sábado, 27 de abril de 2024

TEMAS QUE NÃO PRETENDO AMPLIAR

 
Alguns pensamentos meio caóticos ou delirantes têm invadido minha mente. Se fosse outro o tempo, ficaria divagando e escrevendo abobrinhas sobre cada um deles, transformados agora em postagens individuais (naturalmente!). Mas não estou com paciência para tentar tirar leite de pedra. Por isso, apenas registrarei o delírio inicial.
 
REALIDADE ALTERNATIVA
Não sei quanto às demais pessoas, mas hoje, para mim, a Vida Real acontece quando estou dormindo. É nesse momento em que estou vivo. No restante do tempo é só pesadelo.
 
EXTINÇÃO DOS SAPIENS
A espécie humana está no caminho da extinção graças à descrença na Ciência, à ganância, descaso, ambição, ao egoísmo, imediatismo e à ignorância dos conservadores radicais e dos fundamentalistas, sejam eles religiosos ou políticos.
 
O MELHOR DOS ABRAÇOS
Sempre digo a meus filhos que abraço é o melhor dos presentes que podem me dar em qualquer data, em qualquer época do ano. E de tanto dar e receber abraços eu acabei descobrindo o melhor de todos, verdadeiro “abraço gourmet”. Esta é a dica: o melhor abraço não é aquele apertado que quase esmaga os ossos de quem o recebe, não é aquele fugaz, de quem está constrangido ou com pressa. O melhor de todos os abraços é como aquele que o pai ou a mãe dão no bebê que está em seu colo: suave, delicado, demorado, sem pressa e cheio de carinho.

sexta-feira, 26 de abril de 2024

A COMPLICADA ARTE DE VER - RUBEM ALVES


Recebi de minha mulher um vídeo onde a atriz Alessandra Maestrini lê o texto transcrito a seguir. Alessandra Maestrini é a intéprete da hilária personagem Bozena do seriado "Toma lá, dá cá". Gostei tanto do texto que resolvi publicá-lo aqui no Blogson. Lêaí.


Ela entrou, deitou - se no divã e disse: "Acho que estou ficando louca". Eu fiquei em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura. "Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões – é uma alegria! Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas, cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica. De repente, a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de arte para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões... Agora, tudo o que vejo me causa espanto."
 
Ela se calou, esperando o meu diagnóstico. Eu me levantei, fui à estante de livros e de lá retirei as "Odes Elementales", de Pablo Neruda. Procurei a "Ode à Cebola" e lhe disse: "Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro: 'Rosa de água com escamas de cristal'. Não, você não está louca. Você ganhou olhos de poeta... Os poetas ensinam a ver".
 
Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A sua física é idêntica à física óptica de uma máquina fotográfica: o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não pertence à física.
 
William Blake sabia disso e afirmou: "A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê". Sei disso por experiência própria. Quando vejo os ipês floridos, sinto - me como Moisés diante da sarça ardente: ali está uma epifania do sagrado. Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipê que florescia à frente de sua casa porque ele sujava o chão, dava muito trabalho para a sua vassoura. Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo.
 
Adélia Prado disse: "Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra". Drummond viu uma pedra e não viu uma pedra. A pedra que ele viu virou poema.
 
Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem. "Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta abrir a janela para ver os campos e os rios", escreveu Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido. Nietzsche sabia disso e afirmou que a primeira tarefa da educação é ensinar a ver. O zen-budismo concorda, e toda a sua espiritualidade é uma busca da experiência chamada "satori", a abertura do "terceiro olho". Não sei se Cummings se inspirava no zen-budismo, mas o fato é que escreveu: "Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos meus olhos se abriram".
 
Há um poema no Novo Testamento que relata a caminhada de dois discípulos na companhia de Jesus ressuscitado. Mas eles não o reconheciam. Reconheceram-no subitamente: ao partir do pão, "seus olhos se abriram". Vinícius de Moraes adota o mesmo mote em "Operário em Construção": "De forma que, certo dia, à mesa ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção, ao constatar assombrado que tudo naquela mesa - garrafa, prato, facão – era ele quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em construção".
 
A diferença se encontra no lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos estão na caixa de ferramentas, eles são apenas ferramentas que usamos por sua função prática. Com eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas - e ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é muito pobre. Os olhos não gozam... Mas, quando os olhos estão na caixa dos brinquedos, eles se transformam em órgãos de prazer: brincam com o que vêem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo.
 
Os olhos que moram na caixa de ferramentas são os olhos dos adultos. Os olhos que moram na caixa dos brinquedos, das crianças. Para ter olhos brincalhões, é preciso ter as crianças por nossas mestras. Alberto Caeiro disse haver aprendido a arte de ver com um menininho, Jesus Cristo fugido do céu, tornado outra vez criança, eternamente: "A mim, ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente as têm na mão e olha devagar para elas".
 
Por isso – porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver – eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvãos da banalidade cotidiana. Como o Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria partejar "olhos vagabundos"...

ZERO RELEVÂNCIA

 Olha que interessante: por não ter mais inspiração para tentar ser poeteiro (cuidado com o entendimento!), pedi à Inteligência Artificial ChatGPT que fizesse uma poesia de QUATRO estrofes usando como tema o longo texto que publiquei ontem comemorando nossos 49 anos de casamento. Em menos de um minuto surgiu na tela do computador o poema a seguir. Aparentemente o ChatGPT ficou tão entusiasmado com nossa história, que resolveu escrever CINCO estrofes. Deve ser isso que chamam de "liberdade poética". Ou então ainda está aprendendo a contar.

Agora, falando sério, este post tem relevância zero para a história do Blogson e apenas confirma para mim que poesia de qualidade está muito além da observância de métrica e rima. Como disse o poeta Ferreira Gullar: "Você percebe quando o poema está bem escrito, mas não é poesia". Olhaí. 

No carnaval de 1969, um destino se traçou,
Entre um rapaz magro, feio, mas audaz,
E uma moça com olhos que encantou,
Uma história de amor que nunca se desfaz.

Na Sociedade dos Engenheiros, num salão a girar,
Entre marchinhas e abraços, o encontro se deu,
Ele, desengonçado, ela, a deslumbrar,
Num olhar, um laço que o coração teceu.

Dois meses de namoro, um término e um recomeço,
Até o "sim" dito num abril especial,
Casamento celebrado, em cada passo um apreço,
Duas cerimônias, um amor sem igual.

Nas alegrias e tristezas, juntos seguiram em frente,
Filhos nasceram, a família se expandiu,
Com ela ao lado, a vida mais contente,
Um amor que persiste, jamais se reduziu.

Hoje, 49 anos de caminhada ao seu lado,
Das brigas e desentendimentos, nada importou,
Pois ela, a companheira em todo passo dado,
É e sempre será, o amor que nunca acabou.

quinta-feira, 25 de abril de 2024

ENDLESS LOVE

 
Foi no carnaval de 1969 que se iniciou uma história de amor que eu não quero que acabe nunca – mesmo que eu saiba que um dia acabará. Já publiquei vários textos sobre esse relacionamento no Blogson, falando dela, de nós, e de como minha vida foi moldada e adquiriu sentido a partir do momento em que um garoto muito magro, muito feio e muito bobo conseguiu cativar uma menina lindíssima, dona dos olhos mais bonitos que já vi.
 
E esse relacionamento que parecia ser apenas um encontro improvável e sem futuro entre dois jovens está comemorando hoje 49 anos de casamento e 55 desde aquela noite de carnaval.
 
Tudo começou quando eu fui ao baile de carnaval da Sociedade Mineira dos Engenheiros, provavelmente graças a um convite arranjado por meu irmão ou por meus primos, que já estudavam engenharia. Eu era um sujeito magro, muito magro, desengonçado e feio. Além de feio, bobo, muito bobo.
 
Em Beagá, naquela época, o carnaval bom era o de clube. Na avenida, o que rolava eram os blocos caricatos. Escola de samba nem era considerada. A música predominante era a marchinha, muito melhor para abraçar a menina enquanto se davam voltas no salão. Aliás, o povo que brincava nos clubes ficava como uma galáxia ou nebulosa, girando, girando, enquanto a banda (som ao vivo, por favor!) cantava “foi bom te ver outra vez, está fazendo um ano, foi no Carnaval que passou...”
 
Então, foi nesse clima, em um dia 15 de fevereiro, que eu vi aquela maravilha de menina, com os olhos lindíssimos ainda mais acentuados pela maquiagem. Ela estava vestindo um pareô verde e azul, se não me engano. Havia mais alguém com o mesmo traje, uma ou duas meninas, mas só fiquei ligado nela, não só pela beleza incrível, mas por um detalhe meio ridículo: Eu achei que ela tinha olhado para mim com algum interesse. Na prática, o que tinha chamado sua atenção era a pinta (nevo) que tenho no rosto, na época coberta de pelos pretos e muito chamativa (“chamativa” como sinônimo de feia).
 
