quarta-feira, 3 de abril de 2024

A JORNADA NA FLORESTA


Enlil da montanha, o pai dos deuses, havia decretado o destino de Gilgamesh. Por isso Gilgamesh teve um sonho, e Enkidu disse: "O significado do teu sonho é o seguinte: o pai dos deuses te deu um trono, reinar é o teu destino; a vida eterna não é teu destino. Por isso, não fiques triste, não te atormentes nem te deixes oprimir por causa disso. Ele te deu o poder de atar e desatar, de ser as trevas e a luz da humanidade. Ele te deu supremacia sem paralelo sobre o povo, te garante a vitória nas batalhas de onde não escapam fugitivos; o sucesso é teu nas incursões militares e nos implacáveis assaltos por ti empreendidos. Mas não abuses deste poder; sê justo com teus servos no palácio; faze justiça perante Shamash."

Os olhos de Enkidu encheram-se de lágrimas e seu coração foi tomado de angústia. Ele suspirava cheio de tristeza. Gilgamesh fitou-o nos olhos e perguntou: "Amigo, por que suspiras tão tristemente?" Enkidu abriu a boca e respondeu: "Sinto-me fraco, meus braços perderam sua força, o grito de dor está preso em minha garganta e o ócio me oprime." Foi então que o grande Gilgamesh começou a pensar na Terra dos Vivos; sobre a Terra dos Cedros refletiu o senhor de Uruk. Ele disse a seu servo Enkidu: "Sobre as lápides ainda não deixei impresso o meu nome, como decretou o destino; irei então à terra onde são abatidos os cedros. No lugar onde estão inscritos os nomes de homens ilustres, deixarei gravado o meu nome; e onde nome de homem algum foi jamais inscrito, mandarei erigir um monumento aos deuses. Por causa do mal que existe sobre a terra, nós iremos à floresta destruir esse mal; pois é lá que mora o feroz gigante Humbaba, cujo nome é 'Enormidade'." Mas Enkidu suspirou tristemente e disse: "Descobri essa floresta quando corria no mato com as feras selvagens; ela se estende por dez mil léguas em todos os sentidos. Enlil designou Humbaba para tomar conta dela e o armou com sete horrores; Humbaba é uma criatura hedionda para todos os mortais. Seu rugido é como uma terrível borrasca, seu hálito é como o fogo, suas mandíbulas, a própria morte. Ele guarda tão bem os cedros que consegue ouvir um novilho se mexer na selva a sessenta léguas de distância. Que espécie de homem iria de sua própria vontade penetrar nesta terra e explorar suas profundezas? Eu te digo, a fraqueza toma conta de todo aquele que dela se aproxima: ninguém luta com Humbaba em pé de igualdade; ele é um grande guerreiro, um aríete. O sentinela da floresta jamais dorme, Gilgamesh."

Gilgamesh replicou: "E que homem pode chegar ao céu? Somente os deuses vivem eternamente na companhia do glorioso Shamash; nós, homens, temos nossos dias contados. Nossos trabalhos e empreendimentos são como um sopro de vento. Como, então, já estás com medo? Embora seja teu senhor, irei na frente e poderás gritar com segurança: 'Avante, não há nada a temer!' Se eu cair, deixarei então um nome que ficará para a posteridade; os homens dirão a meu respeito: 'Gilgamesh caiu lutando com o feroz Humbaba.' Muito tempo depois do nascimento de meu herdeiro, eles estarão falando disso e se lembrando do meu feito." Enkidu tornou a falar com Gilgamesh: "Oh, meu senhor, se algum dia decidires entrar naquela terra, procura primeiro o herói Shamash; fala com o Deus-Sol, pois é dele aquela terra. A terra onde o cedro é abatido pertence a Shamash."

Gilgamesh tomou em seus braços um cordeiro branco, sem qualquer mácula, e um outro castanho; ele os segurou contra o peito e os levou à presença do sol. Carregando na mão seu cetro de prata, Gilgamesh disse ao glorioso Shamash: "Vou para aquela terra, oh, Shamash, para lá eu vou; minhas mãos suplicam, protejei minha alma e trazei-me de volta ao cais de Uruk. Eu imploro vossa proteção; permiti que os augúrios sejam propícios." Shamash, o glorioso, respondeu: "Gilgamesh, és forte, mas que é para ti a Terra dos Vivos?"

