quinta-feira, 4 de abril de 2024

ISHTAR E GILGAMESH, E A MORTE DE ENKIDU

 

Gilgamesh lavou seus longos cabelos e limpou suas armas; jogou os cabelos para trás dos ombros, tirou as roupas manchadas que vestia e trocou-as por novas. Ele colocou seus mantos reais e os ajustou ao corpo. Ao vestir a coroa, a gloriosa Ishtar elevou seus olhos e divisou a beleza de Gilgamesh. Ela disse: "Vem comigo, Gilgamesh, e sê meu consorte; infunde-me a semente de teu corpo; deixa-me ser tua mulher e serás meu marido. Arrearei para ti uma carruagem com ouro e lápislazúli; as rodas serão de ouro, as trompas de cobre; em vez de mulas, terás para puxá-la os poderosos demônios da tempestade. Ao entrares em nossa casa, envolvida na fragrância do cedro, terás a soleira e o trono a beijar-te os pés. Reis, tiranos e príncipes se curvarão à tua presença; eles te trarão tributos das montanhas e das planícies. Tuas ovelhas darão à luz gêmeos e tuas cabras trigêmeos; teus burros de carga serão mais rápidos do que as mulas; nada se igualará a teu gado, e os cavalos de tua carruagem serão conhecidos em terras distantes por sua velocidade."

Gilgamesh abriu a boca e respondeu à gloriosa Ishtar: “Se vos tomar como esposa, que presentes poderei oferecer em troca”? Que vestes e perfumes poderia te dar? De bom grado dar-vos-ia pão e todo tipo de comida à altura de um deus. Dar-vos-ia de beber um vinho digno de uma rainha. Eu abarrotaria vosso celeiro de cevada; mas fazer de vós minha esposa, isso não. O que seria de mim? Fostes para vossos amantes como um braseiro que arde sem chama no frio, como uma porta que não protege do vento cortante ou da tempestade, uma fortaleza que esmaga sua guarnição, uma jarra que enegrece o ombro de quem a carrega, um odre que escoria e esfola a pele de seu portador, uma rocha que cai do parapeito, um aríete vindo do inimigo, uma sandália que faz tropeçar aquele que a veste. Qual de vossos amantes chegastes alguma vez a amar para sempre? De qual de vossos pastores não vos cansastes? Escutai-me enquanto conto a história de vossos amantes. Havia Tammuz, o amor de vossa juventude; decretastes por ele o choro e a lamentação, ano após ano. Amastes o multicolorido gaio, mas ainda assim desferistes um golpe contra sua asa, quebrando-a; agora, pousado em alguma árvore do bosque, ele chora 'cápi, cápi, minha asa, minha asa'. Amastes o leão de tremenda força; preparastes para ele sete armadilhas, e mais sete. Amastes o garanhão que era magnífico na batalha, e para ele decretastes o chicote, a espora e a correia; ordenastes que galopasse sete léguas todos os dias e que lhe dessem água suja para beber; e para sua mãe, Silili, impusestes as lamentações. Amastes o pastor do rebanho; dia após dia ele vos preparava um bolo de aveia; e sacrificava cordeiros em vossa homenagem. Vós o golpeastes e o transformastes num lobo; agora seus próprios filhos o afujentam, seus próprios cães de caça o acossam, lacerando-lhe os flancos. E não amastes também Ishullanu, o jardineiro do bosque de palmeiras de vosso pai? Ele vos trazia incontáveis cestas repletas de tâmaras; todos os dias ele cobria vossa mesa. Então olhastes para ele e dissestes: 'Caro Ishullanu, vem comigo, vamos desfrutar de tua virilidade, aproxima-te e toma-me em teus braços, sou tua.' Ishullanu respondeu: 'O que estais me pedindo? Minha mãe cozinhou e eu comi; por que deveria recorrer a alguém como vós para obter comida contaminada e pútrida? Pois desde quando um biombo de treliça é proteção suficiente contra a geada?' Ao ouvir sua resposta lançastes contra ele um feitiço. Ele se transformou numa toupeira cega que habita as profundezas da terra, alguém cujos desejos estão sempre além de seu alcance. E, se nos uníssemos, será que eu não receberia o mesmo tratamento dispensado a todos esses que um dia amastes?