Para encurtar a conversa, namoramos em casa durante uns dois ou três meses até que sua mãe nos viu de mãos dadas, uma “libertinagem” inadmissível naquela época para tão pouco tempo de relacionamento. Resultado: término do namoro, só reatado em um dia 25 de abril de 1970, depois de muita dor de cotovelo. A partir daí nunca mais nos separamos, namoramos durante quatro anos, ficamos noivos em 25 de abril de 1974 e nos casamos em 25 de abril de 1975, prova de que um pouco de TOC não faz tão mal assim.
 
Quando nos casamos, era normal que acontecessem duas cerimônias. O casamento religioso era o que dava ibope, tinha valor e era aceito pelos parentes e amigos do noivo e da noiva - imediatamente escaneada dos pés à cabeça pelas tias e primas bisbilhoteiras do noivo, atentas a um eventual e suspeito aumento de volume abdominal (“será que é o que estou pensando?”).
 
Para o casamento civil, embora acontecesse primeiro, ninguém dava muita bola (“mera formalidade burocrática!”). Isso podia afetar até o status dos padrinhos escolhidos. O que foi parcialmente confirmado no nosso caso. Mesmo sendo obrigatórios apenas dois, chamamos uma penca de parentes queridos para testemunhar a constituição de nossa “sociedade de responsabilidade limitada”.
 
A programação daquele dia foi tensa, intensa e cheia de alegria e felicidade, com as bênçãos e cumprimentos de pais, parentes e uma centena de amigos e conhecidos, muitos deles provavelmente, atraídos pela mega recepção providenciada por meu sogro. Na manhã seguinte, ao acordar, senti a maior emoção da minha vida ao ver aquela menina linda deitada ao meu lado, e perceber que a partir desse dia era responsável por ela e que com ela dividiria muitas alegrias, decepções e tristezas pela vida afora. Eu era agora um jovem casado, com 24 anos.
 
Nosso primeiro filho nasceu quando eu já estava com 26 anos. Graças à minha amada, a ele e a seus irmãos, minha vida foi toda escrita e reescrita, sempre para melhor. No devido tempo nossa alegria ficou completa com a "adoção" de nossas filhas do coração e o nascimento de nossas encantadoras netinhas.
 
Hoje, 49 anos depois que aquela menina linda disse “Sim” à pergunta se me aceitava como esposo “na saúde e na doença, na alegria e na tristeza” formuladas pelo padre, eu me lembro de nossos pais e de muitos parentes e amigos queridos que estiveram presentes em nossa cerimônia de casamento. Como disse Manoel Bandeira, “Estão todos dormindo / Estão todos deitados / Dormindo / Profundamente”.
 
E como acontece com todos os casais, nesse tempo todo eu e ela tivemos várias brigas e desentendimentos, motivados muitas vezes por bobagens irrelevantes ou motivos mais sérios. Eu a decepcionei e magoei, ela me irritou, mas nada disso importa, porque ela sempre esteve ao meu lado, apoiando-me ou consolando-me quando eu mais precisei.
 
E, acima de tudo, sei que até o fim da minha vida nunca deixarei de amá-la, pois ela sempre foi, é e será a mulher da minha vida.


terça-feira, 23 de abril de 2024

ALELUIA, ALELUIA!

 
Há muito tempo, deixei de comentar as notícias que lia nos grandes portais da internet. Esses comentários recebiam títulos como "Comentando as últimas", "Comentando as penúltimas", "Comentando as recentes", etc. Bastava tomar conhecimento de algum fato ou declaração risível, idiota ou condenável envolvendo alguma personalidade "pública" para exercitar minha ironia. Sinceramente, não saberia dizer por que parei de fazer isso. No entanto, hoje, ao ler uma notícia publicada no portal UOL, não resisti à tentação de fazer uma nova postagem sobre o assunto. Com reportagem de Caíque Alencar, olha que maravilha de notícia:
 
Justiça proíbe leitura da Bíblia na Câmara de Bauru: “Afronta Estado laico”
A Justiça de São Paulo proibiu a leitura da Bíblia durante sessões da Câmara Municipal de Bauru. Juízes decidiram que a prática é uma violação ao Estado laico. A proibição foi determinada de forma unânime pelo Tribunal de Justiça de SP. (...)
O Tribunal também vetou citação à "proteção de Deus". Uma resolução da Câmara de Bauru previa que, em todas as sessões, o presidente da Casa devia dizer a seguinte frase: "Invocando a proteção de Deus, os Vereadores à Câmara Municipal de Bauru, membros da Comissão Interpartidária, iniciamos seus trabalhos". Foi essa parte inicial que a Justiça mandou tirar.
Trecho da decisão de Justiça de São Paulo:
“O ato normativo impugnado promove predileção para uma determinada crença em detrimento das demais religiões, ofendendo a liberdade religiosa”.
A Câmara não vai poder expor a Bíblia durante as sessões. A decisão da Justiça também derrubou uma determinação do regimento interno que mandava dispor um exemplar sobre a Mesa Diretora. A ação foi ajuizada pela Procuradoria-Geral de Justiça.
 
Achei bastante engraçada essa notícia, pois finalmente juízes ajuizados tomaram a decisão mais apropriada e em conformidade com a Constituição brasileira. Pouco me importa se alguém crê ou professa sua fé conforme uma das diversas religiões e cultos existentes no Brasil. O que sempre me irritou é a visão estreita de que apenas esta ou aquela religião está correta. Se somos um Estado laico, não faz sentido estabelecer normas e regulamentos baseados na crença religiosa de alguém ou de algum grupo. Expor (ideias, crenças, etc.) nunca foi sinônimo de impor.
 
E, cá entre nós, em um país teoricamente laico, frases do tipo"Brasil acima de tudo, Deus acima de todos" utilizadas em discursos de autoridades e líderes religiosos cristãos sempre foram para mim apenas constrangedoramente ridículas. Como ficariam os cristãos se ouvissem a mesma frase onde a palavra "Deus" fosse substituída por "Ganesh", "Xangô" ou "Buda", por exemplo?

Uma coisa é certa: os praticantes de umbanda, candomblé, os animistas, os muçulmanos, os budistas, os hinduístas, os ateus e todas as pessoas que discreta e respeitosamente professam sua fé sem tentar impô-la a ninguém, agradecem essa decisão da Justiça de São Paulo.
 

segunda-feira, 22 de abril de 2024

A IRONIA CONTINUA ELITISTA

 
O mais recente post do blog “A Marreta do Azarão” apresenta uma piada gráfica sobre “números não binários”, feita por ele com o auxílio de Inteligência Artificial. Graças à minha crescente dificuldade de raciocínio e de pensar de forma criativa, “fora da caixa”, confesso não ter entendido porra nenhuma da ironia e humor presentes no desenho publicado. Pior, precisei pedir a ele que me explicasse a piada!
 
Essa situação constrangedora e lamentável me fez recordar de um post publicado em 2014, no qual transcrevi trechos de uma crônica encontrada na revista VEJA, de autoria de Sérgio Rodrigues. E por me enquadrar hoje no grupo das pessoas com dificuldade de entender a ironia, decidi transcrever trechos desse post publicado em uma época em que eu conseguia captar e me divertir com a ironia e o humor refinado produzidos por outras pessoas e até mesmo por mim. Eu era feliz e não sabia! Olhaí:
 
A IRONIA É ELITISTA
O riso é um mecanismo de seleção. Une as pessoas, mas também as separa. Quanto menos física se torna a comédia, quanto mais se afasta do pastelão e da careta na direção do outro extremo do arco, o espírito puro, o wit, a ironia fina, mais gente exclui do seu campo. Passa a depender pesadamente da linguagem e exige um grau de domínio de meios de expressão e referências culturais – e até uma certa predisposição ideológica para captar “a mensagem” – que costumam vir associados a uma boa formação educacional.
 
Ser sutil pode ser necessário aos espirituosos, mas é também um perigo. Multidões não pescam ironia. (...) Ao se defender, alegando que quis dizer o contrário do que disse, que a isso chamam ironia e tal, o irônico irrita ainda mais quem já estava furioso com ele. Agora o sujeito se sente escalado no papel de palhaço: a piada que uma pessoa descobre não ter entendido sempre lhe parece feita também às suas custas.
 

domingo, 21 de abril de 2024

FAZENDO ECO

 
É fato notório que os mais velhos reclamem e critiquem os mais novos por seu comportamento livre e aparentemente transgressor com comentários do tipo “No meu tempo...” ou “Quando eu tinha a sua idade...”. Esta é a essência do chamado “choque de gerações”, pois os idosos ficam chocados com a alegria e descontração da meninada (piada ruim!).
 
Mas hoje – e posso estar errado ao dizer isso -, graças a programas populares exibidos nos canais abertos de TV e “reality shows” tipo Big Brother eu percebo e lamento o que me parece ser um empobrecimento cultural e comportamental da maioria da população.
 
Hoje, parece que a sociedade está sendo gradualmente moldada pela vulgaridade, pela boçalidade e por todas as suas manifestações correlatas. Aparentemente valoriza-se mais a ignorância, a falta de cultura e de educação. O culto ao bruto, ao rude, ao grosseiro, ao inculto e ao ignorante parece definir o perfil predominante da juventude atual.
 
