Em sua crônica “Eu e Bebu na Hora Neutra da Madrugada” meu ídolo Rubem Braga
escreveu que “Muitos homens, e até
senhoras, já receberam a visita do Diabo, e conversaram com ele de um modo
elegante e paradoxal. Centenas de escritores sem assunto inventaram uma
palestra com o Diabo. Quanto a mim, o caso é diferente".
Ora, caramba, se até ele – mesmo dizendo que
não – resolveu escrever uma crônica sobre o diabo, por que eu, que não sou
escritor, mas eternamente sem assunto não poderia?
E há um motivo prático para isso: depois de
ler que políticos filiados ao PL -
Partido dos Lorpas – se desculparam com os eleitores por terem assistido ao
show da "satanista" Madonna, eu cheguei à conclusão de que o Diabo
precisa urgentemente modernizar o inferno e atualizar as condenações e penas
aplicadas a seus atuais e futuros inquilinos.
Estava refletindo sobre isso quando ele
surgiu à minha frente, Não sei como apareceu e talvez nem seja importante
saber. O que sei é que de repente estávamos conversando na antessala do
dentista, onde fui para tratar de mais um dente quebrado por torresmo.
Ele não parecia ser o que era. Tinha uma cara
de idade indefinida, estava bem vestido, discretamente vestido, nada de
vermelho, nada muito colorido, tampouco muito preto ou muito branco.
Cumprimentou-me educadamente, e começamos a conversar.
Começou queixando-se de que tem muito pouco
prestígio atualmente, sendo até motivo de risos e piadas, culpa dos idiotas e
dos ignorantes que creem em falsos guias espirituais, mais interessados no próprio enriquecimento.
- Sabe,
Jotabê, esse povo me quebra, pois transforma em milagre uma simples dor de
cabeça.
Fiquei incomodado por saber quem eu era e.perguntei
como sabia meu apelido.
- Ora,
Jotabê, eu sei tudo, eu sou a imagem espelhada “dEle”.
- Se
sabe tudo, porque não age para recuperar o prestígio antigo?, retruquei.
- Tem
razão. Acho que preciso de alguém para me ajudar a modernizar o inferno. E pago
bem, pois tenho muitas aplicações em alguns infernos fiscais.
-
Infernos fiscais?
- Na
verdade, são paraísos fiscais, mas não pega bem sair dizendo que aplico
criptamoedas em paraísos fiscais, entendeu?
Espantado com a existência de uma versão
infernal das criptomoedas disse-lhe que seria fundamental contratar uma
consultoria de planejamento estratégico e marketing, dessas com capacidade
para limpar a barra de políticos enrolados com a justiça, e de um bom escritório de
arquitetura.
-
Explique isso melhor.
- Em
minha opinião, a empresa de consultoria preocupar-se-ia em atualizar e
modernizar um formato de negócio surgido há mais de mais de quatro mil anos, já
desgastado e de pouco apelo emocional.
- Ainda
não me convenceu.
- Veja
bem, as mudanças propostas deveriam contemplar a revisão da lista de
condenações e as penas correspondentes. Além disso, deveria ser criado um novo
projeto gráfico e visual, com propostas de modernização do vestuário e
adereços, e até a criação de uma visita guiada pelo Céu e pelos diversos
setores do complexo satânico, uma espécie de safári infernal, um passeio guiado
como se fosse um safári africano, em que você passa no meio dos leões, mas sem
poder chegar perto deles. Seria bom criar também uma campanha publicitária
eficiente, pois “a propaganda é a alma do negócio”, como diz quem entende do
assunto. Uma ideia boa seria abandonar a cor vermelha, pois isso evitaria que o diabo e seus auxiliares fossem chamados de comunistas.
Ele pareceu empolgar-se com as sugestões e
perguntou:
- Como
seria essa revisão de penas e condenações?
- Bem,
para isso acontecer você precisaria fazer uma reunião de cúpula com seu "Espelho".
Hoje, graças às redes sociais, a maldade mudou de dimensão e de estilo, hoje
não se trata apenas de matar ou roubar, hoje o maior mal, o maior dano é
provocado pela mentira maldosa, pela mentira que mata, pela mentira que diminui e nega as ações positivas dos governos.