Ao ouvir esta resposta, Ishtar foi tomada de uma implacável cólera. Ela subiu aos céus e chorou convulsivamente diante de seu pai, Anu, e sua mãe, Anion. E disse: "Pai, Gilgamesh cobriu-me de insultos; ele expôs toda a minha abominável conduta; denunciou minhas infâmias e torpezas." Anu abriu a boca e disse: "És um pai de deuses? Não discutiste com Gilgamesh, o rei, e por isso ele denunciou tua abominável conduta, tuas infâmias e torpezas?"

Ishtar abriu a boca e tornou a falar: "Pai, dai-me o Touro do Céu para destruir Gilgamesh. Enchei, eu vos peço, Gilgamesh de arrogância para sua própria destruição; mas, se vos recusardes a me dar o Touro do Céu, destruirei os portões do inferno e despedaçarei seus ferrolhos; haverá confusão entre os seres que estão nas camadas superiores e os que estão nas profundezas da terra. Trarei os mortos para cima, para que se alimentem como os vivos, e a hoste dos mortos será mais numerosa que a dos vivos." Anu disse à poderosa Ishtar: "Se eu fizer o que tu me pedes, haverá sete anos de seca por toda Uruk; o trigo só terá palha e nada de semente. Guardaste uma quantidade suficiente de grãos para as pessoas e capim para o gado?" Ishtar replicou: "Guardei grãos para as pessoas e capim para o gado; há uma quantidade suficiente de grãos e capim para os sete anos de trigo sem semente."

Ao ouvir a resposta de Ishtar, Anu entregou-lhe o Touro do Céu para que fosse conduzido pelo cabresto até Uruk. Quando eles chegaram aos portões da cidade, o Touro dirigiu-se ao rio. Ele bufou uma vez e a terra abriu-se em fendas, engolindo a vida de cem homens. Ele bufou uma segunda vez e mais fendas se abriram, levando a vida de duzentos homens.

Na terceira vez novas fendas se abriram, lançando Enkidu para a frente; mas ele imediatamente recuperou o equilíbrio, se esquivou e lançou-se sobre o touro agarrando-o pelos chifres. O Touro do Céu espumava em seu rosto e o escoriava com a parte mais grossa de sua cauda. Enkidu gritou para Gilgamesh: "Amigo, nós alardeamos que deixaríamos uma fama duradoura atrás de nossos nomes. Agora enfia tua espada entre a nuca e os chifres do touro." Gilgamesh foi então atrás da fera, agarrou o talo de sua cauda, enfiou a espada entre sua nuca e seu chifre e a matou. Depois de matarem o Touro do Céu, eles arrancaram seu coração e o ofereceram a Shamash. Os dois irmãos então descansaram.

Mas Ishtar levantou-se e escalou a grande muralha de Uruk; ela pulou para a torre e proferiu uma maldição: "Ai de Gilgamesh, pois zombou de mim ao matar o Touro do Céu." Ao ouvir essas palavras, Enkidu arrancou a coxa direita do touro e atirou-lhe ao rosto, dizendo: "Se pudesse colocar minhas mãos em ti, é isso que te faria, e açoitaria com as entranhas o teu corpo." Ishtar então conclamou sua gente, as prostitutas do templo, as jovens que cantavam e dançavam, as cortesãs. Em torno da coxa do Touro do Céu, organizou um velório de choro e lamentação.

Mas Gilgamesh reuniu todos os ferreiros e alfagemes. Eles ficaram impressionados com a imensidão dos chifres, que eram revestidos de uma camada de lápis-lazúli de duas polegadas de espessura. Cada um deles pesava quinze quilos, e em seu interior cabia o equivalente a seis medidas de óleo, que Gilgamesh ofereceu ao seu deus protetor, Lugulbanda. Mas ele levou os chifres para o palácio e os pendurou na parede. Eles então lavaram suas mãos no Eufrates, abraçaram-se e foram embora. Atravessaram as ruas de Uruk, onde os heróis haviam se reunido para vê-los, e Gilgamesh virou-se para as jovens que cantavam e gritou: "Quem é o mais glorioso dos heróis, quem é o mais eminente entre os homens?" "Gilgamesh é o mais glorioso dos heróis, Gilgamesh é o mais eminente entre os homens." Houve então um banquete, e festejos, e o palácio encheu-se de alegria, até os heróis se deitarem, dizendo: "Descansaremos agora até o amanhecer."