Talvez a explicação para esse fenômeno esteja nestas palavras do escritor Humberto Eco: 
“I social media danno diritto di parola a legioni di imbecilli che prima parlavano solo al bar dopo un bicchiere di vino, senza danneggiare la collettività. Venivano subito messi a tacere, mentre ora hanno lo stesso diritto di parola di un Premio Nobel. È l’invasione degli imbecilli”.(deu trabalho encontrar o original, transcrito aqui só pela beleza das palavras em italiano).
  
Traduzindo, 
“As mídias sociais deram o direito à fala a legiões de imbecis que, anteriormente, falavam só no bar, depois de uma taça de vinho, sem causar dano à coletividade. Diziam imediatamente a eles para calar a boca, enquanto agora eles têm o mesmo direito à fala que um ganhador do Prêmio Nobel. É a invasão dos imbecis”
 
Mesmo fazendo eco ao que disse o escritor italiano (piada ruim!), fico me perguntando se esse não terá sido sempre o comportamento da maioria da população em qualquer época, se esses traços não estiveram presentes de maneira recorrente ao longo da história da civilização. Qual a sua opinião, robô?

 

sábado, 20 de abril de 2024

DON'T KNOW WHY - NORAH JONES

 
As músicas cujo link publiquei aqui no velho Blogson fazem ou poderiam fazer parte de uma playlist criada para ser ouvida no carro, deitado em uma rede ou simplesmente sentado em frente “a um velho computador” (obrigado, Ritchie). Nessa lista, há de tudo, desde trechos de música erudita a melodias despretensiosas, passando pela sofisticação da bossa nova e do jazz, além rock, blues, tango, bolero e samba. Nem todas foram compostas em 'língua de gente' (português), mas o que mais me atrai sempre foi a melodia. O sentimento comum a todas é o prazer que me causaram e ainda causam quando as ouço.
 
Nessa linha é que entra a gravação da melodia “Don't know why” feita por Norah Jones. Para quem não sabe (e eu também não sabia), o nome original da cantora é Geetali Norah Jones Shankar (que mudou aos 16 anos, abandonando o sobrenome famoso). Seu pai, Ravi Shankar, foi um mestre da cítara e ícone da música indiana, mundialmente famoso depois de se apresentar no Festival de Woodstock e no Concerto de Bangladesh (organizado pelo ex-Beatle George Harrison). Depois da fama, fez uma turnê mundial, apresentando-se inclusive em Beagá (eu fui, mas dormi noventa por cento do tempo, graças ao som hipnótico da cítara).
 
Então é isso. Falei demais e esqueci de dizer que a música é linda, a interpretação é linda e a voz da cantora é linda. Escutaí.



 

terça-feira, 16 de abril de 2024

TEM ROBOI NA LINHA!

 
Você já ouviu alguém usar a expressão “tem boi na linha”? Embora pareça uma exclamação advinda do nosso pujante agronegócio, está mais para assunto do Ministério dos Transportes que da Agricultura.  E se já ouviu essa expressão, talvez tenha alguns aninhos a mais a lhe pesar na cacunda, pois é uma locução surgida no tempo de nossas avós.
 
Segundo li na internet, sua origem remonta aos primórdios das ferrovias no Brasil, no século XVIII. Os trilhos eram invadidos por carroças e carruagens, pedestres e até por boiadas. Se um dos animais se instalasse sobre os trilhos da via férrea, o maquinista deveria parar o trem, porque, literalmente, havia boi na linha”.
 
Mas mesmo estando no século XXI, percebi que tem roboi na linha, ou melhor, tem robô no blog! Só pode ser esta a explicação para ter 865 acessos só hoje (até agora).
 
Eu estava felizão ontem com a quantidade absurda de acessos ao Blogson nos últimos dias. Ontem, por exemplo, 57 posts foram acessados, talvez um recorde do blog. Mas essa quantidade incrível de acessos, se feitos por apenas uma pessoa, me levaram a pensar que as postagens acessadas não estavam sendo lidas, pois não dá tempo! E digo isso porque eu tento reler cada um dos posts acessados, mas é impossível ler tudo em um único dia! Isso ratificava o comentário feito no post "Visita ao Museu": estavam visitando o Blogson sem se deter um pouco para ler alguma coisa.
 
Mas hoje a coisa mudou. Um blog desclassificado como é o Blogson Crusoe não pode ter 1.366 acessos em um único dia! Ainda mais sem uma quantidade proporcional de visualizações dos posts publicados. A menos que seja nova revoada de robozinhos. Nesse caso, permito-me imaginar que a inteligência artificial dos robozinhos está apaixonada pela burrice natural do blogueiro. Para mim não tem problemas, mas vou logo avisando que não rola nada, nem mesmo beijinho no ombro, pois já sou comprometido. E pular cerca por causa de robois, nem pensar. Mesmo que eu me chamasse Carambola.

sábado, 13 de abril de 2024

VISITA AO MUSEU

 
Para começar, já aviso que a importância deste post no novo sistema de avaliação de qualidade do material publicado o inclui na categoria “Irrelevante”, servindo apenas para registrar uma curiosidade boba que surgiu em minha mente. O negócio é o seguinte: alguém – e já adianto que é muito bem vindo –, começou a acessar vários posts do Blogson.
 
Ao detectar esse movimento na estatística diária, percebi que não me lembrava mais de muitas dessas postagens. Decidi, então, reler cada uma delas. Descobri também que há “cinquenta tons” de qualidade nas postagens acessadas, desde ótimos textos até o mais puro lixo. Essa descoberta me levou a querer classificar os mais de 2.800 posts publicados de acordo com sua qualidade. Claro, segundo meu ponto de vista.
 
Mas esse assunto já foi mais bem explicado em um post anterior.  O que me motivou a registrar minha curiosidade é a pergunta: Quem vem acessando os posts antigos está realmente lendo os textos? E esta é a explicação da dúvida: até vinte posts têm sido acessados diariamente. Mesmo que eu não seja prolixo como o Azarão do blog A Marreta do Azarão, grande parte do que escrevi obedece a um padrão: duas páginas em papel A4, fonte Arial 12.
 
Agora pensem comigo: 20 postagens acessadas por dia atingiriam um máximo de 40 páginas a serem “desbravadas”. Até para mim, que acesso compulsivamente o que escrevi, a leitura de 40 páginas diárias de irrelevâncias é dose pra leão. E foi isso que me fez lembrar das visitas a um museu. A maioria das pessoas passeia ou passa pelas telas, esculturas, documentos e relíquias expostas sem se deter diante delas, sem prestar muita atenção, sem ler os textos explicativos sobre cada obra.
 
E essa foi a dúvida surgida. Não há criticas no meu comentário, pois estou achando ótima essa movimentação. Apenas me pergunto se quem tem acessado as postagens antigas está lendo tudo ou só fazendo turismo. De toda forma, só posso agradecer essas visitas. Fui.

quinta-feira, 11 de abril de 2024

RELEITURAS II

 
Como talvez até os seguidores mais recentes e os leitores que tropeçaram no Blogson já devem ter percebido, minha relação com o blog lembra o casal da música “Entre tapas e beijos”, pois os sentimentos de ódio e o amor foram se alternando desde 2014, ano de criação desta bagaça.
 
Por isso, sempre que falta assunto, sempre que um antigo seguidor desembarca desta canoa furada ou quando percebo o desinteresse cada vez maior pelas tranqueiras que publico, minha reação é ficar puto, me enfurecer, pensar em parar de fazer postagens quase diárias e frescuras do gênero.
 
Curiosamente, as estatísticas dos últimos dias (espero que não sejam realmente os últimos!) têm mostrado uma situação inesperada, a “escavação arqueológica” feita por alguém que mostrou interesse em acessar algumas das mais de 2.800 publicações do blog.
 
O bizarro dessa história é que por adotar títulos frequentemente idiotas para os textos que fui publicando eu não me lembro mais de que tratam esses posts. Por isso, resolvi reler os que foram acessados, constatando assim a qualidade oscilante do que escrevi. Alguns poucos são ótimos (obrigado!), a maioria é “mais ou menos” e uma minoria causa até vergonha, de tão ruim.
 
Alegrei-me também por reler comentários divertidos de leitores por quem tinha um sincero sentimento de amizade, mesmo que virtual
 
Por isso, por não querer falar de elon musks, putinhos, maduros e outros escrotos que me causam náusea, resolvi cuidar do meu próprio umbigo, ou seja, preparar um ranking de todos os posts publicados. E começarei pelos mais recentemente acessados. Mas sem pressa nem data para terminar.
 
E imaginei cinco categorias para enquadrá-los: “muito bom”, “bom”, “bonzinho”, “irrelevante” e “ruim”. “Bonzinho” significa “mais ou menos”.E “ruim” pode lido como “ruim pra caramba” ou “lixão”. Eu até pensei em criar também a faixa “ótimo”, mas o bom senso prevalesceu sobre a vaidade descontrolada.
 