"Oh, Shamash, ouvi-me; ouvi-me, Shamash; ouvi o que tenho a dizer. Os homens aqui da cidade morrem com o coração oprimido, eles morrem com o desespero em seus corações. Tenho olhado por cima do muro e visto seus corpos flutuando no rio, e este será também o meu fim. Estou certo disso, pois por mais alto que seja um homem, ele jamais atingirá os céus, e o maior entre todos jamais conseguirá abarcar a terra. Por isso quero entrar naquela terra: por não ter ainda inscrito meu nome sobre as lápides, como decretou meu destino, irei à terra onde são abatidos os cedros. No lugar onde estão inscritos os nomes de varões ilustres, deixarei gravado o meu nome; e onde nome de homem algum foi jamais inscrito, mandarei erigir um monumento aos deuses."

Lágrimas escorreram por seu rosto, e ele disse: "Ai de mim! É longa a jornada até a Terra de Humbaba. Se esta iniciativa está fadada ao fracasso, por que encheste-me, oh, Shamash, de um sôfrego desejo de empreendê-la? Como poderei ter sucesso neste empreendimento sem vossa ajuda? Se eu morrer naquela terra, morrerei sem rancor; mas, se retornar, gloriosos serão os presentes e louvores que dedicarei a Shamash."

Shamash aceitou então o sacrifício de suas lágrimas. Tal como o homem piedoso, compadeceu-se de Gilgamesh. Escolheu aliados fortes para ajudá-lo, todos filhos de uma mesma mãe, e os posicionou nas cavernas da montanha. Recrutou os ventos poderosos: o vento norte, o furacão, o temporal e o vento gélido, a tempestade e o vento cáustico. Como víboras, como dragões, como um fogo devastador, como uma serpente que gela o coração, como um implacável dilúvio, como o grande raio; assim eram eles, e Gilgamesh exultou.

Ele se dirigiu à forja e disse: "Darei ordens aos armeiros; eles forjarão nossas armas enquanto nós os observamos." Deu então instruções aos armeiros e os artífices sentaram-se em conferência. Eles foram ao arvoredo que ficava na campina e cortaram a madeira do salgueiro e do buxo; e forjaram-lhes machados de cento e oitenta libras, e espadas majestosas com lâminas de cento e vinte libras, com punhos e botões de trinta. Forjaram para Gilgamesh o machado "Força dos Heróis" e o arco de Anshan. Gilgamesh e Enkidu estavam armados, e o peso das armas que carregavam era de seiscentas libras.

O povo e os conselheiros se reuniram nas ruas e no mercado de Uruk. Atravessaram o portão dos sete ferrolhos e Gilgamesh lhes falou no mercado: "Eu, Gilgamesh, irei encontrar essa criatura de quem tanto se fala, cuja fama se espalhou pelo mundo. Vou derrotá-lo na floresta dos cedros e mostrar a força dos filhos de Uruk; o mundo inteiro saberá disso. Eu me comprometo a levar a cabo este empreendimento: subir a montanha, abater o cedro e deixar para trás um nome ilustre e duradouro." Os conselheiros de Uruk e o povo responderam: "Gilgamesh, sois jovem; vossa coragem faz com que ambicioneis demais; certamente não sabeis o que para vós significa esta empresa. Soubemos que Humbaba não é igual aos mortais; tais são suas armas que ninguém pode vencê-lo. A floresta se estende por dez mil léguas em todos os sentidos; quem iria de sua própria vontade explorar suas profundezas? Quanto a Humbaba, seu rugido é como uma terrível borrasca, seu hálito é como o fogo, suas mandíbulas a própria morte. Por que ansiais, Gilgamesh, por tal empreendimento? Ninguém luta com Humbaba em pé de igualdade; ele é um aríete."

