segunda-feira, 27 de junho de 2016

SOBRE O FENÔMENO DOS TRABALHOS DE MERDA - DAVID GRAEBER (trad. IVAN LP)

Tudo o que me surpreende, encanta, fascina ou atrai eu gosto de transcrever no Blogson, para que os 2,3 leitores que o acessam possam também tirar algum proveito dessa leitura. Esse é o caso do artigo que recebi, do qual copiei apenas um trecho, para não tirar o prazer de sua leitura na íntegra, no local onde foi publicado.

Depois de comentar com meu filho um artigo da revista VEJA sobre o desemprego de pessoas com formação universitária - significativa e estranhamente superior ao das pessoas sem diploma - ele me enviou um texto interessantíssimo, que tem alguns pontos de contato com o artigo da revista. Para quem se interessar, o link é esse (excelente leitura, excelente site):

Só para concluir esta apresentação, preciso dizer que os últimos onze anos de minha vida profissional foram gastos com trabalhos do tipo abordado nesse texto. O efeito que isso me causou talvez explique muitos dos estados depressivos que às vezes me afligem e os pesadelos que teimam em me fazer acordar com um sentimento muito ruim de tristeza e melancolia. Vê aí.



Em 1930, John Maynard Keynes previu que até o final do século a tecnologia teria avançado o suficiente para que países como a Grã-Bretanha ou os Estados Unidos implementassem a semana de trabalho de 15 horas. Existem muitas razões para acreditar que ele estava certo e no entanto isso não aconteceu. Ao contrário, a tecnologia foi sendo configurada de maneira a nos fazer trabalhar mais. No intuito de alcançar este objetivo, trabalhos efetivamente inúteis tiveram de ser criados. Exércitos de pessoas, na Europa e na América do Norte em particular, passaram vidas inteiras realizando tarefas que eles no fundo acreditavam serem desnecessárias. O dano moral e espiritual deste fato é profundo. É uma marca em nossa alma coletiva. No entanto, quase ninguém fala sobre isso.

Por que a utopia prometida por Keynes nunca se materializou? A resposta mais comum hoje é que ele não visualizou o aumento maciço do consumismo. Dada a escolha entre menos horas de trabalho ou mais brinquedos e prazeres, escolhemos os últimos. Isto pode parecer um bom conto moralista, mas um pouco de reflexão nos revela que não é bem assim. Sim, nós temos testemunhado a criação de uma variedade infinita de novos empregos e de novas indústrias desde os anos 20, mas muito poucas não tem a ver com a produção e distribuição de sushi, iPhones ou tênis extravagantes.

Quais são esses novos postos de trabalho precisamente? Um relatório recente comparando o emprego nos Estados Unidos entre 1910 e 2000, nos dá uma boa ideia. No decorrer do último século, o número de “trabalhadores braçais” na indústria e no setor agrícola diminuiu drasticamente. Ao mesmo tempo, empregos como de gerentes, assistentes, vendedores e outros cresceram de um quarto para três quartos do emprego total. Em outras palavras, trabalhos produtivos foram largamente automatizados como previsto (ainda que você leve em consideração os trabalhadores da industria de maneira global, incluindo China e Índia, a porcentagem é muito menor do que costumava ser).

Mas em vez de permitir uma redução maciça da jornada de trabalho, para que a população mundial tivesse a oportunidade de correr atrás seus próprios projetos, prazeres, visões e ideias, temos visto um crescimento não só do setor de “serviços”, como do setor administrativo, incluindo a criação de novas indústrias como a de serviços financeiros ou telemarketing, ou a expansão sem precedentes de setores como direito corporativo, administração da saúde e acadêmica, recursos humanos e relações públicas. Esses números ainda não são suficientes para refletir esse contingente de pessoas cujo trabalho é prover apoio administrativo, técnico ou de segurança, pois existe toda uma cadeia de indústrias auxiliares (de petshops a pizzarias 24h) que só existem porque todo mundo está gastando muito tempo trabalhando nessa “nova” indústria.

Estes são os que proponho chamar de “empregos de merda.” (...)

sexta-feira, 24 de junho de 2016

TRÊS POR QUATRO

Em seu primeiro livro, se não me engano, o Stephen Hawking disse (assim entendi) que só há passagem do tempo se houver um observador. Isso, se não houve erro de tradução. Afinal, como dizem os italianos: traduttore, traditore. E, segundo ouvi dizer, na primeira edição brasileira, a tradução estava um lixo.

Já pensei nessa afirmação um bocado de vezes. Para mim, isso só é possível em um universo sem vida. Porque, se a vida é finita, não importa se você é um paramécio ou uma ameba autista, o tempo sempre passará.

Mas, deixemos essas considerações para quem tem QI igual ao do cientista. Afinal, o meu é muito menor! Se o dele é 550, o meu chega, no máximo, a 549,5.

Como diz uma música antiga (linda!), time keeps flowing like a river to the sea. Eu tenho observado essa passagem, esse rio, há muito tempo. Como disse antes, há uma forma fácil para fazer isso: olhar os retratos 3x4 que você tirou ao longo da vida. A lógica disso é simples: a sua posição na foto é basicamente a mesma, sempre. 

A partir da adolescência, por insegurança, vaidade ou obsessão (ou tudo isso junto), comecei a guardar de forma ordenada cada foto 3x4 que era obrigado a tirar. “Ordenar”, no caso, consistia apenas em anotar no verso do retrato a data exata ou, pelo menos, o ano em que foi tirado. Não satisfeito com isso, procurei também identificar a data provável de retratos mais antigos, tirados na infância e pré-adolescência.

Como bom maníaco, usava também um artifício: em lugar de tirar logo uma dúzia de cópias que serviriam por um período maior e várias finalidades, encomendava só seis cópias, reservando sempre uma delas para guardar. Fazendo essa jogada até me formar na faculdade, a cada ano a galeria aumentava. Houve algumas exceções, entretanto.

Quando precisei, por exemplo, tirar retrato para o alistamento militar. Para essa “missão”, coloquei no bolso um pente e um par de óculos que tinha desistido de usar. Esses óculos haviam sido receitados para correção de hipermetropia e astigmatismo no olho direito. A questão é que minha vista esquerda era perfeita. Assim, mesmo com os óculos, a visão direita era sempre pior. No dia da foto, para ficar com uma cara de mané ainda maior que a que já possuía, os óculos saíram da gaveta onde estavam guardados.