E se a estimada leitora e o distinto leitor quiserem saber como classificarei este post, já aviso: é lixo puro. Mais ou menos a mesma opinião que tenho das personalidades citadas.

quarta-feira, 10 de abril de 2024

BICHINHO DE ESTIMAÇÃO

 
Este texto atende apenas ao meu fascínio e curiosidade infantis pelo passado remoto, mas também curto as especulações pelo que ainda pode acontecer. Se isso for uma espécie de escapismo, uma válvula de segurança para não explodir diante das tragédias e vicissitudes da vida moderna, tudo bem, pois não espero mais nada da espécie humana, do homo nada sapiens.
 
Então, a imagem espetacular do crânio de um plesiossauro, animal que viveu há 150 milhões de anos, cumpre essa finalidade. Não consigo imaginar o mundo em que viveu; apenas percebo que "a nave nossa irmã", apesar de linda e talvez única, nunca deixou de ser ameaçadora para os seres vivos que surgiram e desapareceram ao longo dos bilhões de anos desde o surgimento da vida neste planeta. Parafraseando Tom Jobim, a Terra nunca foi para amadores.
 
A reprodução no Blogson destas imagens encontradas na internet será muito útil para mim quando o leite com toddy (gelado, por favor) tiver acabado. Olha a delicadeza desse bichinho de estimação:





terça-feira, 9 de abril de 2024

BALAIO CHEIO


Quem você identifica como pessoas irritantes? Dito de forma mais coloquial quem você considera gente chata?
 
Talvez eu pertença a algum grupo ou até a mais de um dos que critico. Mas, por ser naturalmente antissocial, não suporto pessoas arrogantes, ignorantes, preconceituosas, burras, portadoras de analfabetismo funcional, sem educação, invejosas, fundamentalistas religiosos, radicais, moralistas, intolerantes, rancorosas, etc. São tantas que dá até para encher um balaio. Ou o saco.
 
Pode ser uma opinião elitista (para o bem e para o mal, eu sou elitista), mas talvez devido a um esgotamento físico e mental mais acentuado, não consegui evitar o desejo de dar uma "estocada" em todas as pessoas que se enquadram nesse perfil, sejam elas conhecidas ou desconhecidas (talvez a carapuça possa também me servir, não é mesmo?). E o Facebook foi o meio escolhido (ainda bem, porque a frase ficou um lixo).








segunda-feira, 8 de abril de 2024

A MORTE DE GILGAMESH

 
O destino decretado por Enlil da montanha, o pai dos deuses, foi cumprido: "No mundo inferior a escuridão vai mostrar-lhe uma luz: na humanidade, por todas as gerações conhecidas, ninguém legará um monumento que se compare ao dele. Os heróis e os sábios, como a lua nova, têm seus períodos de ascensão e declínio. Os homens dirão: 'Quem jamais governou com tamanha força e tamanho poder?' Como no mês escuro, no mês das sombras, sem ele não há luz. Oh, Gilgamesh, era este o significado de teu sonho. Foi-te dado um trono, reinar era teu destino; a vida eterna não era teu destino. Assim, não fiques triste, não te atormentes, nem te deixes oprimir por causa disso. Ele te deu o poder de atar e desatar, de ser as trevas e a luz da humanidade. Ele te concedeu supremacia sem paralelo sobre o povo, vitória nas batalhas de onde não escapam fugitivos; o sucesso é teu nas incursões militares e nos implacáveis assaltos por ti empreendidos. Mas não abuses deste poder; sê justo com teus servos no palácio, faze justiça ante a face do Sol."
 
O rei se deitou e não mais se levantará;
O Senhor de Kullab não mais se levantará;
Ele venceu o mal, ele não mais voltará;
Embora tivesse braços fortes, ele não mais se levantará;
Ele era sábio e tinha um belo rosto, ele não mais voltará;
Ele adentrou a montanha, ele não mais voltará;
Em seu leito fatídico ele jaz, ele não mais se levantará;
De seu divã multicolorido ele não mais voltará.
 
O povo da cidade, os grandes e os humildes, não estão em silêncio. Eles se lamentam em voz alta; toda a humanidade se lamenta em voz alta. O destino se cumpriu; como uma gazela apanhada num laço, como um peixe fisgado, ele jaz estirado sobre a cama. O desumano Namtar pesa sobre ele; Namtar, que não tem mão nem pé, que não bebe água nem come carne.
Por Gilgamesh, filho de Ninsun, eles fizeram inúmeras oferendas; sua esposa querida, seu filho, sua concubina, seus músicos, seu bufão e todos os que pertenciam à sua casa; seus servos, seus camareiros, todos os que viviam no palácio fizeram inúmeras oferendas a Gilgamesh, filho de Ninsun, o coração de Uruk. Eles fizeram inúmeras oferendas a Ereshkigal, a Rainha dos Mortos, e a todos os deuses do inferno. A Namtar, que é o destino, eles fizeram oferendas. Pão para Neti, o Sentinela do Portão; pão para Ningizzida, o deus da serpente, o senhor da Arvore da Vida; pão também para Dumuzi, o jovem pastor, para Enki e Ninki, para Endukugga e Nindukugga, para Enmul e Ninmul, todos eles deuses ancestrais, antepassados de Enlil. Um banquete para Shulpae, o deus dos festejos. Para Samuqan, o deus dos rebanhos, para a mãe Ninhursag e para todos os deuses da criação, para a hoste do céu, sacerdote e sacerdotisa fizeram inúmeras oferendas fúnebres. Gilgamesh, o filho de Ninsun, jaz em seu túmulo. No lugar das oferendas ele ofertou o pão, no lugar da libação ele derramou o vinho. Naqueles dias partiu o senhor Gilgamesh, o filho de Ninsun, o rei, o incomparável, um homem sem rival que não negligenciou Enlil, seu mestre. Oh, Gilgamesh, senhor de Kullab, grande é a tua glória.


Comentário final: O texto da Epopeia de Gilgamesh publicado aqui no Blogson é uma tradução de Carlos Daudt de Oliveira. Não me pergunte quem é ele nem de que língua foi traduzido o texto encontrado na internet. O que sei é que a língua original era o sumério, traduzido para o acadiano por ordem de Assurbanipal. Esse é o texto mais completo encontrado, mas as poucas placas em sumério apenas ratificam a autenticidade do texto traduzido. Depois disso acharam versões incompletas e até divergentes em outras línguas antigas. O trabalho dos tradutores do século XIX e XX deve ter sido muito árduo. Por isso deve ser vista com condescendência e boa vontade a utilização de algumas palavras modernas para dar sentido ao texto e definir pesos e medidas.
 
Se alguém quiser ler ou copiar o arquivo em PDF que utilizei, basta seguir este link:
https://geha.paginas.ufsc.br/files/2017/04/A-Epop%C3%A9ia-de-Gilgamesh.-Tradu%C3%A7%C3%A3o-de-Carlos-Daudt-de-Oliveira.-Martins-fontes-2011.-ISBN-85-336-1389-X.pdf

 

domingo, 7 de abril de 2024

A VOLTA

 