Ao ouvir estas palavras dos conselheiros, Gilgamesh olhou para seu amigo e pôs-se a rir. "Como responder a isso? Devo dizer-lhes que tenho medo de Humbaba e por isso ficarei sentado em casa pelo resto de meus dias?" Gilgamesh então tornou a abrir a boca e disse para Enkidu: "Amigo, vamos para o Grande Palácio, para Egalmah, e postemos-nos diante de Ninsun, a rainha. Ninsun tem profunda sabedoria; ela nos aconselhará quanto ao caminho que devemos tomar." Dando-se as mãos, eles seguiram a Egalmah e se dirigiram à grande rainha Ninsun. Gilgamesh se aproximou do palácio, entrou e falou a Ninsun: "Ninsun, por favor, escutai-me; tenho de empreender uma longa jornada à Terra de Humbaba; tenho de viajar por uma estrada desconhecida e me bater numa estranha batalha. Do dia em que eu partir até o dia da minha volta, até ter chegado à floresta de cedro e destruído o mal que Shamash abomina, rezai a Shamash por mim."

Ninsun foi para seu quarto, pôs um vestido que ficava bem em seu corpo, enfeitou-se com jóias para embelezar os seios e colocou uma tiara na cabeça; sua saia varria o chão. Ela dirigiu-se então ao altar do Sol, postando-se em cima do telhado do palácio; ela acendeu incenso e elevou seus braços a Shamash, enquanto a fumaça subia aos céus: "Oh, Shamash, por que dotastes Gilgamesh, meu filho, de um coração tão inquieto; por quê? Vós o incitastes, e ele agora está prestes a partir numa longa jornada para a Terra de Humbaba; ele vai viajar por uma estrada desconhecida e se bater numa estranha batalha. Do dia em que ele partir até o dia de sua volta, até que tenha chegado à floresta de cedro, morto Humbaba e destruído o mal que vós, Shamash, abominais, não vos esqueçais dele; deixai que vossa amada esposa, Aya, a aurora, vos lembre sempre disso, e ao final do dia entregai sua guarda à sentinela da noite, para que mal algum lhe advenha." Ninsun, a mãe de Gilgamesh, extinguiu então o incenso e chamou Enkidu com a seguinte exortação: "Poderoso Enkidu, não és filho do meu corpo, mas recebo-te como filho adotivo; és meu outro filho, como os bebês abandonados no templo. Serve a Gilgamesh como estas crianças servem ao templo e à sacerdotisa que os criou. Na presença de minhas servas, de meus sacerdotes e hierofantes, eu o declaro." Ela colocou então em torno de seu pescoço o amuleto do juramento e disse-lhe: "Eu te confio meu filho; traze-o de volta para mim em segurança."

Trouxeram-lhes então as armas. Depositaram em suas mãos as grandes espadas com suas bainhas de ouro, o arco e a aljava. Gilgamesh tomou o machado em suas mãos, pôs o arco de Anshan e a aljava sobre o ombro e afivelou a espada a seu cinto; estavam armados e prontos para partir. O povo havia chegado e se apinhava ao seu redor perguntando: "Quando retornareis à cidade?" Os conselheiros abençoaram Gilgamesh e o advertiram: "Não confieis demais em vossa própria força, tende cuidado e poupai vossos golpes no começo da luta. O que for à frente deve proteger seu companheiro; o bom guia que conhece o caminho protege seu amigo. Deixai que Enkidu vá na frente; ele conhece o caminho que leva à floresta, já viu Humbaba e é experiente na batalha. Deixai que avance primeiro pelos desfiladeiros, que fique alerta e que cuide de si mesmo. Deixai que Enkidu proteja seu amigo e que tome conta de seu companheiro, conduzindo-o em segurança através das armadilhas do percurso. Nós, conselheiros de Uruk, te confiamos nosso rei, oh, Enkidu; traze-o de volta em segurança para nós." E novamente tornaram a Gilgamesh, dizendo: "Que Shamash vos conceda o desejo de vosso coração, que ele permita que vejais com vossos olhos o sucesso do empreendimento proposto por vossos lábios; que ele vos abra uma trilha na estrada bloqueada; que ele crie um caminho para vossos pés. Que ele abra as montanhas para a vossa passagem, que a noite vos traga as bênçãos da noite, e que Lugulbanda, o deus que vos protege, esteja a vosso lado na luta pela vitória. Que saiais vitorioso da batalha, como se houvésseis lutado com uma criança. Lavai vossos pés no rio de Humbaba, ao qual vos dirigis; cavai um poço à noite e tende sempre água pura e límpida em vosso odre. Oferecei água fria a Shamash e não vos esqueçais de Lugulbanda."

