estar.

Por isso, pode-se dizer que sim, os homens foram feitos à imagem e semelhança de Deus.

escrito em 05/10/2014

domingo, 24 de setembro de 2023

LADY MURPHY

Basta alguma coisa dar errado que sempre aparece alguém dizendo que foi a "Lei de Murphy". Até parece que o Eddie Murphy (não é o ator, pô!) é o braço direito do Darth Vader. 
Como ninguém conhece direito essa história (nem eu), resolvi contar aos meus 1,7 leitores a verdade. 

1ª Lei de Murphy: 
O capitão Edward A. Murphy Jr. era um engenheiro (não sei porque, mas engenheiro tem sempre a mania de dar palpite em tudo) da Força Aérea Americana que, à falta do que fazer - estava sem palavras cruzadas naquele dia - resolveu enunciar uma lei universal amparada em conceitos de probabilidade e, principalmente, desalento. Aí disse algo parecido com uma das seis opções abaixo:

-   Se existe mais de uma maneira de uma tarefa ser executada e alguma dessas maneiras resultar num desastre, certamente será a maneira escolhida por alguém para executá-la.
-   Se há duas formas de fazer alguma coisa e uma delas vai resultar em um desastre, é assim que ele vai fazer.
-   Tudo que pode dar errado dá errado.
-   Se algo pode dar errado, dará.
-   Se algo pode dar errado, dará errado da pior maneira, no pior momento e de modo a causar o maior estrago possível.
-   Se alguma coisa puder correr mal, correrá mal.

No duro mesmo, o que ele queria era homenagear sua amada esposa. Embora ele fosse americano, sua esposa era uma inglesa de nobilíssima estirpe, uma verdadeira lady. Por isso, deu ao enunciado o pomposo título de Uma Reflexão para Lady Murphy, que era o tratamento dado carinhosamente por ele à sua musa inspiradora. Infelizmente, naquele tempo, a sociedade era ainda muito machista e ele acabou por mudar o nome de sua teoria para Lei de Murphy.

2ª Lei de Murphy:
Essa lei, embora resultante de intensa reflexão, acabou ficando esquecida e não consta mesmo em nenhuma publicação digna de crédito (pessoal ou imobiliário). A bem da verdade, teria surgido de um pequeno bate-boca familiar, sendo apenas a transcrição do que disse sua esposa, Lady Murphy, carregando na ironia:

“Se não consegue nem enunciar uma Lei de forma clara e indiscutível, sempre haverá alguém para interpretar e reescrever o que foi dito por você”.

Lei de Smurf:
Depois de absorver os ensinamentos contidos nos programas do canal Animal Planet, cheguei a uma conclusão que bem poderia ser considerada uma Lei sobre o comportamento da espécie humana. Poderia até dar meu nome a essa teoria e, se assim o fizesse, seria reverenciado e aplaudido pelas futuras gerações. Mas, por grandeza de espírito, elevada modéstia e pequenez de vaidade, preferi dar a ela o nome de Lei de Smurf (ah, essa mania de trocadilhos infames!):

Se você criticar a atitude de alguém, sempre encontrará quem tente amenizar ou justificar o comportamento da pessoa criticada com fatos e argumentos que nada têm a ver com o objeto da crítica.

Corolário - de Gargamel (Alguém se lembra do desenho dos Smurfs?): 
Se você defender uma pessoa ou alguma coisa, sempre encontrará alguém disposto a atacá-la. E vice-versa.

escrito em 02/09/2014

sábado, 23 de setembro de 2023

ATA OU COSTURA?



Eu nunca me liguei em moda, mas sei que há três mundos: o mundo das pessoas normais, de carne e osso, o prêt-à-porter e a alta costura (percebeu a associação com o título idiota deste post? Pois é...). Por não entender nada desse assunto sempre achei um porre comprar roupa (pois só compro errado!). Por isso, quando vejo mulheres olhando um sapato, uma bolsa ou uma blusa, sempre tenho a impressão que estão examinando a organização das moléculas da peça ou analisando a estrutura atômica do material usado em sua confecção, tal a concentração diante de um detalhe que nem se me mostrarem eu conseguirei entender.