Utnapishtim disse: "Quanto a ti, Gilgamesh, quem irá reunir os deuses por tua causa, de maneira a poderes encontrar a vida que estás buscando? Mas, se quiseres, vem e põe-te à prova: terás apenas que lutar contra o sono por seis dias e sete noites." Mas, enquanto Gilgamesh estava lá sentado, descansando sobre as ancas, uma bruma de sono, semelhante à lã macia cardada do velocino, pairou sobre ele, e Utnapishtim disse a sua mulher: "Olha para ele agora, o homem forte e poderoso que quer viver por toda a eternidade; as brumas do sono já estão pairando sobre ele." Sua mulher replicou: "Toca no homem para acordá-lo, para que possa retornar em paz ao seu país, voltando pelo portão pelo qual entrou." Utnapishtim disse a sua mulher: "Todos os homens são impostores, até a ti ele tentará enganar; por isso, põe-te a assar pães, cada dia um, e coloca-os ao lado de sua cabeça; e marca na parede o número de dias que ele dormiu."
Ela então se pôs a assar os pães, cada dia um, e a colocá-los ao lado de cabeça de Gilgamesh, marcando na parede o número de dias que ele vinha dormindo. Chegou o dia em que o primeiro pão estava duro, o segundo parecia couro, o terceiro se encharcara, o bolor se formara na crosta do quarto, o quinto havia mofado, o sexto estava fresco e o sétimo ainda estava sobre as brasas. Utnapishtim então tocou em Gilgamesh e ele acordou. Gilgamesh disse a Utnapishtim, o Longínquo: "Eu mal havia começado a dormir quando tocaste em mim e me acordaste." Mas Utnapishtim disse: "Conta estes pães e vê quantos dias dormiste, pois o primeiro está duro, o segundo parece couro, o terceiro está encharcado, a crosta do quarto está embolorada, o quinto está mofado, o sexto está fresco e o sétimo ainda se encontrava sobre as brasas incandescentes quando toquei em ti e te acordei." Gilgamesh disse: "Oh, que farei, Utnapishtim, para onde irei? O ladrão da noite já se apoderou do meu corpo, a morte habita o meu espaço; encontro a morte onde quer que pouse meus pés."
Utnapishtim falou então a Urshanabi, o barqueiro: "Pobre de ti, Urshanabi, de agora em diante este porto de abrigo te odeia; ele não mais te acolherá, nem tampouco terás permissão para atravessar estas águas. Vai, agora, banido destas margens. Mas este homem, a quem conduziste, trazendo-o aqui, cujo corpo está coberto de imundície e cujos membros perderam sua graça e encanto, tendo sido deteriorados peIo uso de peles de animais, leva-o para se banhar. Ele então lavará seus cabelos na água, deixando-os limpos como a neve; jogará fora suas peles e deixará que as águas do oceano as levem para longe. A beleza de seu corpo será então revelada. A fita que ele usa na testa ficará como nova, e ele receberá roupas para cobrir sua nudez. Até que ele chegue à sua cidade de origem e até que complete sua jornada, estas roupas não darão sinal de uso e parecerão sempre novas." Assim, Urshanabi pegou Gilgamesh e levou-o para se banhar. Ele lavou seus cabelos, deixando-os limpos como a neve; ele jogou fora suas peles, que foram levadas para longe pelo mar. A beleza de seu corpo foi revelada. A fita que usava na testa ficou como nova, e ele recebeu roupas para cobrir sua nudez, roupas que não dariam sinais de uso, mas pareceriam sempre novas até que ele chegasse a sua cidade de origem e sua jornada chegasse ao fim.
Então Gilgamesh e Urshanabi colocaram o barco na água, embarcaram e se prepararam para partir; mas a mulher de Utnapishtim, o Longínquo, disse ao marido: "Gilgamesh chegou aqui exausto, está extenuado; o que darás a ele para levar de volta a seu país?" Então Utnapishtim falou, e Gilgamesh tomou uma zinga em suas mãos e trouxe o barco de volta à margem. "Gilgamesh, chegaste aqui exausto, e te extenuaste; o que darei a ti para levares de volta a teu país? Gilgamesh, eu te revelarei um segredo, é um mistério dos deuses que estou te revelando. Existe uma planta que cresce sob as águas; ela tem um espinho que espeta como o de uma rosa. Ela vai ferir tuas mãos, mas, se conseguires pegá-la, terás então em teu poder aquilo que restaura ao homem sua juventude perdida."
Ao ouvir isso, Gilgamesh abriu as comportas para que uma corrente de água doce pudesse levá-lo ao canal mais profundo. Amarrou pesadas pedras a seus pés e elas o arrastaram para baixo, até o leito do rio. Lá ele encontrou a planta que crescia sob a água. Embora ela o espetasse, Gilgamesh tomou-a nas mãos. Ele então cortou as pesadas pedras presas a seus pés e as águas o carregaram, atirando-o à margem. Gilgamesh disse para Urshanabi, o barqueiro: "Vem ver esta maravilhosa planta. Suas virtudes podem devolver ao homem toda a sua força perdida. Eu a levarei à Uruk das poderosas muralhas. Lá, eu darei a planta aos anciãos para que a comam. O nome dela será 'Os Velhos Voltaram A Ser Jovens'. E, finalmente, eu mesmo a comerei e recuperarei toda a minha juventude perdida." Gilgamesh então retornou pelo portão por onde havia entrado. Gilgamesh e Urshanabi viajaram juntos. Depois das primeiras vinte léguas, eles quebraram seu jejum; depois de mais trinta léguas, pararam para passar a noite.
Gilgamesh encontrou um poço de água fresca e entrou nele para se banhar; mas nas profundezas do poço havia uma serpente, e a serpente sentiu o doce cheiro que emanava da flor. Ela saiu da água e a arrebatou; e imediatamente trocou de pele e voltou para o fundo do poço. Gilgamesh então sentou-se e chorou. As lágrimas corriam por seu rosto e ele tomou a mão de Urshanabi: "Oh, Urshanabi, foi para isso que esfalfei minhas mãos? Foi para isto que arranquei sangue de meu coração? Nada obtive para mim, nada; mas a fera do poço agora usufrui do meu esforço. A corrente já arrastou a planta por vinte léguas, levando-a de volta aos canais onde a encontrei. Eu encontrei algo prodigioso e agora o perdi. Deixemos o barco nesta margem e vamos embora."
Depois de caminharem vinte léguas, eles quebraram seu jejum; depois de trinta léguas, eles pararam para passar a noite. Em três dias de viagem eles haviam percorrido a pé um percurso equivalente a uma jornada de um mês e quinze dias. Ao completarem a jornada, eles chegaram a Uruk, a cidade das poderosas muralhas. Gilgamesh falou a ele, a Urshanabi, o barqueiro: "Urshanabi, sobe na muralha de Uruk, inspeciona o terraço onde sua estrutura foi fundada, examina bem a alvenaria de tijolos; vê se não foram usados tijolos cozidos. Não foram os sete sábios que assentaram estas fundações? Um terço do todo é cidade, um terço é jardim e um terço é campo, incluindo o períbolo da deusa Ishtar. Estas partes e o períbolo formam toda a Uruk."
Isto também foi obra de Gilgamesh, o rei, que percorreu as nações do mundo. Ele era sábio, ele viu coisas misteriosas e conheceu muitos segredos. Ele nos trouxe uma história dos dias que antecederam o dilúvio. Partiu numa longa jornada, cansou-se, exauriu-se em trabalhos e, ao retornar, descansou e gravou na pedra toda a sua história.
 

sábado, 6 de abril de 2024

A MORTE DE UM GÊNIO

Ziraldo morreu hoje, mas isso está errado! Os gênios nunca deveriam morrer! 




A HISTÓRIA DO DILÚVIO


Comentário jotabélico: Apesar de tê-los aproveitado como títulos das postagens, acho totalmente improvável que um poema antiquíssimo transformado em prosa por algum tradutor tivesse títulos auxiliares. Isso fica particularmente claro no título deste post.
 