Cheguei ao Foto Retes e, como era o costume, encomendei as seis cópias. E aí encomendei outras seis. Na primeira pose, coloquei os óculos, penteei o cabelo de lado, abotoei a camisa até o pescoço e procurei fazer cara de bundão. Na segunda pose, guardei os óculos, desabotoei a camisa e mudei o penteado. Nem precisaria dizer que a pose com óculos está no meu Certificado de Reservista (dispensado por excesso de contingente). Curiosamente, a cara de bundão é a mesma nas duas fotos (é claro que a culpa disso é do fotógrafo, provavelmente um profissional inexperiente, ainda aprendendo).


Outro caso ridículo aconteceu logo depois de ter passado no vestibular. Estávamos em 1970, logo no início do ano e eu, com cabelos ainda muito curtos, depois da cabeça raspada no trote. Estava indo para a faculdade, atrasado como sempre, quando encontrei com meu irmão, já voltando. Perguntou se eu não tinha interesse em me inscrever para ser recenseador no censo que aconteceria naquele ano. A grana era boa, etc. Se quisesse, precisava correr, pois as inscrições se encerrariam naquele dia. Além da carteira de identidade, precisava de fotos 3x4. Comentei que não daria tempo, pois não tinha os retratos. Sempre proativo (não existia esse termo na época), meu irmão sugeriu que eu os tirasse ali mesmo, naquela rua, onde revelavam em uma hora. Solução dada, fui conferir.

A empresa ficava no segundo andar de um sobrado antigo do centrão de BH, sem elevador, a três quadras da Rua Guaicurus, tradicional rua de zona e empresas atacadistas de cereais e outros produtos. Região nobre, como se percebe. Uma escada estreita e mal iluminada dava acesso a algumas salas e lojas modestas, ocupados por alfaiates, escritórios mambembes de contabilidade e congêneres. Dentre esses, o lugar das fotos de uma hora.

Fui atendido por uma senhora de meia idade, com cara emburrada. Naquele dia, pelo menos, ela era recepcionista, caixa e fotógrafa. Mandou que eu me sentasse em uma cadeira posicionada em frente a uma câmera e abriu uma janela que ficava à minha esquerda. Do lado direito, estava um refletor tipo umbrela ou guarda-chuva. Deu para visualizar? A iluminação era feita com apenas um refletor e com a luz que entrava pela janela aberta!

Ordenou que eu olhasse para a lente, não me mexesse e flash! A foto estava tirada, sem que houvesse tempo de corrigir a postura, pois sempre tive a mania de olhar para as pessoas como se as visse por cima de óculos inexistentes. Depois de uma hora, peguei as seis cópias (lógico, né?) e corri para fazer a inscrição.

Apesar da qualidade, esse é o retrato de que mais gosto: a cabeça raspada dois meses antes, o olhar meio assustado, meio de louco, as sombras decorrentes da iluminação “fenétrica” (do francês fenêtre, janela; "frenética” era a iluminação da danceteria carioca Frenetic Dancing Days. Preciso explicar tudo?) acentuando o gogó e as bolsas sob os olhos. Resumindo: uma bosta. Só há uma coisa que sempre me deixou cismado: por que meu irmão conseguiu a vaga de recenseador e eu não?


terça-feira, 21 de junho de 2016

LINGUAGEM DE SOGRA

Minha sogra é uma pessoa interessantíssima e até já publiquei um post sobre ela, falando de sua resiliência diante das dores que a vida pode causar. Tem um bom humor incrível e se presta despreocupadamente a pagar micos quando solicitada pelos netos mais sem noção. Já foi fotografada fazendo gesto de metaleiro (não conseguiu acertar), já tirou retrato com "asas" de folha de couve, já usou véu de noiva (com direito a buquê) e outras maluquices que ela tira de letra e sempre encara com bom humor.

Gosta muito de mim e vive dizendo que eu sou bom demais, que sou como um filho para ela, pois estou sempre disponível para atendê-la. Ultimamente tenho tentado alertá-la para o fato de não ter exatamente a bondade e disponibilidade que acredita ver em mim. Digo sempre que a culpa ou mérito desse julgamento equivocado é de sua filha, ela sim, verdadeiramente carinhosa, gentil e atenciosa com sua mãe. Eu apenas atendo os pedidos feitos por minha mulher. Se ela não me pedisse nada eu ficaria na minha, pois não sou nem solidário nem prestativo, sou exatamente o oposto disso. Mas minha sogra não acredita. Paciência, fazer o que, não é?

A idade avançada trouxe uma enorme dificuldade de se locomover, pois não possui mais as as cartilagens dos joelhos, que ficaram na base do osso com osso (assim entendi). Por isso, utiliza andador quando precisa se deslocar um pouquinho dentro de casa. Além disso, está surda como uma porta (queria saber quem imaginou essa idiotice), mas está lúcida como sempre e com memória melhor que a dos filhos.

Essa surdez foi motivo de uma piada real, involuntariamente dita por ela. Aconteceu quando uma de suas concunhadas resolveu promover um encontro das mulheres da família e convidou sobrinhas e concunhadas ainda vivas para um lanche da tarde em seu apartamento. No dia combinado, levei minha mulher, duas de suas irmãs e minha sogra até o prédio onde ocorreu o encontro. Minha sogra desceu do carro com a dificuldade natural, amparada pelas filhas, não sem antes agradecer minha "bondade".

Quando fui buscá-las, quase usando linguagem de sinais para que ela me entendesse, perguntei à minha sogra se tinha se divertido e conversado muito. Tive de me controlar para não começar a rir depois de ouvir sua resposta:
- Ah, Zé, eu não tenho muito assunto para falar e fiquei só escutando (!!!!).

Pois bem, exatamente hoje ela está completando 94 anos (tempo pra caramba!). Talvez por isso, pela certeza e pelo medo de estar no fim da vida, passa a maior parte do tempo rezando sentada em uma poltrona em seu quarto, alternando orações individuais e rezas de terço com missas e programas transmitidos pelos canais católicos de televisão. "Conversa" com as pessoas que vão visitá-la, talvez fazendo leitura labial para entender mais facilmente o que está sendo dito, e ri com uma simpatia cativante.