Se eu tivesse a infelicidade de ser obrigado a trabalhar em uma butique ou loja tipo C&A, eu tava ferrado. Até imagino um ou uma cliente dizendo – “Moço ("moço", no caso,  é só força de expressão, porque eu sou velho, pô!), que você acha dessa roupa?” A tentação seria responder – “Acho que isso é um vestido” ou – “Para mim, isso está parecendo uma calça comprida”. Resumindo, não durava um dia no emprego, pois não entendo chongas dessa área.

Entretanto, depois de assistir na TV a um reality show de estilistas, tipo Big Brother (só que em vez de bundas, silicone e tatuagens o que se vê são plumas, paetês e congêneres), fiquei assustado com a magreza das modelos que desfilam as peças criadas pelos concorrentes. Elas são magras demais! Como dizia minha mãe, “as pernas são dois cambitos, de tão finas” (por favor, não me perguntem o que são “cambitos”, pois não faço a menor ideia). Ao desfilar, algumas moças dão a impressão que vão cruzar as pernas enquanto andam! Fico até na dúvida se é proposital ou sinal de fraqueza e inanição. Observei também que os participantes heterossexuais masculinos representam não mais que 1% do total. O restante é composto de mulheres e gays.

Não me atrevo a explicar o que leva os hetero e as mulheres a escolher modelos esqueléticas. Mas acho que encontrei uma explicação para essa preferência entre os estilistas gays. A questão é que estilistas gays não entendem de mulher. O que eles entendem mesmo é de cabide, ou melhor, de mulheres-cabide para desfilar as roupas que criam. E a explicação mais plausível é bem simples: normalmente cabides ficam em armário. E os "fashionistas" em algum momento de suas vidas, saíram de dentro de um. Daí a identificação.

escrito em 17/06/2014


sexta-feira, 22 de setembro de 2023

BANHO DE LUA


Um amigo me enviou uma reportagem sobre chuveiro elétrico antigo. Comecei a responder, mas resolvi resgatar mais um pedaço de memória. Até porque, à medida que a idade avança, minha memória vai mesmo ficando aos pedaços (duh!).

Eu, meus pais, meu irmão e depois minha irmã, morávamos na casa de minha avó, pois meu pai era um sujeito falido. A casa de minha avó era bem humilde e pequena para os nove filhos que moravam lá, mais meu avô (separado), genro e netos. Então, ocupávamos um quarto de um dos barracões (edículas) que foram sendo construídos para abrigar toda essa cambada.

Naquela época, era mais fácil tomar um “banho de lua” que de chuveiro. Isso porque água no bairro era uma coisa rara, que vinha só de vez em quando. Creio que isso era um drama comum a boa parte da cidade. Lembro-me de ter ido inúmeras vezes com minha mãe e tias buscar água em uma casa em ruínas, literalmente uma tapera, que ficava um quarteirão acima. Nessa casa de imenso, arborizado e abandonado quintal, moravam duas famílias. Minha irmã tem uma lembrança muito vívida dessa época, que transcrevo a seguir, tal como recebi:

Dessa época eu me lembro bem, participei ativamente das "buscadas de água" com minha latinha de leite, na casa do Seu Durvalino (ou Dorvalino?) e da D. Maria (?). Tinha um certo receio de ir lá porque além de cachorros, uma vez vi um ganso correr atrás de uma moça e fiquei com muito medo. Tinha também um morador esquisito lá, grandão (pelo menos pra mim), manco e acho que meio perturbado; uma vez o vi através de um buraco numa parede e concluí que ele morava ali naquele lugar lúgubre e cavernoso, ou seja, deverasmente assustador. Essas cenas seguramente tiveram influências marcantes nos meus pesadelos. Lembro-me de outros moradores de lá, uma mulher escura, cega, com um montão de filhos (nove) e o marido era um louro vermelho que parecia um alemão. Ela saía sempre com uma criança no colo, uns maiorzinhos agarrados em sua saia e um dos mais velhos fazendo às vezes de condutor. A filha mais velha se chamava Lila e um desses mais velhos, talvez o segundo filho, tinha um nome que eu achava muito interessante "Morice" (não era do francês Maurice e nem "Morrice", era Morice mesmo). Coitada, acho que ela saía para pedir auxílio.