Enkidu então abriu a boca e disse: "Avante, não há nada a temer. Segue-me, pois conheço o lugar onde vive Humbaba e as trilhas por onde ele passa. Deixa que os conselheiros retornem. Não há o que temer." Ao ouvirem isso, os conselheiros se despediram de Gilgamesh. "Ide, Gilgamesh, que vosso deus protetor vos ajude e vos traga de volta com segurança ao cais de Uruk."

Depois de vinte léguas de viagem, eles quebraram seu jejum; depois de outras trinta, pararam para passar a noite. Caminharam cinqüenta léguas num dia; em três dias, haviam percorrido o equivalente a uma jornada de um mês e duas semanas. Eles atravessaram sete montanhas antes de chegar ao portão da floresta. Enkidu então gritou para Gilgamesh: "Não te embrenhes na floresta; ao abrir o portão, minha mão perdeu sua força." Gilgamesh respondeu: “Caro amigo, não fales como um covarde”. Sobrepujamos tantos perigos e viajamos tanto para acabar voltando? Tu, que carregas a experiência de tantas batalhas e guerras, fica perto de mim e não terás medo da morte; fica do meu lado e tua fraqueza passará, os tremores abandonarão tua mão. Preferirias, amigo, ficar para trás? Não, desceremos juntos ao coração da floresta. Deixa as batalhas que estão por vir despertarem tua coragem; esquece a morte e segue-me, um homem resoluto mas prudente. Quando dois homens estão juntos, cada um se protege e escuda seu companheiro, e, se eles caem, deixam para trás um nome ilustre e duradouro.

Juntos eles se dirigiram à floresta e chegaram à montanha verde. Ali pararam, estupefatos, fitando imóveis a floresta. Viram a altura do cedro, examinaram o caminho que penetrava na floresta e a trilha por onde Humbaba costumava passar. O caminho era largo e fácil de percorrer. Eles contemplaram a montanha dos cedros, a morada dos deuses e o trono de Ishtar. O enorme cedro se elevava em frente à montanha; sua sombra era linda e cheia de conforto. A montanha e a clareira eram cobertas pelo verde do matagal.

Ali Gilgamesh cavou um poço antes do pôr-do-sol. Ele subiu a montanha, deitou farinha fina ao chão e disse: "Oh, montanha, morada dos deuses, trazei-me um sonho auspicioso." Os dois então deram-se as mãos e se deitaram para dormir, e o sono que flui da noite os envolveu docemente. Gilgamesh sonhou, e à meia-noite o sono o deixou. Gilgamesh contou seu sonho ao amigo. "Enkidu, o que foi que me acordou se não foste tu? Amigo, tive um sonho. Levanta e olha o despenhadeiro da montanha. O sono enviado pelos deuses foi interrompido. Ah, meu amigo, que sonho tive eu! Terror e confusão; eu havia agarrado um touro selvagem no meio da floresta. Ele urrava e batia com a pata no chão, levantando uma poeira que escureceu todo o céu. Meu braço foi imobilizado e minha língua mordida. Caí de joelhos. Alguém então me refrescou com água de seu odre."

Enkidu disse: "Caro amigo, o deus que procuramos nesta viagem não é nenhum touro, embora tenha uma forma misteriosa. O touro selvagem que viste é Shamash, o Protetor; quando estivermos em perigo, ele nos tomará pela mão. Aquele que te deu água tirada de seu odre é Lugulbanda, teu deus protetor, aquele que zela por teu bom nome. Unidos a ele, nós dois juntos realizaremos um feito cuja fama jamais será esquecida."