Quando fez oitenta anos, ganhou dos filhos um festão e um presente inimaginavelmente carinhoso e delicado: minha mulher pediu a todos os parentes que escrevessem alguma coisa sobre sua mãe. Aos textos e mensagens escritas pelos familiares e amigos, acrescentou cópia da certidão de nascimento, fotos antigas e o proclama de seu casamento com meu sogro. Juntou tudo isso e mandou encadernar em um livreto de capa dura e letras douradas. Para homenagear essa senhora baixinha que teima em me tratar como filho, resolvi transcrever o texto que escrevi para ela há quatorze anos.


É, falar de sogra é complicado. Bastou falar a palavra “sogra” pra todo mundo cair de pau. Afinal, sogra dá palpite sem ser convidada, interfere na vida do casal, chega sempre na hora errada, cisma que cozinha melhor que a nora. Se, em vez de nora, tiver genro, piorou: com certeza “ele é um vagabundo” E por aí vai.
Esse negócio de sogra é tão complicado que algumas coisas estranhas levam nome de sogra. Talvez porque tenham alguma coisa em comum com ela: “olho de sogra” (será que tem a ver com olho grande ou olho gordo?), “língua de sogra” (precisa maior?) e outras que devo estar esquecendo.
Se eu tivesse sogra, com certeza, estaria malhando também, como todo mundo.
Estou dizendo isso tudo só para provocar, pois eu não tenho sogra. A senhora, Dona Lourdes, há muito tempo deixou de ser minha sogra, (talvez nunca tenha sido). A senhora ultrapassou essa etapa e transformou-se em minha mãe. Eu penso que a senhora me adotou, me trata como mais um de seus filhos. Mas isso não é privilégio meu, pois a senhora adota todos que têm a sorte de cruzar seu caminho.
Outro dia, quando conversávamos, eu disse que tive muita sorte de casar com sua filha (que eu amo), de conviver com os “meninos” (seus filhos, gente de emoção à flor da pele), com a senhora e com seu Neca, pois essa convivência tinha feito de mim uma pessoa melhor, menos complicada. E claro que isso é consequência da atmosfera de cordialidade existente em sua casa, da simplicidade cativante com que a senhora trata a todos que ali vão.
Pois bem, dona Lourdes, estou enrolando muito, não é? Mas isso é só para mostrar o tanto que gosto da senhora.
Não entendo de bebidas (no máximo, leite com Toddy), mas dizem que o bom vinho melhora com o tempo. Eu penso que a senhora é como um bom vinho, cada dia melhor.
E é por isso que eu desejo e espero que a senhora possa nos alegrar com sua presença por muitos e muitos anos ainda (no mínimo, mais vinte!), para que possamos ir aprendendo com a senhora a viver melhor. E eu acho que a senhora chega lá, pois a senhora segue a receita do vovô Catapreta, não pára.
Assim, quando algum dos seus filhos falar para a senhora não fazer isso ou aquilo (a Erê em especial), mande plantar batatas!
Eu, particularmente, espero que daqui a vinte anos, em dia de festa em sua casa, nós dois ainda estejamos conversando na cozinha: eu, sentado em um banquinho, a senhora, provavelmente lavando alguma vasilha e o resto do povo, enchendo a cara alegremente no quintal.
Precisa melhor que isso?

PARABÉNS! ! ! !
Zé, seu (com perdão da má palavra) genro.
21/06/2002





domingo, 19 de junho de 2016

SÓ NO COMPASSINHO

Há uns duzentos milhões de anos (lá por volta de 1966 ou 1967), quando eu estava ainda cursando o científico (creio que hoje o nome é "segundo grau" ou "colegial"), criei uma forma bacana de desenhar um gato meio estilizado, usando apenas um compasso.

Talvez alguém se pergunte se eu não tinha nada melhor para fazer, tipo pichar muros, encher a cara ou arranjar alguma encrenca própria dessa idade. Não, eu não tinha.

Como o Blogson funciona também como uma "blogoteca" (um blog biblioteca, entendeu?), onde guardo toda a tranqueira ainda preservada que já produzi  - e não demora a tornar-se apenas isso - resolvi mostrar um passo a passo em seis quadros. Só no último, como arte-final, é que são feitos traços a mão livre. 

A imagem está inclinada porque eu nunca sei previamente onde fazer o segundo círculo. Como tive preguiça de refazer, deixei assim mesmo. Vê aí.


COMENTANDO AS RECENTES - 18

Às vezes eu acordo com a sensação de que deveria ter estudado outra coisa em vez de engenharia. Poderia, quem sabe, ser médico - como desejava minha mãe, psicólogo ou economista – como eu mesmo desejei. 

Hoje, não sei por que, pensei que poderia ter estudado Direito. Se eu tivesse feito isso e fosse um bam bam bam da área, poderia também ter sido citado pelo José Eduardo Cardoso em sua defesa da Dilma. Já pensou que chique?

Falando nisso, eu acredito que seus auxiliares (tutti buona gente!) se esqueceram de citar alguns juristas de renome nacional. Além do citado Thomas T. Urbano, poderiam ter relacionado também o ilustre Dr. H. Romeu Pinto, a eminente Dra. Paula T. Jando e, claro, se eu tivesse cursado Direito, o Prof. José Botelho Pinto. Timaço!| 

sexta-feira, 17 de junho de 2016

VOSSA SENHORIA

A primeira construtora onde trabalhei era uma empresa excelente. Bem organizada, moderna e extremamente ética, não participava em nenhuma hipótese de acordos, arranjos, mutretas, mensalinhos, mensalões e todo tipo de sacanagem que existe na área da construção civil. Talvez por isso, nunca conseguiu deixar de ser uma empresa de porte apenas médio.

Mas, apesar de adotar práticas modernas de gestão, tinha uma esquisitice: todos os engenheiros e estudantes de engenharia eram indistintamente tratados por “doutor”, enquanto os demais profissionais de nível universitário (psicólogos, administradores, contadores e economistas) tinham de se contentar em ser chamados de “senhor”.

Lembrei-me disso hoje, enquanto assistia na Globo News os debates da Comissão do Senado que trata do impeachment da Dilma. Em alguns momentos os ânimos se exaltam tanto que os senadores lembram mais crianças brigando e fazendo birra no jardim de infância. E tome réplica, tréplica, “questão de ordem” e “pela ordem”.  Aliás, nem sei qual a diferença sutil entre questão de ordem” e “pela ordem”. Para mim, "Questão de Ordem" é só uma música da fase tropicalista do Gilberto Gil.