A casa, embora em ruínas, sugeria ter sido muito boa, pois tinha dois andares. Como o reboco tinha sido todo perdido, era conhecida como “a casa de tijolos”. Talvez, no início do século XX, tivesse sido a chácara de algum sujeito abastado. Mas o boato mais interessante é que teria sido a moradia de uma amante de um governador qualquer (isso serve para constatar que mesmo que o tempo passe, algumas coisas nunca mudam). Por conta disso, seria servida pela mesma água que abastecia o palácio. Se é verdade, não sei. Detalhe: morávamos no Carlos Prates, longe pra caramba do bairro Funcionários (onde fica o palácio).

O que sei é que a vizinhança inteira buscava água ali. Usava-se de tudo para buscar o preciosíssimo líquido: baldes, latões de banha, garrafões de vidro, panelas de variados tamanhos, chaleiras, o diabo a quatro. E havia fila, sempre.

Provavelmente, se confirmado o boato da amante, essa água nem devia ser computada pelo DEMAE (ou outro órgão mais antigo). Além disso, as casas não tinham hidrômetro e sim registro de pena d'água.

A pena d'água é um limitador de vazão, pois estabelece um limite máximo de entrada de água na residência. Agora, pensem bem, se quase sempre na rede pública só existia ar, como fazer para abastecer uma caixa d’água? Dureza, né? Um dia, meu avô resolveu o problema: como o tal registro ficava enterrado ou quase isso, ele simplesmente o retirou, fez uma ligação direta. Assim, quando chegava água no bairro, o reservatório da casa (na verdade, um simples tambor de 200 litros) era cheio plenamente. Mutreta, sim, mas a conta era fixa, pois não havia medição. Então...

Pois bem, além de nunca ter água na torneira, o aquecimento era feito pelo sistema fogão de lenha – serpentina. Por isso, o chuveiro era apenas uma ducha simples, já que a água viria (nunca veio) aquecida pelo calor do fogão. É até pleonasmo dizer que esse chuveiro era absolutamente inútil. Então, os banhos da minha infância eram banhos de bacia (em bacia mesmo ou em uma banheira de ferro esmaltado), os conhecidos banhos “tchecos” ou “checos” (checo, checo, checo).

Assim, não sei se pelo crônico vazio da caixa d’água ou se pela idade da tubulação de ferro, o fato é que, mesmo nas raras ocasiões em que havia água na caixa, eu nunca soube o que era tomar um banho quente de chuveiro – até meu pai tomar uma providência (não, ele não bebia cachaça): mandou fazer um artefato que ficava dependurado no chuveiro inútil. Encontrei na internet a foto abaixo, que diz tudo. A diferença é que a lata que usávamos era quadrada e tinha uma torneirinha antes da ducha.

O abastecimento diário de água só ocorreu na minha adolescência. O fogão a lenha foi demolido, as serpentinas foram retiradas e, para alegria de todos, foi instalado um chuveiro elétrico, provavelmente um Lorenzetti. E fim.


(escrito em 06/10/2014)

* * * *

RE BANHO
O título do texto acima remete a um rock antiquérrimo que fez muito sucesso no Brasil, cantado por Celly Campello. O sucesso foi tanto que alguém fez uma paródia para essa música. Quem me ensinou foi um amigo que faleceu de forma trágica.
Como uma homenagem a ele (e para que a letra não se perca) aí vão a letra original (na verdade, uma versão do original italiano) e a paródia:

Tomo um banho de lua,
Fico branca como a neve
Se o luar é meu amigo,
Censurar ninguém se atreve
É tão bom sonhar contigo,
Oh! Luar tão cândido