Quando a manhã chegou, Enkidu levantou-se e gritou para Gilgamesh: "Oh, meu irmão, que sonho tive esta noite. Anu, Enlil, Ea e o celestial Shamash se reuniram em conselho, e Anu disse a Enlil: 'Por terem matado o Touro do Céu e por terem morto Humbaba, que tomava conta da Montanha de Cedro, um dos dois tem de morrer.' O glorioso Shamash respondeu então ao herói Enlil: 'Foi sob tuas ordens que eles mataram Humbaba e o Touro do Céu, será que Enkidu tem de morrer apesar de ser inocente?' Enlil virou-se bruscamente para o glorioso Shamash e disse, em fúria: 'Ousas dizer uma coisa dessas, tu que estavas sempre a acompanhá-los como se fosses um deles?' '

Enkidu jazia estendido diante do amigo. Suas lágrimas vertiam copiosamente, e ele disse a Gilgamesh: "Oh, meu irmão, és tão querido por mim, e eles no entanto vão tirar-me de ti." Ele tornou a falar: "Devo sentar-me à entrada da casa dos mortos e jamais tornar a ver com meus olhos o meu querido irmão."

Solitário e enfermo em seu leito, Enkidu amaldiçoava o portão como se ele fosse de carne viva: "Tu, madeira do portão, inerte, insensível e apática; viajei vinte léguas procurando por ti, até achar o gigantesco cedro. Não há madeira igual em nossa terra. Setenta e dois côvados de altura e vinte quatro de largura; eixo, virola e batente perfeitos. Foste feito pelo mestre dos artesãos de Nippur; mas, ai, se eu soubesse o que aconteceria! Se soubesse que serias o único bem resultante desta aventura, teria levado o machado ao ar e te feito em pedaços, e em teu lugar construiria aqui um portão de vime. Ai, se pelo menos tivesses chegado aqui por obra de algum futuro rei, ou se um deus te tivesse criado! Que ele apague o meu nome e o substitua pelo seu; que a maldição recaia sobre sua cabeça em vez de tombar sobre a de Enkidu."

Ao primeiro brilho da alvorada, Enkidu levantou a cabeça e chorou diante do Deus-Sol; suas lágrimas corram por seu rosto ao brilho da luz solar. "Deus-Sol, eu vos imploro, a respeito daquele caçador infame, aquele caçador vil, por culpa de quem vim a receber menos que meu companheiro; fazei com que capture menos presas, tornai a caça mais escassa, fazei com que ele se enfraqueça, que receba a menor parte nas divisões entre os caçadores, que suas vítimas fujam de suas armadilhas."

Depois de imprecar contra o caçador até desabafar seu coração, ele se voltou para a rameira. Crescera nele uma necessidade de também amaldiçoá-la. "Quanto a ti, mulher, lanço-te uma grande maldição! Prometo-te um destino para toda a eternidade. Minha praga se abaterá sobre ti imediata e repentinamente. Ficarás sem teto para o teu comércio, pois não manterás casa com outras mulheres na taberna, mas terás de realizar teu negócio em lugares fétidos e empestados pelo vômito do bêbado. Teu preço será barato; teus pequenos furtos serão lançados com desdém ao chão de tua choupana; tu te sentarás na encruzilhada poeirenta do quarteirão dos oleiros; farás tua cama à noite sobre um monte de estrume, e durante o dia tomarás teu lugar sob a sombra da muralha. Sarças e espinhos rasgarão teus pés; o bêbado e o sóbrio te golpearão o rosto e sentirás dores na boca. Que sejas despojada de tuas tintas purpúreas, pois também eu na selva com minha mulher tinha todos os tesouros que desejava."

Ao ouvir as palavras de Enkidu, Shamash gritou-lhe do céu: "Enkidu, por que amaldiçoas a mulher, a concubina que te ensinou a comer pão digno dos deuses e a beber o vinho dos reis? Ela, que colocou sobre ti um magnífico traje, não foi ela quem te deu o glorioso Gilgamesh por companheiro, e Gilgamesh, teu próprio irmão, não fez ele com que te deitasses num leito real e te reclinasses sobre um divã à esquerda de seu trono? Ele fez com que os príncipes da terra beijassem teus pés, e hoje todo o povo de Uruk chora e se lamenta por ti. Quando morreres, ele deixará seus cabelos crescerem por tua causa; ele vestirá a pele de um leão e vagueará pelo deserto."