Mas o mais bacana é o uso abusivo e obrigatório do tratamento “Vossa Excelência”, quando alguém dirige-se a um senador (ou deputado). E isso vale até quando um político dirige-se protocolarmente a outro - mesmo quando a educação, respeito e polidez já foram para o ralo há muito tempo. Imagino que se a temperatura subir mais um pouco, ainda poderei ter a sorte de ouvir uma frase assim: -“Vossa Excelência é corno!” ou -“Vossa Excelência é um filho da puta!"

Isso me faz lembrar um poema do Fernando Pessoa, onde ele diz:
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?


Quando uma testemunha é inquirida, uma mágica acontece: o tratamento dado a essa pessoa é “Vossa Senhoria”, mesmo que ela eventualmente possa ser mais brilhante e inteligente que todos eles somados. Se o Stephen Hawking - considerado a mente mais poderosa da atualidade - fosse a uma dessas reuniões, fatalmente seria tratado por “Vossa Senhoria” por um daqueles manés que posam de fodões.

Acho essa "liturgia" uma falsa e anacrônica etiqueta. O pior é que embute a falácia de que os "excelentes" estão acima do resto dos mortais, seus eleitores. E mais: esses "príncipes" podem chegar até a pensar que se são eles que legislam, que fazem leis, estão então acima delas, pois o criador é maior que a criatura. Tudo bem, reconheço que isso é só um delírio meu (a seco), mas que me deixa perplexo, deixa.


A distância que separava na antiga construtora o “Doutor” do "Senhor” é a mesma que separa no Congresso “Sua Excelência” de “Sua Senhoria”, Ou seja, nenhuma, exceto pela presunção e pretensão de ser, parecer ou querer ser melhor que o resto da população. O político pode ser corrupto, pode ser mau-caráter, pode ser mafioso, criminoso, analfabeto, réu em algum processo ou qualquer outra coisa, mas é sempre “Excelência”. Por isso, acho que as “Senhorias”, em coro, deveriam exclamar -“Vossa Excelência” é a puta que pariu!

TALVEZ UM DIA...

Este post decorre do fato de ter divulgado hoje um texto onde falo de minhas lembranças relacionadas a retratos. Mais precisamente, a meus retratos.  Como os pratos de maior saída desse boteco de beira de estrada que é o Blogson são justamente os textos onde registro minhas lembranças sobre algum assunto, resolvi contar casos relacionados à minha obsessão por fotos de parentes e, especialmente minhas fotos (já viu que rola aí uma vaidade meio desgovernada, concordam?).

Pois bem, o texto acabou ficando meio grandinho e espertamente resolvi dividi-lo em três, só para aumentar a sobrevida do blog. É, é isso mesmo! Este blog está caminhando para o fim e poderia até adotar um novo mote, inspirado nas ruínas que existem em territórios ocupados pelo Ísis: “visite antes que acabe”.

Mas acho que escapei do assunto. Fiquemos apenas no Ocidente. Como dizia, hoje saiu o primeiro desses posts ligados às fotos que tirei ao longo da vida (“nessa longa estrada da vida”). Poderia até chamar esses textos de “postais”, mas a piada é muito ruim. O fato é que fiquei seriamente tentado a ilustrar esses posts com os retratos que mencionei nos textos, mas travei. Pensei até em usar tarja nos olhos, como nas fotos de marginais “de menor”, mas travei. Agora não, não vai rolar.

Afinal, um cara que começou seu blog com um zelo paranoico de não se identificar, chegando até a trocar o nome de amigos (“Pintão” por “Digão”, por exemplo) até que já se expôs bastante. Hoje os 2,3 leitores conhecem a sonoridade de puteiro do meu nome (“Botelho Pinto”), mas fotos... Isso ainda está fora de questão.

Talvez um dia, talvez no último post do blog - que já está escrito e tem até título (“Coda”) – eu resolva mostrar ao mundo minha pinta (no feminino, por favor). Por enquanto, não. Quem sabe?, talvez um dia...

  

AUTO-RETRATO

Algumas pessoas que me conhecem sabem a atração que sinto por retratos, sejam meus ou de familiares. Até mesmo de parentes que já tinham morrido quando eu nasci. Podem ser velhos, rasgados fora de foco, em poses ridículas, qualquer coisa. Eu curto tudo. Mas acredito que adquiri a mania de tirar retratos 3x4 quando fui me alistar no exército. No mesmo dia, encomendei seis retratos em que apareço com óculos e seis sem eles. A partir daí, até os 26 anos, tirei retrato nesse tamanho pelo menos uma vez por ano. 

Quando eu fazia isso, não estava pensando em mostrar para ninguém, era apenas a curiosidade de ver o tempo passando através das mudanças em meu rosto, etc. Resumindo, era só uma viagem na maionese. Quando nos casamos, dei tudo para minha mulher, que colou em uma folha em branco e anotou a idade que estava registrada no verso de cada retrato.

Depois de casado e  com a meninada nascendo, precisei "crescer" e passei a tirar só em caso de necessidade, o que é uma pena. Porque o grande barato desse tipo de foto é a uniformidade de imagem, pois a posição do retratado é praticamente a mesma, sempre.

Recentemente, na festa de comemoração do aniversário de nosso filho e dos nossos 40 anos de casamento, minha mulher fez um filminho (que me emocionou demais), onde usou alguns dos meus retratos 3x4. Revendo esse filminho, percebi que uma das minhas fotos prediletas não tinha sido utilizada. Perguntei o motivo e ela respondeu que não estava escaneada e ela não queria dar bandeira, pois quis fazer uma surpresa para mim - o que de fato conseguiu. E foi muito emocionante!

Pois bem, resolvi escanear todas e (re)descobri que a fase da meia idade não estava representada na galeria. Aí o TOC (moderado) manifestou-se e eu resolvi preencher as lacunas existentes “produzindo” as fotos faltantes no tamanho 3x4, a partir de retratos em que apareço sozinho ou relativamente isolado e de frente para a câmera.  Durante dois dias, diverti-me pra caramba fazendo isso, mas acabei me cansando de procurar mais retratos. Joguei tudo no Word e foi aí que me deu vontade de mandar para meus filhos e suas amadas o resultado. 