"Conheces a cidade de Shurrupak, que fica às margens do Eufrates? A cidade envelheceu, assim como os deuses que ali moravam. Havia Anu, o senhor do firmamento e pai da cidade; o guerreiro Enlil, seu conselheiro; Ninurta, o ajudante; e Ennugi, que vigiava os canais. Entre eles também se encontrava Ea. Naqueles dias a terra fervilhava, os homens multiplicavam-se e o mundo bramia como um touro selvagem. Este tumulto despertou o grande deus. Enlil ouviu o alvoroço e disse aos deuses reunidos em conselho: 'O alvoroço dos humanos é intolerável, e o sono já não é mais possível por causa da balbúrdia.' Os deuses então concordaram em exterminar a raça humana. Foi o que Enlil fez, mas Ea, por causa de sua promessa, me avisou num sonho. Ele denunciou a intenção dos deuses sussurrando para minha casa de colmo: 'Casa de colmo, casa de colmo! Parede, oh, parede da casa de colmo, escuta e reflete. Oh, homem de Shurrupak, filho de Ubara-Tutu, põe abaixo tua casa e constrói um barco. Abandona tuas posses e busca tua vida preservar; despreza os bens materiais e busca tua alma salvar. Põe abaixo tua casa, eu te digo, e constrói um barco. Eis as medidas da embarcação que deverás construir: que a boca extrema da nave tenha o mesmo tamanho que seu comprimento, que seu convés seja coberto, tal como a abóbada celeste cobre o abismo; leva então para o barco a semente de todas as criaturas vivas.'
"Quando compreendi, eu disse ao meu senhor: 'Sereis testemunha de que honrarei e executarei aquilo que me ordenais, mas como explicarei às pessoas, à cidade, aos patriarcas?' Ea então abriu a boca e falou a mim, seu servo: 'Dize-lhes isto: Eu soube que Enlil está furioso comigo e já não ouso mais caminhar por seu território ou viver em sua  cidade; partirei em direção ao golfo para morar com o meu senhor Ea. Mas sobre vós ele fará chover a abundância, a colheita farta, os peixes raros e as ariscas aves selvagens. A noite, o cavaleiro da tempestade vos trará uma torrente de trigo.'
"Ao primeiro brilho da alvorada, toda a minha família se reuniu ao meu redor; as crianças trouxeram o piche e os homens todo o resto necessário. No quinto dia eu aprontei a quilha, montei a ossatura da embarcação e então instalei o tabuado. O barco tinha um acre de área e cada lado do convés media cento e vinte côvados, formando um quadrado. Construí abaixo mais seis conveses, num total de sete, e dividi cada um em nove compartimentos, colocando tabiques entre eles. Finquei cunhas onde elas eram necessárias, providenciei as zingas e armazenei suprimentos. Os carregadores trouxeram o óleo em cestas. Eu joguei piche, asfalto e óleo na fornalha. Mais óleo foi consumido na calafetagem, e mais ainda foi guardado no depósito pelo capitão da nave. Eu abati novilhos para a minha família e matava diariamente uma ovelha. Dei vinho aos carpinteiros do barco como se fosse água do rio, vinho verde, vinho tinto, vinho branco e óleo. Fez-se então um banquete como os que são preparados à época dos festejos do ano novo; eu mesmo ungi minha cabeça. No sétimo dia, o barco ficou pronto.
"Foi com muita dificuldade então que a embarcação foi lançada à água; o lastro do barco foi deslocado para cima e para baixo até a submersão de dois terços de seu corpo. Eu carreguei o interior da nave com tudo o que eu tinha de ouro e de coisas vivas: minha família, meus parentes, os animais do campo — os domesticados e os selvagens — e todos os artesãos. Eu os coloquei a bordo, pois o prazo dado por Shamash já havia se esgotado; e ele disse: 'Esta noite, quando o cavaleiro da tempestade enviar a chuva destruidora, entra no barco e te fecha lá dentro.' Era chegada a hora. Caiu a noite e o cavaleiro da tempestade mandou a chuva. Tudo estava pronto, a vedação e a calafetagem; eu então passei o timão para Puzur-Amurri, o timoneiro, deixando todo o barco e a navegação sob seus cuidados.
"Ao primeiro brilho da alvorada chegou do horizonte uma nuvem negra, que era conduzida por Adad, o senhor da tempestade. Os trovões retumbavam de seu interior, e, na frente, por sobre as colinas e planícies, avançavam Shul-lat e Hanish, os arautos da tempestade. Surgiram então os deuses do abismo; Nergal destruiu as barragens que represavam as águas do inferno; Ninurta, o deus da guerra, pôs abaixo os diques; e os sete juizes do outro mundo, os Anunnaki, elevaram suas tochas, iluminando a terra com suas chamas lívidas. Um estupor de desespero subiu ao céu quando o deus da tempestade transformou o dia em noite, quando ele destruiu a terra como se despedaça um cálice. Por um dia inteiro o temporal grassou devastadoramente, acumulando fúria à medida que avançava e desabando torrencialmente sobre as pessoas como os fluxos e refluxos de uma batalha; um homem não conseguia ver seu irmão, nem podiam os povos serem vistos do céu. Até mesmo os deuses ficaram horrorizados com o dilúvio; eles fugiram para a parte mais alta do céu, o firmamento de Anu, onde se agacharam contra os muros e ficaram encolhidos como covardes. Foi então que Ishtar, a Rainha do Céu, de voz doce e suave, gritou como se estivesse em trabalho de parto: 'Ai de mim! Os dias de outrora estão virando pó, pois ordenei que se fizesse o mal; por que fui exigir esta maldade no conselho dos deuses? Eu impus as guerras para a destruição dos povos, mas acaso estes povos não pertencem a mim, pois fui eu quem os criou? Agora eles flutuam no oceano como ovas de peixe.' Os grandes deuses do céu e do inferno verteram lágrimas e se calaram.
"Por seis dias e seis noites os ventos sopraram; enxurradas, inundações e torrentes assolaram o mundo; a tempestade e o dilúvio explodiam em fúria como dois exércitos em guerra. Na alvorada do sétimo dia o temporal vindo do sul amainou; os mares se acalmaram, o dilúvio serenou. Eu olhei a face do mundo e o silêncio imperava; toda a humanidade havia virado argila. A superfície do mar se estendia plana como um telhado. Eu abri uma janelinha e a luz bateu em meu rosto. Eu então me curvei, sentei e chorei. As lágrimas rolavam pois estávamos cercados por uma imensidade de água. Procurei em vão por um pedaço de terra. A quatorze léguas de distância, porém, surgiu uma montanha, e ali o barco encalhou. Na montanha de Nisir o barco ficou preso; ficou preso e não mais se moveu. No primeiro dia ele ficou preso; no segundo dia ficou preso em Nisir e não mais se moveu. Um terceiro e um quarto dia ele ficou preso na montanha e não se moveu. Um quinto e um sexto dia ele ficou preso na montanha. Na alvorada do sétimo dia eu soltei uma pomba e deixei que se fosse. Ela voou para longe, mas, não encontrando um lugar para pousar, retornou. Então soltei uma andorinha, que voou para longe; mas, não encontrando um lugar para pousar, retornou. Então soltei um corvo. A ave viu que as águas haviam abaixado; ela comeu, voou de um lado para o outro, grasnou e não mais voltou para o barco. Eu então abri todas as portas e janelas, expondo a nave aos quatro ventos. Preparei um sacrifício e derramei vinho sobre o topo da montanha em oferenda aos deuses. Coloquei quatorze caldeirões sobre seus suportes e juntei madeira, bambu, cedro e murta. Quando os deuses sentiram o doce cheiro que dali emanava, eles se juntaram como moscas sobre o sacrifício. Finalmente, então, Ishtar também apareceu; ela suspendeu seu colar com as jóias do céu, feito por Anu para lhe agradar. 'Oh, vós, deuses aqui presentes, pelo lápis-lazúli que circunda meu pescoço, eu me lembrarei destes dias como me lembro das jóias em minha garganta; não me esquecerei destes últimos dias. Que todos os deuses se reúnam em torno do sacrifício; todos, menos Enlil. Ele não se aproximará desta oferenda, pois sem refletir trouxe o dilúvio; ele entregou meu povo à destruição.'
"Quando Enlil chegou e viu o barco, ele ficou furioso. Enlil se encheu de cólera contra o exército de deuses do céu. 'Alguns destes mortais escaparam? Ninguém deveria ter sobrevivido à destruição.'
Então Ninurta, o deus das nascentes e dos canais, abriu a boca e disse ao guerreiro Enlil: 'E que deus pode tramar sem o consentimento de Ea? Somente Ea conhece todas as coisas.' Então Ea abriu a boca e falou para o guerreiro Enlil: 'Herói Enlil, o mais sábio dos deuses, como pudeste tão insensatamente provocar este dilúvio?
 
Inflige ao pecador o seu pecado,
Inflige ao transgressor a sua transgressão,
Pune-o levemente quando ele escapar,
Não exageres no castigo ou ele sucumbirá;
Antes um leão houvesse devastado a raça humana
Em vez do dilúvio,
Antes um lobo houvesse devastado a raça humana
Em vez do dilúvio,
Antes a fome houvesse assolado o mundo
Em vez do dilúvio.
Antes a peste houvesse assolado o mundo
Em vez do dilúvio.
 
Não fui eu quem revelou o segredo dos deuses; o sábio soube dele através de um sonho. Agora reuni-vos em conselho e decidi sobre o que fazer com ele.' "Enlil então subiu no barco, pegou a mim e a minha mulher pela mão e nos fez entrar no barco e ajoelhar, um de cada lado, com ele no meio. E tocou nossas testas para abençoar-nos, dizendo: 'No passado, Utnapishtim era um homem mortal; doravante ele e sua mulher viverão longe, na foz dos rios.' Foi assim que os deuses me pegaram e me colocaram aqui para viver longe, na foz dos rios."
 