Gilgamesh disse: "Tive um outro sonho. Nós nos encontrávamos num desfiladeiro profundo da montanha, e perto dela éramos como minúsculas moscas de pântano. De repente a . montanha desmoronou; ela me atingiu e me derrubou. Veio então uma luz de brilho intolerável, e nela, alguém cuja beleza e graça eram superiores à beleza deste mundo. Ele me puxou de baixo da montanha e deu-me água para beber. Meu coração se sentiu confortado e ele tornou a colocar-me de pé sobre o chão."

Enkidu, o filho das campinas, então disse: "Desçamos a montanha e vamos conversar sobre isso." E disse a Gilgamesh, o jovem deus: "Teu sonho é bom, teu sonho é excelente; a montanha que viste é Humbaba. Agora sei com certeza que vamos pegá-lo, liquidá-lo e atirar seu corpo lá de cima, como a montanha que caiu sobre a planície."

No dia seguinte, depois de percorrer vinte léguas, eles quebraram seu jejum e, depois de mais trinta léguas, pararam para dormir. Cavaram um poço antes do pôr-do-sol, e Gilgamesh subiu a montanha. Ele deitou farinha fina ao chão e disse: "Oh, montanha, morada dos deuses, mandai um sonho para Enkidu; fazei com que seja um sonho auspicioso." A montanha moldou um sonho para Enkidu e ele lhe foi enviado; era um sonho ominoso. Uma chuva fria passava por cima dele e fazia com que fosse obrigado a se agachar, como a cevada da montanha que se curva sob um temporal. Mas Gilgamesh ficou sentado com o queixo sobre os joelhos até que o sono, que flui para toda a humanidade, se apoderou dele. Então, à meia-noite, o sono deixou-o; ele se levantou e disse para o amigo: "Tu me chamaste? Por que acordei? Tu me tocaste? Por que me sinto aterrorizado? Será que algum deus não passou por nós, pois meus membros estão paralisados pelo medo? Amigo, tive um terceiro sonho, e este sonho foi absolutamente terrível. Os céus troavam e a terra rugia de volta; a luz do dia apagou-se e a escuridão se instalou; os raios caíam, o fogo ardia com um brilho intenso, as nuvens baixaram do céu e derramaram sobre a terra uma chuva mortal. Então o brilho se extinguiu, o fogo se apagou, e tudo ao nosso redor havia se transformado em cinzas. Desçamos a montanha e vamos conversar sobre isto, e pensar sobre o que devemos fazer."

Depois de descerem a montanha, Gilgamesh tomou o machado em sua mão e abateu o cedro. Quando, a distância, Humbaba ouviu o barulho, ficou furioso e gritou: "Quem violou minha floresta e abateu o meu cedro?" Mas o glorioso Shamash gritou para eles do céu, "Avante, não temais!" Mas uma fraqueza se apoderara de Gilgamesh; ele fora repentinamente tomado por um sono profundo. Ele se estendeu no chão sem dizer uma só palavra, como num sonho. Enkidu tocou-o, mas ele não se levantou; Enkidu lhe falou, mas ele não respondeu. "Oh, Gilgamesh, Senhor da planície de Kullab, o mundo vai escurecendo, as sombras se espalham sobre sua superfície; eis os últimos e trêmulos raios do crepúsculo. Shamash partiu, sua cabeça incandescente repousa no colo de sua mãe Ningal. Oh, Gilgamesh, por quanto tempo ficarás assim, dormindo? Não permitas jamais que tua mãe, aquela que te deu à luz, seja forçada a velar-te na praça da cidade."

Gilgamesh por fim escutou-o; ele vestiu seu peitoral, "A Voz dos Heróis", que pesava trinta siclos; ele o colocou em seu corpo como se fosse o mais leve dos trajes. Gilgamesh estava totalmente coberto. Sua postura era semelhante à do touro quando calca o chão; seus dentes se cerraram. "Pela vida de minha mãe Ninsun, que me deu à luz, e pela vida de meu pai, o divino Lugulbanda, que eu viva para encher minha mãe de pasmo, como fazia quando ela me embalava em seu colo." Ele tornou a repetir para Enkidu: "Pela vida de Ninsun minha mãe, que me deu à luz, e pela vida de meu pai, o divino Lugulbanda, até que tenhamos lutado com este homem, se homem ele é, ou este deus, se deus ele é, a via que tomei para chegar à Terra dos Vivos não me levará de volta a Uruk."