Vaidade? Obsessão? Maluquice? Falta do que fazer? Pode ser tudo isso junto ou pode ser outra coisa (curiosidade ou carência afetiva, por exemplo). Além do mais, acho que não é vaidade, porque a foto que mencionei antes é uma das mais toscas. Mas jamais quereria destruí-la ou ocultar.

Acabei mandando essa "galeria" por e-mail, com o seguinte recado - "para as meninas: daqui 20, 30 anos, é isso que acontecerá com os meninos (erosão total). Para os meninos, fica a frase: EU SOU VOCÊ AMANHÃ".



REISER - JEAN-MARC REISER

Minha reverência (extremamente respeitosa) de hoje é para o desenhista de humor Reiser. Melhor dizendo, Jean-Marc Reiser. Eu o descobri através da revista O Grilo, publicada no Brasil no início da década de 1970. Seu traço era tosco, grosseiro, inacabado, mas com um humor fantástico.

Graças à internet, fiquei sabendo que foi um dos fundadores da Hara-Kiri, revista de humor que depois de ser suspensa por fazer piada com a morte de Charles de Gaulle, mudou o nome para Charlie Hebdo (pelo que se vê, o pessoal pegava pesado desde sempre). Reiser era francês e morreu de câncer em 1983, com 42 anos, muitos anos antes de seus colegas de redação serem barbaramente assassinados por psicopatas fundamentalistas.

Descobri também que tinha um desenho muito mais hardcore e sacana do que eu poderia imaginar. Talvez pelo fato de os desenhos aqui divulgados serem mais bem comportados, pois estávamos em plena vigência da censura prévia aos meios de comunicação. Mesmo que o Grilo fosse uma publicação quase que só para iniciados, imagino que o pessoal da revista não quis correr riscos.

Independente de serem mais "certinhos", os desenhos do Reiser publicados no Brasil eram geniais. Mas  em uma exposição de suas obras no Centro Pompidou em 2004, havia um cartaz logo na entrada, com o seguinte aviso: "Cuidado! Algumas das imagens expostas podem ferir os sentimentos de vários visitantes."

Segundo a versão francesa da Wikipédia, o cartunista pediu que as mulheres fossem ao seu enterro usando cinta-liga e sem calcinha. O Google não conseguiu traduzir uma palavra (enjambassentque teria dito, mas, pelo que intuí, as mulheres assim vestidas (ou despidas) deveriam “montar a cavalo” no seu túmulo ou passar por cima. 

Caso alguém se interesse, a frase original é le dessinateur aurait demandé à ce que les femmes viennent à son enterrement en porte-jarretelles et sans culotte et qu'elles enjambassent sa tombe.

Esse pedido sacana me fez lembrar do comentário de uma conhecida em um velório, quando disse que desejava ser cremada, só "para queimar pela última vez".

A historinha hilariante de dois ratos sacanas e um sujeito apalermado que escolhi para homenageá-lo está, infelizmente, pouco nítida, pois o pessoal do Grilo tinha a mania de usar na mesma página cores em diferentes tonalidades (coisa de bicho-grilo), fazendo com que os desenhos ficassem esmaecidos em alguns pontos. Tentei mudar para preto e branco mas ficou pior. Mesmo assim vale a pena, pelo non sense da situação. Espero que gostem.

                   









terça-feira, 14 de junho de 2016

COMENTANDO AS RECENTES - 17

No post anterior ("Comentando as Recentes - 16") eu registrei a sabedoria popular contida na frase "quem tem Cunha tem medo". Depois de o Conselho de Ética da Câmara dos Deputados aprovar a cassação do Eduardo Cunha por onze votos a nove, seria impossível deixar de fazer novo post comentando esse resultado.

A frase agora expressa outra manifestação dessa mesma sabedoria. Nem consegue imaginar qual seria essa frase? Elementar, meu caro leitor!

"Se o Cunha não é meu, pau nele", óbvio.

COMENTANDO AS RECENTES - 16

Dia desses li em um portal de notícias que o deputado Eduardo Cunha teria mandado um recado ameaçador ao presidente Michel Temer. Teria dito que se tiver o mandato cassado, "cairá atirando" e levaria junto uns 150 políticos.

Cento e cinquenta? É muito político! Tirando o fato de que essa ameaça cheira a terra sem lei, um verdadeiro "novo oeste selvagem", fica a impressão de que o caso confirma a máxima popular, plena de sabedoria, aquela que estabelece que "quem tem Cunha, tem medo".


segunda-feira, 13 de junho de 2016

TAQUIGRAFANDO

Já li que a forma escrita das línguas extintas suprimia as vogais (algumas línguas, pelo menos). Para mim, só esta descoberta já poderia ser considerada fodástica, uma sacada de gênio dos dedicados champolions da vida. Curioso é o fato de estarmos aparentemente voltando para essa fase, justamente em uma época de altíssimas possibilidades de comunicação.

Mesmo não tendo sido pescado por nenhuma rede social, percebo o uso das formas “VC”, “PQ”, “PPK” (!) e outras simplificações. Como gosto de dar palpite justamente sobre assuntos que ignoro completamente, resolvi fazer minha modesta contribuição à forma taquigráfica de escrita da internet. E escolhi para isso um estilo greco-lusitano.

Piegas”, por exemplo, poderia ser escrito assim: "p Egas".

Fui. (ou >>)

domingo, 12 de junho de 2016

NOITE DOS NAMORADOS

Hoje é Dia dos Namorados. Para ser sincero, "noite". Tivemos um fim de semana bastante movimentado e não deu para pensar em nada específico para esse dia (eu sou um cara que curte esse tipo de coisas). Por isso, para não passar em branco, resolvi revirar os guardados de minha mulher e achei um desenho-cartão feito para ela há muito tempo (1993), a lápis, resolução péssima, acabamento mais tosco que o normal, mas não quero nem saber. Até porque nem eu mesmo me lembrava mais dele. Por isso, nesses tempos tão conectados, eu me conecto mais uma vez (sempre!) com meu permanente Amor, através desse cartão.

