Recebi de minha mulher um vídeo onde a atriz Alessandra Maestrini lê o texto transcrito a seguir. Alessandra Maestrini é a intéprete da hilária personagem Bozena do seriado "Toma lá, dá cá". Gostei tanto do texto que resolvi publicá-lo aqui no Blogson. Lêaí.
Ela entrou, deitou - se no
divã e disse: "Acho que estou ficando louca". Eu fiquei em silêncio
aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura. "Um dos meus
prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os
pimentões – é uma alegria! Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para
fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem
surpresas. Mas, cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi
que nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz
se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de
catedral gótica. De repente, a cebola, de objeto a ser comido, se transformou
em obra de arte para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei
os tomates, os pimentões... Agora, tudo o que vejo me causa espanto."
Ela se calou, esperando o
meu diagnóstico. Eu me levantei, fui à estante de livros e de lá retirei as
"Odes Elementales", de Pablo Neruda. Procurei a "Ode à
Cebola" e lhe disse: "Essa perturbação ocular que a acometeu é comum
entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe
causou assombro: 'Rosa de água com escamas de cristal'. Não, você não está
louca. Você ganhou olhos de poeta... Os poetas ensinam a ver".
Ver é muito complicado. Isso
é estranho porque os olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais
fácil compreensão científica. A sua física é idêntica à física óptica de uma
máquina fotográfica: o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de
dentro. Mas existe algo na visão que não pertence à física.
William Blake sabia disso e
afirmou: "A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo
vê". Sei disso por experiência própria. Quando vejo os ipês floridos,
sinto - me como Moisés diante da sarça ardente: ali está uma epifania do
sagrado. Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um
ipê que florescia à frente de sua casa porque ele sujava o chão, dava muito
trabalho para a sua vassoura. Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo.
Adélia Prado disse:
"Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma
pedra". Drummond viu uma pedra e não viu uma pedra. A pedra que ele viu
virou poema.
Há muitas pessoas de visão
perfeita que nada vêem. "Não é bastante não ser cego para ver as árvores e
as flores. Não basta abrir a janela para ver os campos e os rios",
escreveu Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. O ato de ver não é
coisa natural. Precisa ser aprendido. Nietzsche sabia disso e afirmou que a
primeira tarefa da educação é ensinar a ver. O zen-budismo concorda, e toda a
sua espiritualidade é uma busca da experiência chamada "satori", a
abertura do "terceiro olho". Não sei se Cummings se inspirava no zen-budismo,
mas o fato é que escreveu: "Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e
agora os olhos dos meus olhos se abriram".
Há um poema no Novo
Testamento que relata a caminhada de dois discípulos na companhia de Jesus
ressuscitado. Mas eles não o reconheciam. Reconheceram-no subitamente: ao
partir do pão, "seus olhos se abriram". Vinícius de Moraes adota o
mesmo mote em "Operário em Construção": "De forma que, certo
dia, à mesa ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção, ao
constatar assombrado que tudo naquela mesa - garrafa, prato, facão – era ele
quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em construção".
A diferença se encontra no
lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos estão na caixa de ferramentas,
eles são apenas ferramentas que usamos por sua função prática. Com eles vemos
objetos, sinais luminosos, nomes de ruas - e ajustamos a nossa ação. O ver se
subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é muito pobre. Os olhos não gozam...
Mas, quando os olhos estão na caixa dos brinquedos, eles se transformam em
órgãos de prazer: brincam com o que vêem, olham pelo prazer de olhar, querem
fazer amor com o mundo.
Os olhos que moram na caixa
de ferramentas são os olhos dos adultos. Os olhos que moram na caixa dos
brinquedos, das crianças. Para ter olhos brincalhões, é preciso ter as crianças
por nossas mestras. Alberto Caeiro disse haver aprendido a arte de ver com um
menininho, Jesus Cristo fugido do céu, tornado outra vez criança, eternamente:
"A mim, ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me
todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas
quando a gente as têm na mão e olha devagar para elas".
Por isso – porque eu acho
que a primeira função da educação é ensinar a ver – eu gostaria de sugerir que
se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar,
mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvãos da
banalidade cotidiana. Como o Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria
partejar "olhos vagabundos"...
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