sexta-feira, 5 de abril de 2024

A BUSCA DA VIDA ETERNA

 
Gilgamesh chorou amargamente por seu amigo Enkidu. Ele errou pelas matas como um caçador e vagueou pelas planícies. Em sua tristeza ele gritou: "Como posso descansar, como posso ficar em paz? O desespero se instalou em meu coração. Isso que meu irmão é agora, o mesmo serei eu quando morrer. Por medo da morte farei o possível para encontrar Utnapishtim, a quem chamam o Longínquo, pois ele se juntou à assembléia dos deuses." Gilgamesh então correu o mundo selvagem; vagou pelos campos e pastos numa longa jornada em busca de Utnapishtim, a quem os deuses acolheram após o dilúvio e instalaram na terra de Dilmum, no jardim do sol; e somente a ele, entre todos os homens, os deuses concederam a vida eterna.
A noite, chegando ao desfiladeiro da montanha, Gilgamesh rezou: "Neste desfiladeiro, há muito tempo atrás, encontrei leões. Tive medo e elevei meu olhar para a lua. Eu rezei e os deuses escutaram minha prece; por isso agora, oh, Sin, deus da lua, protegei-me." Após a oração, ele se deitou para dormir, até ser acordado de um sonho. Ele se viu rodeado de leões que se regozijavam de estarem vivos; tomou então o machado nas mãos, sacou a espada de seu cinturão e se lançou sobre eles como uma flecha disparada por um arco. Ele golpeou as feras, matou-as e dispersou-as.
Finalmente Gilgamesh chegou a Mashu, as grandes montanhas que guardam o nascer e o pôr do sol e sobre as quais ele havia ouvido muitas histórias. Seus picos são gêmeos e da altura das muralhas do céu; suas encostas descem até o mundo inferior. Os Escorpiões vigiam sua entrada. Eles são metade homem e metade dragão; sua fama inspira terror, seu olhar é mortal aos homens e o brilho tremeluzente que deles emana varre as montanhas que guardam o nascer do sol. Ao vê-los, Gilgamesh protegeu os olhos, mas apenas por alguns momentos; ele então tomou coragem e se aproximou. Vendo-o com um ar tão impávido, o Homem-Escorpião gritou para seu companheiro: "Este que ora se aproxima tem a carne dos deuses." Seu companheiro respondeu: "Ele é dois terços deus, mas um terço homem."
Ele então gritou para o homem Gilgamesh, ele gritou para o filho dos deuses: "Por que fizeste tão longa jornada? Por que viajaste de tão longe, cruzando os perigosos mares? Dize-me a razão de tua vinda." Gilgamesh respondeu: "Por Enkidu, a quem muito amava. Juntos enfrentamos todos os tipos de dificuldade. Por causa dele eu vim, pois caiu vítima do destino que assola os homens. Chorei por ele noite e dia e me recusava a entregar seu corpo para o funeral. Pensei que meu pranto fosse trazê-lo de volta. Desde sua partida minha vida deixou de ter sentido; por isso viajei até aqui em busca de Utnapishtim, meu pai; pois diz-se que ele se juntou aos deuses e que encontrou a vida eterna. Desejo fazer-lhe algumas perguntas com relação aos vivos e os mortos." O Homem-Escorpião abriu a boca e disse, falando a Gilgamesh: "Nenhum homem nascido de mulher fez o que tu pedes, nenhum mortal jamais entrou na montanha. Ela se estende por doze léguas de escuridão; não há luz em seu interior e o coração se sente oprimido pelas trevas. Do nascer ao pôr do sol, não há nada além de escuridão." Gilgamesh disse: "Embora seja para mim um caminho de tristeza e dor, de gemidos e lágrimas, ainda assim devo tomá-lo. Abri o portão da montanha." E o Homem-Escorpião disse: "Vai, Gilgamesh. Permitirei que atravesses a montanha de Mashu e as elevadas cordilheiras; que teus pés te levem ao destino em segurança. O portão da montanha está aberto."
Gilgamesh escutou o que o Homem-Escorpião lhe disse e seguiu, através da montanha, pela estrada do sol até o lugar de seu nascente. Depois de caminhar por uma légua, a escuridão se intensificou ao seu redor, pois não havia mais luz; ele não conseguia enxergar nada, nem o que estava à frente nem o que estava atrás. Depois de duas léguas a escuridão era intensa e não havia luz; ele não conseguia enxergar nada, nem o que estava à frente nem o que estava atrás. Depois de três léguas a escuridão era intensa e não havia luz; ele não conseguia enxergar nada, nem o que estava à frente nem o que estava atrás. Depois de quatro léguas a escuridão era intensa e não havia luz; ele não conseguia enxergar nada, nem o que estava à frente nem o que estava atrás. Ao final de cinco léguas a escuridão era intensa e não havia luz; ele não conseguia enxergar nada, nem o que estava à frente nem o que estava atrás. Ao final de seis léguas a escuridão era intensa e não havia luz; ele não conseguia enxergar nada, nem o que estava à frente nem o que estava atrás. Depois de percorrer sete léguas a escuridão era intensa e não havia luz; ele não conseguia enxergar nada, nem o que estava à frente nem o que estava atrás. Depois de percorrer oito léguas, ele soltou um grande grito, pois a escuridão era intensa e ele não conseguia enxergar nada, nem o que estava à frente nem o que estava atrás. Depois de nove léguas, ele sentiu o vento norte em seu rosto, mas a escuridão era intensa e não havia luz; ele não conseguia enxergar nada, nem o que estava à frente nem o que estava atrás. Depois de dez léguas, o final estava próximo. Depois de onze léguas apareceram os primeiros raios da alvorada. Ao final de doze léguas a luz do sol enfim refulgiu.
Lá estava o jardim dos deuses; por todos os lados cresciam arbustos carregados de pedras preciosas. Ao vê-los, ele imediatamente se aproximou, pois havia frutas de cornalina pendendo de uma parreira, lindas de ver; folhas de lápis-lazúli cresciam em profusão por entre as frutas e eram doces ao olhar. No lugar dos espinhos e dos cardos encontravam-se as hematitas e as pedras raras, e mais a ágata e pérolas do mar. Shamash viu Gilgamesh caminhando pelo jardim à beira do mar, e ele viu que o herói estava vestido com peles de animais e que se alimentava de sua carne. Isto o aborreceu, e falando ele disse: "Nenhum mortal jamais tomou este caminho antes, nem tomará, enquanto os ventos soprarem por sobre os mares." E virando-se para Gilgamesh ele falou: "Jamais encontrarás a vida que procuras." Gilgamesh respondeu ao glorioso Shamash: "Então, depois de errar e me esfalfar pela vastidão selvagem, terei ainda de dormir e deixar que a terra cubra para sempre a minha cabeça? Que meus olhos fitem o sol até seu brilho ofuscá-los. Embora não seja melhor que um homem morto, ainda assim deixai-me contemplar a luz do sol." Ao lado do mar ela vive, a mulher do vinhedo, a fabricante de vinho. Siduri fica sentada no jardim à beira do mar, com a tigela e os tonéis de ouro que os deuses lhe deram. Ela está coberta por um véu e, de onde se encontra, vê Gilgamesh se aproximar, vestindo peles, com a carne dos deuses no corpo, mas com o desespero no coração. Seu rosto era como o de alguém que chegou de uma longa jornada. Ela olhou e, observando com atenção o que se passava a distância, disse para si mesma: "Trata-se sem dúvida de um criminoso; aonde estará indo?" E ela fechou o portão com a tranca e passou-lhe o ferrolho. Mas Gilgamesh, ao ouvir o barulho do ferrolho, lançou a cabeça para a frente e deteve a porta com o pé. Ele gritou para Siduri: "Jovem fabricante de vinho, por que trancas tua porta? O que viste que te fez trancar teu portão? Quebrarei tua porta e arrebentarei teu portão, pois sou Gilgamesh, que capturou e matou o Touro do Céu. Eu matei o sentinela da floresta de cedro, derrubei Humbaba que vivia na floresta e matei os leões no desfiladeiro da montanha."
Siduri então disse a ele: "Se és o Gilgamesh que capturou e matou o Touro do Céu, que matou o sentinela da floresta de cedro, que derrubou Humbaba que vivia na floresta e matou os leões no desfiladeiro da montanha, por que tens as faces tão encovadas e o rosto tão abatido? Por que trazes o desespero em teu coração, e por que teu rosto lembra o de alguém que chega de uma longa jornada? Sim, por que tua face está queimada pelo calor e pelo frio, e por que chegas aqui vagando pelos pastos à procura do vento?"
Gilgamesh respondeu-lhe: "E por que meu rosto não haveria de estar encovado e abatido? Trago o desespero em meu coração; meu rosto lembra o de alguém que chega de uma longa jornada e foi queimado pelo calor e pelo frio. Por que não haveria de vagar pelos pastos à procura do vento? Meu amigo, meu irmão mais novo, que caçava o asno selvagem e a pantera das campinas, meu amigo, meu irmão mais novo, que capturou e matou o Touro do Céu e derrubou Humbaba na floresta de cedro, meu amigo, alguém que me era caríssimo e que enfrentou muitos perigos ao meu lado, Enkidu, meu irmão, a quem tanto amava, a morte o alcançou. Chorei por ele durante sete dias e sete noites, até os vermes tomarem-lhe o corpo. Por causa do meu irmão, tenho medo da morte; por causa do meu irmão, vagueio pelas matas e pelos campos e não consigo descansar. Mas agora, oh, jovem que prepara o vinho, já que vi tua face, não permita que eu veja a face da morte a quem tanto temo."
Ela respondeu: "Gilgamesh, onde vais com tanta pressa? Jamais encontrarás a vida que procuras. Quando os deuses criaram o homem, eles lhe destinaram a morte, mas a vida eles mantiveram em seu próprio poder. Quanto a ti, Gilgamesh, enche tua barriga de iguarias; dia e noite, noite e dia, dança e sê feliz, aproveita e deleita-te. Veste sempre roupas novas, banha-te em água, trata com carinho a criança que te tomar as mãos e faze tua mulher feliz com teu abraço; pois isto também é o destino do homem."