Obs. (pós dia dos namorados): A imagem estava tão apagada que resolvi passar uma caneta hidrocor preta em cima de uma cópia do desenho original (feito a lápis). O resultado obtido serve para mostrar que sempre se consegue piorar um pouco o que já era ruim. 


sábado, 11 de junho de 2016

OS ATEUS E O À TOA

Tenho visto no youtube muitas palestras de grandes cientistas, humoristas e todo tipo de pessoas cujo maior ponto de contato é o ateísmo. Alguns trazem informações históricas interessantíssimas, outros fazem comentários hilariantes, mas a tônica é uma só: para eles, Deus não existe.

Talvez eu tenha o “gene da religiosidade”, talvez eu seja uma toupeira intelectual, mas, apesar do bombardeio sistemático, continuo acreditando n’Ele. Faz-me bem crer, ter fé, mesmo que isso possa ser um comportamento interesseiro. Mas não vou ficar repetindo o que já disse antes neste blog.

O que tem circulado em minha mente é que não importa se você é ateu, não vem ao caso se você é cristão, judeu ou muçulmano ou de qualquer outra religião ou crença; pode acreditar (ou não) em alma, espíritos, entidades, pode até supor que está em uma "Matrix" ou acreditar em fadas ou duendes, tanto faz. Uma coisa é certa: a vida, essa que vivemos (ou não) - dia após dia - não tem nenhum sentido, independente da crença que qualquer pessoa tiver. A Vida não tem sentido nenhum! Exceto se você acreditar em um Criador. Não estou me referindo a essa bobagem de Adão e Eva, lógico (até porque não sou crente fundamentalista).

Se você for cristão, pode até acreditar que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, tudo bem. Mas, fica a pergunta: para que fez isso? E os outros animais e plantas, para que? Para jogar geogame?

Para mim, tudo isso está valendo, mas como tenho sessenta e seis anos - o que significa já ter vivido a maior parte da minha existência - eu sinceramente gostaria de entender o sentido da Vida, gostaria que esse conhecimento partisse de dentro de mim, como se fosse fruto de meditação, um insight. Já tentei, já racionalizei, mas desisti. Neste caso, só mesmo a crença em Deus para acalmar minha inquietação. Não sei se é na Bíblia que se encontra essa frase: "insondáveis são os desígnios de Deus". Neste ponto eu até compartilho a visão da maioria dos cristãos, pois sozinho não conseguirei encontrar uma explicação que me satisfaça.

Ok, você pode querer se lembrar da sopa de aminoácidos bombardeada por raios gama ou sei lá o que. Você pode até dizer que a vida chegou à Terra trazida por algum cometa (nesse caso, de onde a teria buscado?).

Vejam bem, não estou doutrinando ou ensinando nada - nem duvidando de nada. Para ser sincero, só estou escrevendo isso para passar o tempo. E para postar no Blogson. E o que eu pensei é o seguinte: não importa sua fé, sua crença ou sua falta de fé, tanto faz; nada muda essa constatação: zilhões de átomos agrupam-se em moléculas dos mais variados formatos e complexidade, que formam células, que formam tecidos, que adquirem uma configuração especial, estabelecendo um sistema “fechado” – que é você.

Depois, acontece um processo inverso (em uma velocidade muitíssimo maior), que faz com que as estruturas complexas sejam desmontadas, desarmadas e destruídas, libertando átomos e moléculas isoladas. Resumindo: a Vida é como uma molécula de água, que permanece "água" em qualquer dos estados em que se apresenta, mas que surge e termina com uma reação físico-química.

A viagem é essa: a vida material, essa que nos faz crescer, trepar, ouvir rock e tudo o mais a que temos direito, começa e termina com duas gigantescas reações físico-químicas, uma de síntese e outra de análise ou decomposição. E se você não crê em nada, é só isso que te resta: você é apenas um "moleculão".

Para terminar, uma piada idiota (sempre!): até hoje ninguém conseguiu medir a matéria escura, apesar de ela representar 95% do Universo. "É uma parte do Universo que os astrônomos sabem que existe, mas ainda não sabem exatamente o que seja". Como ela não emite radiação eletromagnética, fica "invisível". Para mim, essa "matéria" deve ser formada pela alma ou pelo espírito dos mortos. Como a maioria das pessoas não tem nenhum brilho intelectual, a coisa fica escura mesmo (bazinga!).

sexta-feira, 10 de junho de 2016

TESOURO!

Quando eu era criança (ali pelo meio do Pleistoceno), alguém me contou a lenda do pote de ouro no final do arco-íris. Pobre e meio retardado (sempre!), ficava fascinado com a ideia de achar um tesouro tão fácil assim. Provavelmente, devo ter pedido à minha mãe para ir lá "fazer a coleta". 

Hoje em dia, sempre que vejo formar-se no céu um arco-íris, só o que consigo imaginar é que deve estar rolando uma parada gay em uma das pontas (e, pelamordedeus, cuidado com essa ponta aí!).


AS FILHAS DE JULIETA (E FRANCISCO) - 03

Em 30/07/1929 nasceu tia Dalva. Era genuinamente simpática e risonha. Dito isso, percebo que os irmãos e irmãs de minha mãe sempre foram bem humorados. Levavam uma vida dura, mas tinham uma "pobreza abençoada", conforme disse meu tio mais novo. Não eram necessariamente engraçados ou piadistas, apenas bem humorados, risonhos, solares.


Tia Dalva trabalhou a vida toda em um cartório de registro de notas. Não sei em qual função, só sei que escrevia à mão em livrões de capa dura, que às vezes levava para casa, talvez para dar conta do trabalho. Não sei como é hoje, mas o que ela fazia era uma coisa meio pré-histórica. Nem imagino quantas canetas tinteiro deve ter sucateado nessa atividade. Supondo trinta anos de serviço, onze meses por ano, vinte dias por mês, cinco horas por dia (já dei um refresco para os pit-stop), terão sido mais de trinta mil horas escrevinhando! Se não teve tendinite, só por milagre!

Quando eu tinha uns sete anos, Tia Dalva começou a namorar o Osíris, o amor de sua vida. Esse "tio" era irmão de uma colega de trabalho, que o apresentou. Boa aparência, cabelos muito crespos já sinalizando a futura calvície, olhos azuis, voz de locutor, elegante e cara de comedor, o que realmente era. Tinha um QE (quociente emocional) altíssimo, pois qualquer pessoa que se aproximasse dele não demorava a virar seu amigo e fã - ou presa. Com essas características, é óbvio que Tia Dalva logo se derreteria por ele.