Sob um banho de lua,
Numa noite de esplendor
Sinto a força da magia,
Da magia do amor
É tão bom sonhar contigo,
Oh ! Luar tão cândido

Tim, tim, tim, raio de lua,
Tim, tim, tim,
Baixando vem ao mundo
Oh lua, a cândida lua vem
Não tomo banho de água fria
Porque me dá muita alergia
Água quente também não
Que faz mal ao coração
Se eu me molho eu encurto
Ah, eu sou um gajo enxuto

Faz um mês tomei um banho
Me molhei mesmo de fato
Foi o meu segundo banho!
Acabo virando pato
Se eu me molho eu encurto
Ah, eu sou um gajo enxuto

Blim, blim, blão,
Água e sabão não é nada “bão”
Prefiro uma cachaça da boa
Pura ou com limão


quinta-feira, 21 de setembro de 2023

HERBERT E PAWEL

Este texto segue a mania que eu tenho de reunir posts publicados separadamente, só para restaurar a forma e tamanho original que o texto raiz possuía antes de ser picado em pedaços. Por isso, caro leitor, gentil leitora, se já leram os textos isoladamente podem procurar alguma coisa mais interessante para fazer (e sempre haverá!).


Tive a honra de conhecer, conviver e ter como colegas na empresa onde mais gostei de trabalhar dois engenheiros que tiveram suas vidas de alguma forma transformadas pela Segunda Guerra Mundial. Herbert e Pawel. Na verdade, o nome “real” do Herbert era Herberto, já o do Pawel era Pawel mesmo - ou “Dr. Pawel”, como todos respeitosamente o tratavam.
 
 
HERBERTO (OU HERBERT)
Quem usava esse nome horroroso era um sujeito muito alto, muito magro, ali na casa dos 50 anos ou pouco mais. Era o chefe competentíssimo da seção de projetos da empresa onde trabalhei. Com ele trabalhavam cinco desenhistas e projetistas. Curiosamente, antes de começar a trabalhar na área de engenharia foi motorista de caminhão, atividade que lhe rendeu a admiração dos motoristas da empresa, pela habilidade de manobrar e estacionar sua Chevrolet C14 sem olhar para trás, só no espelho retrovisor.
 
Sua grande experiência com projetos e cálculo estrutural foi adquirida primeiro como desenhista, depois como projetista e finalmente como calculista de um escritório de engenharia. Mas tudo isso sem ser engenheiro, pois se graduou já velho em engenharia. E o motivo, segundo ele, foi para dar exemplo a um filho que não queria nada com os estudos. Para provar que não havia idade para fazer um curso de terceiro grau, prestou vestibular, foi aprovado e formou-se em engenharia mecânica.
 
Esse conhecimento deve ter sido útil para projetar e calcular todo tipo de traquitana necessária durante a execução das obras contratadas pela empresa. Também deve ter servido quando comprou um caminhão velho e começou a transformá-lo em motorhome. E o primeiro passo foi cortar e alongar o chassi do caminhão para ficar de acordo com o projeto que desenvolveu para materializar o sonho de sair acampando com a família por aí.
 
A origem do nome idiota que usava estava no período da Segunda Guerra. Era brasileiro, filho de alemães naturalizados. O pai, Hubert, veio para o Brasil ainda criança, o mesmo acontecendo com sua mãe.
 
Hubert e esposa devem ter-se conhecido e casado na colônia alemã da cidade. Tiveram dois filhos: Herbert e Frida. Apesar de brasileiros natos ou naturalizados e fluentes em português com zero sotaque, nada mais natural que pais e filhos conversassem em alemão dentro de casa e talvez até com alguns amigos.
 
Mas a guerra começou, o Brasil entrou na briga e de repente ficou perigoso ser alemão. Por isso, uma das primeiras providências foi aportuguesar os nomes próprios. Hubert ganhou um “O” transformando-se em Huberto. O mesmo aconteceu com meu colega, que passou a chamar-se Herberto, um nome desgraçado de feio, só melhor que o nome do pai.
 