Respirei um pouco e continuei:
-Hoje o
ódio mudou de dimensão e de forma, a maldade adquiriu formas inexistentes na
época em que os Dez Mandamentos foram penosamente gravados em pedra durante 40
dias por Moisés. Hoje, as notícias falsas e as mentiras criminosas espalham-se
mais rápido que fogo no capim seco em dias de ventania. Reputações são
destruídas e até suicídios são cometidos, graças às famigeradas fake news criadas
por canalhas ou psicopatas, gente insensível, sem empatia com a população, mais empenhados
em dar vazão a seu ódio e rancor e a defender seus pontos de vista à custa de mentiras, por mais
equivocados que sejam.
- E o
que você sugeriria para corrigir isso?
- A
lista de condenações utilizadas por Ele precisaria incluir a disseminação de fake-news
e o ódio ideológico, mais inextinguível que o fogo do inferno.
Como estava empolgado, continuei falando:
- As
antigas condenações eram destinadas a gente simples e analfabeta, gente que
matava por “dá cá uma palha”. Era um povo rude, mas de coração mais brando que
o dos políticos e religiosos ultra-radicais que se abrigam nos esgotos de
alguns partidos políticos ou igrejas. Se fossem escritos hoje a lista dos
dez mandamentos precisaria ser acrescida de no mínimo mais dois. A vantagem é
que poderiam ser impressos e distribuídos aos milhares, aos milhões.
Pedi um copo de água à secretária do dentista
e continuei, não sem notar que ela estava pálida e com uma mal disfarçada
expressão de terror no rosto.
- Os
enunciados desses novos mandamentos poderiam ser assim:
11 -
Não criarás nem divulgarás fake news
12 -
Terás humildade para aceitar que não comete crime ou pecado quem tem uma visão
ideológica diferente da tua.
Nesse ponto o Diabo perguntou sobre o
escritório de arquitetura.
- Que
ele poderia fazer para melhorar nossas instalações?
- Bom,
minha formação é de engenheiro relapso, não de arquiteto fodão, mas eu
começaria pensando em acabar com os fornos, caldeiras e fogueiras, pois além de
gastarem muito combustível fóssil, ainda contribuem para aumentar o aquecimento
global. Só aí você já ganharia milhões de pontos com os ambientalistas.
- Boa!
- Além
disso, você poderia criar setores de acordo com as penas que seus inquilinos
devem cumprir. Aliás, se me permite um comentário, você está sempre em uma
posição de inferioridade, pois se Ele condena, cabe a você apenas execução da
pena, algo como a relação de um juiz e de um policial.
-Eu
sempre reclamei disso com ele, mas Ele nunca aceitou mudar essa situação!
- Pois
é, por isso eu acho que você precisa colocar mais cores e mais luz nos seus
domínios. E acabar com essa história de cheiro de enxofre - ou ainda vão acabar
te chamando de peidorreiro. Assim, o novo habitante já saberia o que o espera.
“Ele” pode até ter criado a luz, mas por que você tem que ficar com a escuridão?
- Tem
razão! Saindo daqui vou agendar uma reunião para tratar disso com Ele!
-
Agora, a grande jogada arquitetônica seria a criação de celas individuais
iguais às do corredor da morte das prisões americanas, mas com a projeção de vídeos em
todas as paredes e teto das delícias existentes no Paraíso. E as imagens
criadas por Inteligência Artificial induziriam o condenado a acreditar que realmente está vendo o Céu e que ali existe tudo o que ele mais amou e desejou na vida e que nunca mais poderá obter
ou entrar em contato: poder, riqueza, familiares, pais, filhos, esposas,
amantes, belas mulheres (para quem gosta) e homens sarados (idem), carrões,
cloroquina, pizzas, cerveja barata mas boa, churrasco, tequila, torresmo, leite
com toddy, piscina aquecida, praias paradisíacas, paisagens de perder o fôlego.
E ele lá, solitário, sem controle remoto para mudar de canal e sem antidepressivos ou
remédios para dormir.
-
Rapaz, você é bem criativo, heim?
- Sou
nada, eu só deliro um pouco. Esse novo projeto transformaria a dor física em
dor psicológica, muito mais insuportável que o desconforto que um foguinho no
rabo pode causar.
Aí, com uma expressão estranha no rosto, ele
me disse:
- Estou
achando que você é um marqueteiro de nascença, ideal para me ajudar a implantar
todas essas modificações. Quer trabalhar para mim?
- Não,
obrigado! Espero demorar um pouco mais por aqui. Além do mais, você sabe que
hoje eu sou um ateu-católico ou um católico-ateu. Por isso, não acredito em
muita coisa que dizem existir por aí.
Ele deu um sorrisinho irônico, perguntou se
eu gostava de gratinados e saiu, deixando-me sem entender o que quis me dizer.