E ele tinha a manha do envolvimento e da empatia, pois bem no início do namoro levou para mim e para meu irmão dois álbuns da "Dama e o Vagabundo" e uma porrada de pacotes de figurinha.  De cara, já ganhou nossa simpatia e de minha mãe. Todos os dias em que ia à casa de minha avó trazia mais figurinhas. E os álbuns foram sendo preenchidos até chegar ao maior impasse, insolúvel até hoje: a única figurinha que faltou para meu irmão completar a coleção está colada no meu álbum e a que falta para mim está colada no dele. O motivo de usar o presente dos verbos é o fato de ter guardado até hoje esse presente recebido em 1958 (sua data de lançamento, segundo a internet). Olhaí a capa do álbum:


O casamento de Tia Dalva foi um dos dois em que houve uma "recepção" em casa. O outro foi o de minha tia mais nova. Não sei qual foi a primeira a se casar, só sei que a casa ficava cheia de gente e com algumas primas de minha mãe particularmente inconvenientes. Lembro-me também da confecção de docinhos em um dos casamentos, alguns deles delicadamente colocados em uma conchinha. O detalhe suburbano dessa decoração é que as conchas foram confeccionadas com as tampinhas de alumínio que vinham nas garrafas de leite. Depois de limpas e higienizadas, foram laboriosamente moldadas com uma colher de sopa e frisadas com algum coisa pontuda para dar aquele aspecto ranhurado que algumas conchas verdadeiras apresentam. Muito "chique"!



Quando meus tios se casaram, estavam completamente sem dinheiro. Por isso, a lua de mel foi passada em Lagoa Santa, na casa de campo da sogra de minha Tia Ci, um casarão às margens da lagoa. Aí já viu, né? Lagoa tem peixe, peixe se pesca com vara, etc. O Osíris comentou comigo que nunca esteve tão duro como na época do casamento. Por isso, sem dinheiro para passear nem nada, eles pescavam de manhã, à tarde e à noite. Tenho quase certeza de que minha tia nunca foi tão feliz como nessa época (eu sei que fiz um comentário meio acanalhado, mas o objetivo era esse mesmo).

Já casada, Tia Dalva foi morar em um barracão (edícula) providencialmente construído na lateral da casa de minha avó. Não demorou muito para comprarem uma televisão - preto e branco, seletor de canais com quatro opções de canal (em BH só existia a TV Itacolomi, dos Diários Associados) e, se não me engano, móvel com pés palito. Show!

Naquela época, por volta de 1960, só pessoas mais abonadas ou que pretendiam parecer ser é que possuíam televisor. Essa situação criou a figura do televizinho, ironia com o pessoal que ia às casas de moradores próximos, só para ver aquela maravilha.   Como esse luxo não existia ainda na casa de minha avó, virei freguês de meus tios, televizinho, telesobrinho

Meu tio "torto" aparentava gostar muito de mim. Aliás, não sei o motivo disso, pois meus tios sempre demonstraram gostar muito de mim. Quando seu filho mais novo nasceu eu tinha uns onze anos e fui chamado para ser "padrinho de consagração". Quando esse primo já era adolescente, fui convidado a ser seu padrinho de crisma, Quando se casou, olha lá o Jotabê de padrinho, um caso explícito de "tri-padrinhagem". Além disso, fui também chamado para dançar a valsa de quinze anos com sua irmã, mais velha que ele. Nada mais natural portanto que Tia Dalva e Osíris tenham sido nossos padrinhos de casamento. 

Acho essa predileção bacana e estranha, pois os irmãos de minha mãe "produziram" mais de vinte primos e só eu fui lembrado para atividades "apadrinhatórias", pois fui também chamado para ser padrinho de batismo de uma das filhas de meu tio Omir (nesse caso, tive a companhia de outra prima).


Talvez por sempre tratá-lo com simplicidade e descontração, o Osíris gostava de conversar e contar alguns casos para mim. Eu ouvia e achava graça (um puxa-saco profissional!). Um dia, já adulto, ao elogiar sua capacidade absurda de cativar todo tipo de pessoas, disse que ele tinha uma qualidade especial: bastava meia-hora de papo com um desconhecido qualquer que logo essa pessoa já ficava querendo dar pra ele.  Cagou de rir, mas adorou a frase, vaidoso que era. E era muito.

Talvez por essa descontração, me contava vários casos, inclusive os mais picantes. Foi representante comercial durante muitos anos. Quando começou o namoro com Tia Dalva, uma de suas representações era de uma fábrica de lingerie. Já adolescente, ouvi a história da venda de sutiãs para uma butique. Aparentando estar em dúvida a respeito dos modelos provavelmente exibidos por ele, a proprietária disse que iria experimentar alguns, com a condição de que meu tio a ajudasse. Nunca soube o estado civil dessa senhora, mas é tranquilo que rolou uma venda casada! Ele só não me disse quantas vezes ficou de olho na butique dela, nem se já era casado na época. Há outros casos, tão ou mais apimentados, mas preferi deixá-los onde estão, já quase esquecidos.

Um dia me contou de como comprou a casa que depois transformou em escritório.  O proprietário estava puto com o inquilino e ofereceu o imóvel para meu tio. Imagino que deve ter argumentado não ter dinheiro, que estava caro, esse tipo de coisa, mas o proprietário insistiu e facilitou o pagamento, a ser feito mediante a emissão de três notas promissórias que seriam descontadas em banco, Alguma coisa assim. O que sei é que no resgate da última parcela, meu tio não tinha dinheiro suficiente e comunicou isso ao antigo dono. A solução encontrada pelo ex-proprietário foi emprestar o dinheiro para que o Osíris pagasse a promissória, e depois desse um jeito de pagar a ele. Pelo que entendi, era uma coisa meio de louco, pois ele emprestou para meu tio o dinheiro que deveria receber dele através do banco.

Outro exemplo dessa "sedução" aconteceu com o inquilino, que se recusava a sair do imóvel. Meu tio apenas o avisou que iria conseguir tirá-lo (não sei o que fez), o que realmente aconteceu. Esse inquilino era dono de uma mercearia e ficou tão impressionado com as artes e manhas de meu tio que passou a lhe pedir conselhos de todo tipo.