Ao ouvir as palavras do glorioso Shamash, seu coração colérico se acalmou; ele retirou a maldição e disse: "Mulher, prometo-te um outro destino. A boca que te amaldiçoou agora te abençoa! Serás adorada por reis, príncipes e nobres. Embora a doze milhas de distância, exercerás forte atração sobre um homem e o perturbarás. Ele te abrirá as portas de seu tesouro e terás tudo o que desejares: lápis-lazúli, ouro e cornalina, tirados da sua pilha de tesouros. Ganharás um anel para teu dedo e um manto. Um sacerdote te conduzirá à presença dos deuses. Por tua causa uma esposa, mãe de sete, foi abandonada."

Enquanto Enkidu dormia sozinho em sua enfermidade, com o coração amargurado ele se virou para o amigo e desabafou: “Fui eu quem abateu o cedro, quem limpou a floresta, quem matou Humbaba, e agora olha o que me aconteceu”. Escuta, meu amigo, o sonho que tive esta noite. Os céus troavam e a terra rugia de volta; entre os dois estava eu, diante de um ser aterrador, o homem-pássaro de feições sombrias. Ele havia me escolhido como presa. Seu rosto era como o de um vampiro, seus pés como as patas de um leão, suas mãos como as garras de uma águia. Ele se abateu sobre mim e suas presas agarraram minha cabeça; ele me apertou com força e me senti sufocar; ele então transformou meu corpo de tal maneira que meus braços viraram asas cobertas de penas. Ele me olhou fixamente e levou-me para o palácio de Irkalla, a Rainha das Trevas, à casa de onde ninguém que entra jamais torna a sair, à estrada sem retorno.

"Ali fica a casa onde as pessoas sentam-se no escuro, onde o pó é sua comida e o barro sua carne. Elas se vestem como os pássaros, tendo as asas como traje; elas não vêem a luz e sentam-se na escuridão. Eu entrei na casa do pó e vi os reis da terra, suas coroas guardadas para sempre; vi tiranos e príncipes, todos aqueles que outrora usavam coroas reais e governavam o mundo. Aqueles que no passado haviam ocupado o lugar de deuses como Anu e Enlil agora trabalhavam como servos, buscando carne assada na casa do pó e carregando carne cozida e água fria tirada do odre. Na casa do pó em que entrei estavam os altos sacerdotes e os acólitos, os sacerdotes do êxtase e do encantamento; lá se encontravam os servidores do templo e Etana, o rei de Kish, a quem outrora a águia carregou para o céu. Também vi Samuqan, o deus do gado, e Ereshkigal, a Rainha do Mundo Inferior; e, agachada em frente a ela, Belit-Sheri, escriba dos deuses e guardiã do livro da morte. Ela estava lendo uma tábua que tinha em suas mãos. Ela levantou a cabeça, me viu e falou: 'Quem trouxe este aqui?' Eu então acordei e parecia um homem sangrado que erra solitário por entre os juncos; alguém que foi agarrado pelo intendente e cujo coração bate disparado, cheio de agonia e terror."

Gilgamesh havia se despido; ele escutou as palavras do amigo e chorou intensamente. Ele abriu a boca e disse a Enkidu: "Quem na Uruk das poderosas muralhas tem tamanha sabedoria? Coisas estranhas foram ditas, por que teu coração fala assim tão estranhamente? Teu sonho foi grandioso, mas terrível; devemos conservá-lo na memória apesar de seus horrores, pois ele demonstra que a miséria acaba abatendo-se sobre o homem saudável, que o fim da vida é doloroso." E Gilgamesh lamentou: "Rezarei agora aos grandes deuses, pois meu amigo teve um sonho ominoso."

O dia do sonho chegou ao fim, e Enkidu jazia enfermo. Passou um dia inteiro no leito e seu sofrimento aumentou. Enkidu disse a Gilgamesh, o amigo por quem ele abandonara sua vida no meio da natureza: "Houve época em que lutei por ti, pela água da vida, e agora eu não tenho nada." Enkidu passou um segundo dia no leito e Gilgamesh velou por ele, mas a doença piorou. No terceiro dia, ele chamou Gilgamesh, acordando-o. Enkidu estava fraco e seus olhos já não enxergavam mais de tanto chorar. Dez dias se passaram e seu sofrimento aumentava; onze, doze dias, e Enkidu continuava em seu leito de dor. Ele então chamou Gilgamesh e disse: "Amigo, a grande deusa me amaldiçoou e devo morrer na vergonha. Não morrerei como um homem que tomba durante a batalha; eu temia ser derrubado na luta, mas feliz é aquele que morre lutando, pois eu morrerei na vergonha." E Gilgamesh chorou por Enkidu. Ao primeiro brilho da alvorada ele elevou sua voz e falou aos conselheiros de Uruk:
 