A outra providência foi passar a só falar em português, até mesmo dentro de casa (sabem como é, as paredes podem ter ouvidos). Assim, quando a guerra acabou tinham perdido o costume e o prazer de falar no idioma dos antepassados.
 
Curiosamente, quando a empresa onde trabalhávamos trouxe para o Brasil dois alemães para auxiliar na elaboração da proposta para construção da usina nuclear Angra III, meu colega Herberto pôde expressar-se no idioma há muito abandonado ao conversar com os gringos. E esta é a parte pitoresca desta história: os alemães lhe disseram que ele falava sem nenhum sotaque, mas com expressões e vocabulário muito antigos, algo assim como alguém usando palavras em desuso tipo “Vosmecê” ou “Vossa mercê”. 
 
Para terminar, um caso divertido. Tentarei ser claro e sucinto na última lembrança do Herberto: provavelmente no início da década de 1970 a empresa onde trabalhei ganhou a licitação para construir as obras civis de uma hidrelétrica, serviço de responsa e bastante técnico. O Herberto foi designado chefe da seção técnica da obra, setor encarregado de descascar os pepinos surgidos durante a construção.
 
O maior desafio foi projetar e construir a forma (molde) do “tubo de sucção”, um conduto dentro da barragem que leva a água represada até a turbina para fazê-la girar.
 
Para encurtar a conversa, o Herberto projetou e calculou os esforços que a forma de madeira sofreria ao ser lançado o concreto sobre ela. Era um monstrengo que precisou ser dividido em quatro partes cada uma delas do tamanho da carroceria de um caminhão. Tive a oportunidade de ver as fotos  (lindas!)  dessas peças.
 
Antes, entretanto, para não vacilar e provocar algum erro grave durante a execução da obra, O Herberto mandou os carpinteiros construir um modelo em escala reduzida, estudou a melhor forma de fixar as partes entre si, etc.
 
Precisei me deter um pouco nessas particularidades, só para falar que o “buraco” que seria deixado dentro do corpo da barragem era o “ó do borogodó”, pois tinha a forma de um cachimbo e a seção originalmente retangular ia se modificando até tornar-se circular. E a forma de madeira tinha de “entregar” esse formato. As fotos mostram uma obra de arte em toda a sua rudeza, feita com centenas de tiras de madeira semelhantes a ripas de telhado lixadas e cobertas por massa plástica (se não me engano), pregadas em vários “anéis” robustos de madeira (o nome é cambota) cada um com um formato diferente do outro, justamente para criar a forma prevista no projeto da barragem.
 
Resumindo, um trabalho filha da puta de complexo que exigiu memória de cálculo e desenhos auxiliares, tudo preparado e detalhado pelo fodíssimo Herberto (que ainda nem era engenheiro!). E foi aí que aconteceu o episódio que me fez rir muito.
 
Os fiscais da empresa contratante chegaram à obra para ver o “cachimbo”. Parece que o engenheiro chefe da construtora era meio calhorda e disposto a gozar com o pinto dos outros, pois começou a conversar com os fiscais como se fosse ele o responsável pelos estudos técnicos e projetos construtivos. Isso na frente do Herberto, que permaneceu calado.
 
Quando o engenheiro pediu para que ele trouxesse os esboços e a memória de cálculo para mostrar para os fiscais, o Herberto nem pestanejou. Foi até sua sala, queimou todos os estudos e desenhos que tinha feito e voltou dizendo que infelizmente tinha jogado fora o estudo, justamente por não ser mais necessário.
 
 
PAWEL
Dr. Pawel era uma espécie de “outsider” dentro do grupo de engenheiros que trabalhava no setor denominado “Seção Técnica”. Tinha uma sala só para ele, com prancheta e mesa de escritório. Não participava das atividades normais do setor, pois parecia atender apenas as demandas do diretor técnico.
 