Tia Dalva parecia ter adoração pelo marido e provavelmente fazia tudo para agradá-lo. Lembro-me de uma "cadeira do papai" que comprou para ele no Dia dos Pais. No Dia das Mães ele retribuiu o carinho, comprando para ela um fogão novo...

Esse tio era extremamente competitivo e odiava perder, em qualquer situação. Quando os pais brincam com os filhos e usam jogos de tabuleiro, é normal deixar que as crianças ganhem, para não desapontá-las. Com o Osíris não tinha essa sopinha: jogando com o filho, ganhava todas, sem se preocupara se o filho ficaria triste. Era inteligentíssimo e espertíssimo, mas se ressentia de "não ter canudo", como me disse uma vez, referindo-se ao fato de não ter instrução universitária. Para ele, isso teria permitido que ele atingisse um sucesso muito maior do que alcançou. Mesmo pensando assim, não conseguiu sensibilizar meu "tri-afilhado", que também não fez faculdade. A diferença entre os dois é o que acontece em uma prova de revezamento: o filho pegou o embalo a partir das conquistas do pai. Com isso, ficou rico.


Até quando teve um infarto esse espírito de competição do Osíris se manifestou. Quando eu e minha mulher fomos visitá-lo, disse-nos que "sessenta por cento ou mais das pessoas que tiveram um infarto de tão grande extensão como fora o seu, morreram". Só faltou querer uma medalha por ter sobrevivido. 



Antes de mudar-se para Lagoa Santa, durante muitos anos meus tios moraram a cinco ou seis quadras de nossa casa. Sempre que nos encontrávamos o Osíris insistia para que eu fosse tomar um café com ele, para conversar. Nunca fui, sempre arranjando alguma desculpa para isso. Um dia, já morando em Lagoa Santa, teve um segundo infarto (se não me engano) e não resistiu. Tive a mesma reação de quando meu avô morreu, pois lamentei não ter convivido mais com ele, meu tio, padrinho e compadre


Tia Dalva ainda viveu um bom tempo até começar a sofrer de Parkinson. Também não fui visitá-la. Morreu, se não me engano, em 2014. No fim da vida era alimentada através de sonda gástrica, não falava nem dava sinais de estar lúcida. Segundo minha irmã, apenas olhava para as pessoas - quando olhava - de modo indiferente, sem reação, como se já estivesse junto de seu rei, ídolo e amado Osíris. 


quarta-feira, 8 de junho de 2016

ÚLTIMA FLOR DA INTERNET

LÍNGUA PORTUGUESA
Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura.
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

Em que da voz materna ouvi: "meu filho!",
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!

Nesse soneto com cheiro de naftalina o poeta Olavo Bilac louva o idioma português, que seria “a última língua derivada do Latim Vulgar falado no Lácio, uma região italiana”.

Como “todo mundo” sabe, o Latim Vulgar era a língua falada pela “plebe rude” (“enquanto a plebe rude na cidade dorme...”), ou seja, soldados, camponeses, escravos, putas e todo o pessoal que fazia alguma coisa de útil em Roma. Os patrícios, quando ainda estavam sóbrios, antes ou depois de uma boa orgiazinha, falavam ou escreviam em Latim Clássico, usando a língua de uma forma, digamos, “clássica” (mas não exatamente conservadora). Bom, não era bem isso o que eu queria dizer, mas acho que “todo mundo” entendeu.

Agora, pensem bem, se escrevendo dessa forma cheia de teias de aranhas o Olavinho ainda achava “inculta e bela” o velho e bom português, o que ele diria se recebesse mensagens pelos uatizape da vida? Caia duro, lógico.

E aí fica uma provocação: o idioma usado hoje nas redes sociais seria uma espécie de “Português Vulgar”. Nessa linha de raciocínio, a futura “flor do Lácio” dele derivada será uma língua de grunhidos e monossílabos. (acho que peguei pesado...).

terça-feira, 7 de junho de 2016

66 6 - ESSE É O NÚMERO

Como logo se verá, este é um dia (noite, para ser sincero) inolvidable. Por isso, segura no sonrisal:

MUSICISTA
Aquela senhora tinha o espírito tão musical que nunca fazia barraco ou discutia em altas vozes. Quando necessário, ela usava um tom maior. Sussurros e confidências, por outro lado, só aconteciam em tons menores. E depois que se apaixonou por um gigolô bem mais novo, confidenciava para as amigas que ele era seu sustenido.

DOS MARES O MENOR
Outro dia vi uma reportagem sobre a sujeira das águas da baía da Guanabara. Um velejador português que participará das próximas olimpíadas disse estar espantado com a quantidade de lixo boiando na água, fato que poderá ter influência no resultado das provas de vela. Apesar de pegar (e cheirar) mal, creio que essa situação está coerente com o esperado espírito olímpico dos atletas. Pode-se dizer que o lixo flutuante está no mar, à tona.

PARABÉNS PRA VOCÊ PRA MIM
Você sabia que hoje é dia de parabéns pra você pra mim? É, hoje o Blogson está completando dois aninhos de vida! Já está comendo papinha e agora só usa fralda para dormir. Tchutchuquinha! Nesse tempo, 697 posts foram publicados e expostos à falta de apetite dos leitores. Dois desses eram tão ruins que viraram ex-posts.

66 6 - ESSE É O NÚMERO
Para finalizar, a explicação do nome adotado para o post. Assustou com o título? Relaxe! 66 6 não é o "numero da besta". No máximo, pode ser o número de uma besta quadrada, de um bestalhão ou de um abestado, dependendo da origem e idade do "intérprete". Esse é o número do blogueiro que vos importuna.

-"Como assim?", dirão os mais afoitos. A resposta é simples: o blog foi criado no dia 8 de junho de 2014, mas alguns pais têm a mania idiota de forçar a barra para que seus pimpolhos sejam registrados no mesmo dia em que o papai orgulhoso nasceu. Esse é o caso do Blogson, oficialmente registrado um dia antes do efetivo nascimento, só para ficar na mesma data em que nasceu o blogueiro.

É, brothers/sisters, hoje é o dia em que Jotabê nasceu! Então, saca só: idade atual: 66 (dureza!); mês: 6 (junho); resultado: 66 6. É ou não é o número do besta? Fui.


ENDLESS LOVE

  Foi no carnaval de 1969 que se iniciou uma história de amor que eu não quero que acabe nunca – mesmo que eu saiba que um dia acabará. Já p...