Então Enkidu, o fiel companheiro, implorou em resposta: "Oh, meu senhor, tu não conheces este monstro e por isso não tens medo. Eu o conheço e estou aterrorizado. Seus dentes são como as presas do dragão, seu semblante é como o do leão, a fúria de seu ataque se assemelha à da torrente do dilúvio; com seu olhar ele esmaga as árvores da floresta e os juncos dos pântanos. Oh, meu senhor, podes prosseguir em tua incursão por este território se quiseres, mas eu retornarei à cidade. Contarei teus feitos gloriosos a tua mãe até que ela grite de júbilo: falarei então da morte que se seguiu até que ela chore de amargura." Mas Gilgamesh disse: "Ainda não estou preparado para a imolação e para o sacrifício, a barca dos mortos não descerá o rio comigo, nem tampouco será necessário que se prepare para mim a mortalha de três pregas. Meu povo também será poupado da tristeza; a pira não será acesa em minha casa; minha morada não será consumida pelo fogo. Dá-me tua ajuda hoje e te ajudarei amanhã: o que poderá então dar errado com nós dois juntos? Todas as criaturas nascidas da carne terão um dia que tomar um lugar na barca do Oeste, e, quando ela afundar, quando a barca de Magilum afundar, elas perecerão; mas nós continuaremos em frente e olharemos este monstro de frente. Se teu coração está tomado de medo, joga fora esse medo; se há terror nele, joga fora esse terror. Toma o machado em tua mão e lança-te ao ataque. Aquele que abandona a luta não fica em paz."

Humbaba irrompeu de sua sólida casa de cedro. Enkidu então gritou: "Oh, Gilgamesh, lembra-te agora de tuas bravatas em Uruk. Avante, ataca, filho de Uruk, não há o que temer." Ao ouvir estas palavras, Gilgamesh recobrou sua coragem; ele respondeu: "Rápido, cerca o sentinela; se ele passar por ali, não deixes que fuja para a floresta, onde acabará desaparecendo. Ele vestiu apenas o primeiro de seus sete esplendores e ainda não colocou os outros seis. Vamos apanhá-lo antes que se arme." Gilgamesh resfolegou como um touro enfurecido. O sentinela da floresta virou-se ameaçadoramente, e Gilgamesh gritou. Humbaba balançava e sacudia a cabeça, ameaçando Gilgamesh. O olho do gigante fixara-se nele, o olho da morte. Gilgamesh então invocou Shamash com os olhos cheios de lágrimas: "Oh, glorioso Shamash, tomei o caminho que me ordenastes, mas se não me mandardes socorro como poderei escapar?" O glorioso Shamash escutou sua prece e convocou o grande vento, o vento norte, o furacão, o temporal e o vento gélido, a tempestade e o vento cáustico. Eles chegaram como dragões, como o fogo devastador, como a serpente que gela o coração, como o implacável dilúvio, como os grandes raios. Os oito ventos se lançaram contra Humbaba, atingindo seus olhos; ele foi imobilizado, não conseguindo mover-se para a frente ou para trás. Gilgamesh gritou: "Pela vida de Ninsun, minha mãe, e do divino Lugulbanda, meu pai, nesta terra, na Terra dos Vivos, descobri tua morada. Vim a esta terra com meus frágeis braços e minhas pequenas armas para enfrentar-te, e agora entrarei em tua casa."
Ele então abateu o primeiro cedro; eles cortaram seus galhos e os depositaram ao pé da montanha. Ao primeiro golpe do machado Humbaba explodiu de ira, mas eles foram em frente. Abateram sete cedros, cortaram e amarraram seus galhos e os depositaram ao pé da montanha; e por sete vezes Humbaba lançou sobre eles o brilho de sua glória. Eles chegaram à caverna do gigante quando se extinguia o sétimo clarão. Humbaba esmurrou sua coxa em sinal de desdém. O gigante foi se aproximando como um touro nobre e selvagem que foi amarrado na montanha, um guerreiro com os cotovelos presos e atados por uma corda. As lágrimas corriam de seus olhos e a palidez lhe cobria o rosto. "Gilgamesh, deixa-me falar. Jamais tive uma mãe, não, nem um pai para me criar. Nasci da montanha, ela me criou, e Enlil fez de mim o sentinela da floresta. Deixa-me ir, Gilgamesh, e serei teu servo; tu serás meu senhor. Todas as árvores da montanha, que foram cuidadas por mim, serão tuas. Eu as abaterei e te construirei um palácio." Ele tomou Gilgamesh pela mão e o conduziu à sua casa, e isso fez com que o coração do herói se enchesse de piedade. Ele invocou a vida celestial, a vida terrena, o próprio mundo inferior: "Oh, Enkidu, não deveria o passarinho apanhado na armadilha retornar ao seu ninho, ou o prisioneiro para os braços de sua mãe?" Enkidu respondeu: “O mais forte dos homens cairá ante o destino se não tiver discernimento”. Namtar, o fado maligno, que não faz distinção entre os homens, devorá-lo-á. Se o pássaro preso na armadilha retornar ao seu ninho, se o prisioneiro voltar para os braços de sua mãe, então tu, meu amigo, jamais retornarás à cidade onde te espera a mãe que te gerou. Ele te bloqueará o caminho da montanha e tornará impossível tua passagem.