Era extremamente respeitoso e chamava a todos os engenheiros de “doutor”, ao contrário da esculhambação com que nos tratávamos, com apelidos idiotas e até com variantes “criativas” dos sobrenomes. O Luis Felipe, por exemplo, era chamado de Pintão, para se diferenciar do filho “Pintinho” que também trabalhava na empresa, ainda como estagiário. Bem melhor e até mais elogioso que o tratamento que eu recebia de um gerente quando queria falar comigo:
“Ô Pênis, dá um pulinho aqui na minha sala”. Pois é...
 
Dr. Pawel tinha um horário rígido de trabalho, que cumpria rigorosamente, sem condescendência nenhuma a excesso ou falta de alguns minutos. Ao meio dia em ponto saía para almoçar, às 17h30 largava o que estava fazendo, encerrava o expediente e foda-se o mundo. Um dia, incomodado pelas horas extras a que nós estávamos acostumados a fazer com frequência, disse ao Herberto:
- Você não está sendo pago para trabalhar essas horas!
 
Comportamento de europeu da velha guarda. Dr. Pawel tinha um filho gente finíssima que trabalhava na mesma empresa. Victor (“Victar”) para ele e Vitão para nós. Um dia o Vitão me contou o caso mais surreal que já ouvi.
 
Seu pai, russo, lutou na Segunda Guerra, foi ferido, capturado pelos alemães e levado para um campo de prisioneiros.  Em determinado momento algum tipo de epidemia atingiu o campo, levando os médicos alemães a uma solução radical (eles eram “bons” nisso!): os aprisionados foram divididos em dois grupos: os franzinos e/ou muito debilitados iam para um lado (para morrer, se fosse o caso) e os que tinham boa chance de cura ou utilidade para os alemães eram levados para a enfermaria e tratados.
 
Segundo o Vitão, o pai corpulento e forte foi escolhido para ficar na “tchurma da enfermaria”. Um médico alemão o medicou, tratou e salvou sua vida. Após o fim da guerra, provavelmente cada um foi para o seu canto. O Pawel talvez por odiar o comunismo, veio para o Brasil, passando pela Áustria, onde nasceu seu filho Victor.
 
Chegando ao Brasil, acabou vindo morar em Belo Horizonte, no bairro Santo Antonio, na Rua Leopoldina. Quis o destino que o médico alemão também viesse dar as caras em terras brasileiras, indo morar em Belo Horizonte, bairro Santo Antonio na rua... (adivinha qual?) Essa mesma, na Rua Leopoldina!!!!
 
- Puta que pariu, Vitão! Que maravilha! Essa é a verdadeira coincidência cósmica! Seu pai e o alemão devem bater altos papos, heim?
- Claro que não!
- Porra, por que não? O cara salvou seu pai!
- E daí? Meu pai é russo e ele é alemão!
Aí eu desisti de entender os gringos
 
O relacionamento do Vitão com o pai era muito engraçado. O pai ficava puto quando falava em russo para o filho, que respondia em português. Eu criticava:
- Pô, Vitor, eu adoraria saber falar em mais de uma língua!
- Para quê? Eu sou brasileiro!
- Mas você sabe falar russo?
- Claro que sei, mas não gosto.
Que devia ter dito a ele? Jumento!
 
As últimas lembranças que tenho do Dr. Pawel são palavras e casos que disse (uma delas provocando anos depois uma inimizade total com um colega esquizofrênico que inclusive me chamou para brigar no braço. Mas esse caso eu prefiro não detalhar).
 
A outra coisa foi a informação de que os livros técnicos russos eram abundantes e baratíssimos, pois eram impressos em papel vagabundo, tipo de jornal. E para encerrar, um provérbio russo que o “Orozimbo” batalhou para aprender a falar:
 
- “No meio de lobos uive como lobo”.
Em russo seria algo parecido com isto: 
- “Sredi volkov vyt' po-volch'i”.
Mas eu não posso confirmar, pois meu nome não é Victor e o Dr. Pawel está dormindo profundamente há muito tempo.
 

 

TEMAS QUE NÃO PRETENDO AMPLIAR

  Alguns pensamentos meio caóticos ou delirantes têm invadido minha mente. Se fosse outro o tempo, ficaria divagando e escrevendo abobrinhas...