Mas Gilgamesh disse a Siduri, a jovem: "Como posso ficar calado, como posso descansar, quando Enkidu, a quem amo, tornou-se pó, e quando também por mim a morte e a terra esperam? Vives à beira do oceano e vês o seu interior; dize-me, oh, jovem, como chegar a Utnapishtim, o filho de Ubara-Tutu. O que preciso saber para chegar até ele? Instruí-me, dize o que tenho de fazer. Atravessarei o Oceano se isto for possível; se não for, vagarei por regiões ainda mais desoladas." A fabricante de vinho lhe disse: "Gilgamesh, não há como atravessar o Oceano; todos os que aqui vieram, desde os dias de outrora, não conseguiram viajar pelo mar. O Sol em sua glória atravessa o Oceano, mas quem além de Shamash jamais logrou tal feito? O lugar é perigoso e a passagem difícil; as águas da morte que por ali correm são profundas. Gilgamesh, como vais atravessar o Oceano? Quando chegares às águas da morte, o que farás? Mas, Gilgamesh, no meio da floresta encontrarás Urshanabi, o barqueiro de Utnapishtim; com ele estão os objetos sagrados, os objetos de pedra. Ele está talhando a proa do barco em forma de serpente. Observa-o bem. Se for possível, talvez consigas atravessar as águas do Oceano com ele; se não, terás de voltar."
Ao ouvir isso, Gilgamesh ficou furioso. Ele tomou o machado em uma das mãos e sacou o punhal de seu cinturão. Gilgamesh avançou furtivamente e se atirou como um dardo em cima dos apetrechos do barco. Então voltou para dentro da floresta e sentou-se. Urshanabi viu o brilho da faca e escutou o machado, e ficou perplexo, pois Gilgamesh, em sua fúria, havia destroçado o equipamento da embarcação. Urshanabi disse a ele: "Dize-me, qual é o teu nome? Sou Urshanabi, o barqueiro de Utnapishtim, o Longínquo." Ele lhe respondeu: "Gilgamesh é meu nome. Sou de Uruk, da casa de Anu." Urshanabi perguntou-lhe então: "Por que tens as faces tão encovadas e o rosto tão abatido? Por que trazes o desespero em teu coração, e por que teu rosto lembra o de alguém que chega de uma longa jornada? Sim, por que tua face está queimada pelo calor e pelo frio, e por que chegas aqui vagando pelos pastos à procura do vento?"
Gilgamesh disse-lhe: "E por que meu rosto não haveria de estar encovado e abatido? Trago o desespero em meu coração; meu rosto lembra o de alguém que chega de uma longa jornada e foi queimado pelo calor e pelo frio. Por que não haveria de vagar pelos pastos à procura do vento? Meu amigo, meu irmão mais novo, que capturou e matou o Touro do Céu e derrubou Humbaba na floresta de cedro, meu amigo, alguém que me era caríssimo e que enfrentou muitos perigos ao meu lado, Enkidu, meu irmão, a quem tanto amava, a morte o alcançou. Chorei por ele durante sete dias e sete noites, até os vermes tomarem-lhe o corpo. Por causa do meu irmão, tenho medo da morte; por causa do meu irmão, vagueio pelas matas e pelos campos. Seu destino pesa sobre mim. Como posso descansar, como posso ficar em paz? Ele virou pó e também eu vou morrer e ser enterrado para sempre. Tenho medo da morte; por isso, Urshanabi, mostre-me o caminho para chegar até Utnapishtim. Se for possível, atravessarei as águas da morte, se não for, vagarei por regiões ainda mais desoladas."
Urshanabi disse a ele: "Gilgamesh, foram tuas próprias mãos que tornaram impossível tua travessia do Oceano; ao destruíres o equipamento do barco, destruíste também sua segurança." Os dois então discutiram o assunto e Gilgamesh disse: "Por que estás tão zangado comigo, Urshanabi? Pois tu mesmo atravessas o mar dia e noite; em qualquer estação tu o atravessas." "Gilgamesh, estes objetos que destruíste tinham a propriedade de levar-me por sobre as águas da morte, impedindo-as de tocarem em mim. Era por esta razão que eu os preservava, mas tu os destruíste, e com eles liquidaste também as serpentes urnu. Mas vai agora à floresta, Gilgamesh, corta com teu machado cento e vinte toras de sessenta côvados de cumprimento, pinta-as com betume, reforça-as com virolas e traze-as de volta para mim."
Ao ouvir isso, ele foi à floresta, cortou cento e vinte toras de sessenta côvados de cumprimento, pintou-as com betume, reforçou-as com virolas e trouxe-as de volta para Urshanabi. Eles então subiram no barco, Gilgamesh e Urshanabi, e o lançaram sobre as ondas do Oceano. Durante três dias eles singraram o mar com velocidade, percorrendo o equivalente a uma jornada de um mês e quinze dias. Urshanabi por fim levou o barco às águas da morte. Ele então disse para Gilgamesh: "Vai em frente, pega uma das toras e empurra-a para dentro do mar, mas não encostes tua mão na água. Gilgamesh, pega uma segunda tora, uma terceira, uma quarta. Agora, Gilgamesh, pega uma quinta, uma sexta e uma sétima tora. Gilgamesh, pega uma oitava, uma nona e uma décima tora. Gilgamesh, pega uma décima primeira; pega uma décima segunda tora." Depois de empurrar para dentro d'água cento e vinte toras, Gilgamesh ficou sem nenhuma. Ele então tirou a roupa e elevou seus braços para cima para servir de mastro, e usou suas vestimentas como vela. Assim Urshanabi, o barqueiro, trouxe Gilgamesh até Utnapishtim, a quem chamam o Longínquo e que vive em Dilmun, a leste da Montanha, no lugar por onde transita o sol. Somente a ele, entre todos os homens, os deuses concederam a vida eterna.
Enquanto isso, Utnapishtim, confortavelmente instalado, observava tudo a distância e, dentro de seu coração, meditava: "Por que o barco navega por aqui sem seu mastro e sem equipamento? Por que foram destruídas as pedras sagradas, e por que o barco não é conduzido por seu capitão? Aquele homem que chega não é um dos meus; vejo um homem coberto com pele de animais. Quem é este que vem pela praia atrás de Urshanabi, pois certamente que não é um dos meus homens?" Utnapishtim então olhou para ele e disse: "Qual é o teu nome, tu que chegas vestido de pele de animais, com as bochechas famintas e o rosto abatido? Aonde vais com pressa? Por que razão fizeste uma jornada tão longa, atravessando mares cuja passagem é tão difícil? Dize-me a razão de tua vinda."
Ele respondeu: "Gilgamesh é meu nome. Sou de Uruk, da casa de Anu." Utnapishtim então disse a ele: "Se és Gilgamesh, por que tens as faces tão encovadas e o rosto tão abatido? Por que trazes o desespero em teu coração, e por que teu rosto lembra o de alguém que chega de uma longa jornada? Sim, por que tua face está queimada pelo calor e pelo frio, e por que chegas aqui vagando pelos pastos à procura do vento?"
Gilgamesh disse-lhe: "E por que meu rosto não haveria de estar encovado e abatido? Trago o desespero em meu coração; meu rosto lembra o de alguém que chega de uma longa jornada e foi queimado pelo calor e pelo frio. Por que não haveria de vagar pelos pastos à procura do vento? Meu amigo, meu irmão mais novo, que capturou e matou o Touro do Céu e derrubou Humbaba na floresta de cedro, meu amigo, alguém que me era caríssimo e que enfrentou muitos perigos ao meu lado, Enkidu, meu irmão, a quem tanto amava, a morte o alcançou. Chorei por ele durante sete dias e sete noites, até os vermes tomarem-lhe o corpo. Por causa do meu irmão, tenho medo da morte; por causa do meu irmão, vagueio pelas matas e pelos campos. Seu destino pesa sobre mim. Como posso descansar, como posso ficar em paz? Ele virou pó e também eu vou morrer e ser enterrado para sempre." Gilgamesh tornou a dizer, falando a Utnapishtim: "Foi para ver Utnapishtim, a quem chamamos o Longínquo, que fiz esta jornada. Por isso vagueei pelo mundo, atravessei tantas cordilheiras perigosas, cruzei os mares e me esfalfei viajando; minhas juntas doem e há muito que já não sei o que é uma doce noite de sono. Minhas roupas se esfarraparam antes de chegar à casa de Siduri. Matei o urso e a hiena, o leão e a pantera, o veado e o cabrito montes, o tigre e todos os tipos de caça, e também as pequenas criaturas dos pastos. Comi sua carne e vesti suas peles; e foi assim que cheguei ao portão da jovem fabricante de vinho, que fechou contra mim seu portão de piche e betume. Mas recebi dela instruções sobre a jornada e cheguei então até Urshanabi, o barqueiro, com quem atravessei as águas da morte. Oh, pai Utnapishtim, tu que te juntas à assembléia dos deuses, desejo fazer-te algumas perguntas sobre os vivos e os mortos: como encontrar a vida que estou buscando?"
Utnapishtim disse: "Não existe permanência. Acaso construímos uma casa para que fique de pé para sempre, ou selamos um contrato para que valha por toda a eternidade? Acaso os irmãos que dividem uma herança esperam mantê-la eternamente, ou o período de cheia do rio dura para sempre? Somente a ninfa da libélula despe-se da larva e vê o sol em toda a sua glória. Desde os dias antigos, não existe permanência. Como são parecidos os adormecidos e os mortos, eles são como um retrato da morte. O que existe entre o servo e o senhor depois de ambos terem cumprido seus destinos? Quando os Anunnaki, os juízes do mundo inferior se reúnem com Mammetum, a mãe dos destinos, juntos eles decidem a sorte dos homens. Eles distribuem a vida e a morte, mas o dia da morte eles não revelam."
Gilgamesh então disse a Utnapishtim, o Longínquo: "Olho para ti, Utnapishtim, e vejo que és igual a mim; não há nada estranho em tuas feições. Pensei que fosse encontrar um herói preparado para a batalha, mas aqui estás, confortavelmente refestelado. Conta-me a verdade, como foi que vieste a te juntar aos deuses e ganhaste a vida eterna?" Utnapishtim disse a Gilgamesh: "Eu te revelarei um mistério; eu te contarei um segredo dos deuses."
 

TEMAS QUE NÃO PRETENDO AMPLIAR

  Alguns pensamentos meio caóticos ou delirantes têm invadido minha mente. Se fosse outro o tempo, ficaria divagando e escrevendo abobrinhas...