"Ouvi-me, homens ilustres de Uruk,
Choro por Enkidu, meu amigo.
Com as lagrimas pungentes da mulher aflita
Choro por meu irmão.
Oh, Enkidu, meu companheiro,
Foste o machado que levava ao meu lado,
A força do meu braço, a espada em meu cinturão,
O escudo que me protegia,
Um glorioso manto, meu mais belo ornamento;
Um destino cruel roubou-o de mim.
O asno selvagem e a gazela
Que como pai e mãe te criaram,
Todas as criaturas de cauda longa que te alimentaram
Choram por ti.
Todas as coisas agrestes das campinas e dos pastos,
As trilhas que amavas na floresta dos cedros,
Noite e dia murmuram.
Que os homens ilustres de Uruk,
A cidade das poderosas muralhas,
Chorem por ti;
Que o dedo que abençoa
Se estenda para pranteá-lo.
Enkidu, meu jovem irmão, ouve,
Um eco atravessa todo o país
Como um lamento de mãe.
Choram todos os caminhos que juntos percorremos,
E as feras que caçamos: o urso e a hiena,
O tigre e a pantera, o leopardo e o leão,
O veado e o cabrito montes, o touro e a corça.
Os rios cujas margens percorríamos
Choram por ti,
O Ula do Elam e o querido Eufrates,
De onde tirávamos água para os odres.
A montanha que escalamos para o Sentinela matar
Chora por ti.
Os guerreiros de Uruk,
Cidade das poderosas muralhas,
Onde o Touro do Céu foi morto,
Choram por ti.
Todo o povo de Endu
Chora por ti, Enkidu.
Aqueles que trouxeram cereais para conteres
Choram agora por ti;
Que o óleo em tuas costas esfregavam
Choram agora por ti;
Que te enchiam o copo de cerveja
Choram agora por ti;
A meretriz que com o perfumado ungüento te untava
Lamenta-se agora por ti;
As mulheres do palácio, que te deram uma esposa,
Um grupo seleto de boas conselheiras,
Lamentam-se agora por ti.
E os jovens, teus irmãos,
Como se fossem mulheres
De cabelos compridos choram por ti.
Que sono é este que em seu poder te mantém?
Estás perdido no escuro e não me podes ouvir."
 
Gilgamesh tocou o coração de Enkidu, mas ele já não batia; seus olhos também não tornaram a se abrir. Gilgamesh então cobriu o amigo com um véu, como o noivo cobre a noiva. E pôs-se a urrar, a desabafar sua fúria como um leão, como uma leoa cujos filhotes lhe foram roubados. Vagueou em torno da cama, arrancou seus cabelos e os espalhou por toda parte. Arrancou seus magníficos mantos e atirou-os ao chão como se fossem abominações.

Ao primeiro brilho da alvorada, Gilgamesh gritou: "Fiz com que te deitasses num leito real, te reclinaste sobre um divã à esquerda de meu trono, os príncipes da terra beijaram teus pés. Farei com que todo o povo de Uruk chore por ti e te cante hinos fúnebres. As pessoas alegres se curvarão de dor; e, depois de desceres à terra, deixarei que meu cabelo cresça em tua homenagem e errarei pelas matas na pele de um leão." De novo no dia seguinte, ao primeiro brilho da aurora, Gilgamesh se lamentou; por sete dias e sete noites ele chorou por Enkidu, até que os vermes tomaram-lhe o corpo. Somente então Gilgamesh entregou Enkidu à terra, pois os Anunnaki, os juizes do mundo inferior, o haviam capturado.

Gilgamesh então mandou proclamar um édito por todo país. Ele convocava todos os caldeireiros, ourives e pedreiros e os intimava: "Fazei uma estátua de meu amigo." A estátua foi moldada com grande quantidade de lápis-lazuli no peito e de ouro no resto do corpo. Foi então montada uma mesa de madeira de lei, e em cima dela foram colocadas uma tigela de cornalina cheia de mel e uma de lápis-lazuli contendo manteiga. Gilgamesh as ofereceu ao Sol, e, chorando, partiu.
 

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