Humbaba disse: "Enkidu, isso que disseste é uma coisa má; tu, um mercenário, que dependes do trabalho para obter teu pão! Por inveja e por medo de um rival disseste essas maldades." Enkidu disse: "Não ouças o que ele diz, Gilgamesh: Humbaba tem de morrer. Mata Humbaba primeiro e seus servos depois." Mas Gilgamesh disse: "Se tocarmos nele, o brilho e o esplendor da luz serão perturbados; ela perderá seu encanto e sua majestade; seus raios se extinguirão." Enkidu disse a Gilgamesh: "De modo algum, meu amigo. Primeiro apanhas o pássaro, e para onde então correrão os passarinhos? Podemos depois procurar o encanto e a majestade, enquanto os passarinhos correm atarantados pela grama."

Gilgamesh ouviu seu companheiro. Ele tomou o machado em sua mão, desembainhou a espada e acertou Humbaba com uma estocada no pescoço. Seu companheiro Enkidu golpeou-o uma segunda vez. Na terceira investida Humbaba tombou. Seguiu-se então uma grande confusão, pois este a quem eles haviam morto era o sentinela da floresta. Por duas léguas os cedros estremeceram quando Enkidu abateu o vigia da floresta, aquele cuja voz fazia o montes Hermon e Líbano tremerem. As montanhas e todas as colinas se achavam agora agitadas e comovidas, pois o guarda da floresta fora morto. Eles atacaram os cedros; os sete esplendores de Humbaba se extinguiram. Eles então prosseguiram floresta adentro carregando a espada de oito talentos. Eles acharam as moradas sagradas dos Anunnaki e, enquanto Gilgamesh abatia a primeira árvore da floresta, Enkidu ia limpando suas raízes até as margens do Eufrates. Eles expuseram aos deuses, a Enlil, o corpo de Humbaba; eles beijaram o chão, deixaram cair a mortalha e apresentaram ao deus a cabeça do gigante. Ao ver a cabeça de Humbaba, Enlil gritou: "Por que fizestes isso? De agora em diante que o fogo castigue vossos rostos, que ele coma o pão que comeis, que beba a água que bebeis." Enlil então tomou de volta o brilho e os sete esplendores que haviam pertencido a Humbaba: ele deu o primeiro deles ao rio, e os outros ao leão, à pedra de execração, à montanha e à temida filha da Rainha do Inferno.

Oh, Gilgamesh, rei e conquistador do brilho terrível, touro selvagem que pilha a montanha, que atravessa o mar, louvado seja; e dos corajosos a maior glória é a de Enki!

 

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