Gilgamesh correu o mundo, mas, até chegar a Uruk, não encontrou quem pudesse opor-se à força de seus braços. Entretanto, os homens de Uruk murmuravam em suas casas: "Gilgamesh toca o sinal de alarme para se divertir; sua arrogância, de dia ou de noite, não conhece limites. Não há pai a quem tenha sobrado um filho, pois Gilgamesh os leva todos, até mesmo as crianças; e, no entanto, um rei deveria ser um pastor para seu povo. Sua luxúria não poupa uma só virgem para seu amado; nem a filha do guerreiro nem a mulher do nobre; no entanto, é este o pastor da cidade, sábio, belo e resoluto."
Os deuses escutaram o lamento do povo. Os
deuses do céu gritaram para o Senhor de Uruk, para Anu, o deus de Uruk:
"Uma deusa o fez forte como um touro selvagem; ninguém pode opor-se à
força de seus braços. Não há pai a quem tenha sobrado um filho, pois Gilgamesh os
leva todos; e é este o rei, o pastor de seu povo? Sua luxúria não poupa uma só
virgem para seu amado, nem a filha do guerreiro nem a mulher do nobre."
Depois de Anu ter escutado seu lamento, os deuses gritaram para Aruru, a deusa
da criação: "Vós o fizestes, oh, Aruru, criai agora um outro igual; que
seja tão parecido com ele quanto seu próprio reflexo; que seja seu segundo eu,
coração tempestuoso com coração tempestuoso. Que eles se enfrentem e deixem Uruk
em paz."
A deusa então concebeu em sua mente uma
imagem cuja essência era a mesma de Anu, o deus do firmamento. Ela mergulhou as
mãos na água e tomou um pedaço de barro; ela o deixou cair na selva, e assim
foi criado o nobre Enkidu. Havia nele virtudes do deus da guerra, do próprio
Ninurta. Seu corpo era rústico, seus cabelos como os de uma mulher; eles
ondulavam como o cabelo de Nisaba, a deusa dos grãos. Ele tinha o corpo coberto
por pêlos emaranhados, como os de Samuqan, o deus do gado. Ele era inocente a
respeito do homem e nada conhecia do cultivo da terra.
Enkidu comia grama nas colinas junto com as
gazelas e rondava os poços de água com os animais da floresta; junto com os
rebanhos de animais de caça, ele se alegrava com a água. Mas um dia, no poço, ele
se viu frente a frente com um caçador, pois os animais de caça haviam entrado
em seu território. Por três dias eles se encontraram frente a frente, e o
caçador se intimidou. Voltou para casa com sua caça e permaneceu mudo,
paralisado de terror. Seu rosto estava alterado como o de alguém que retorna de
uma longa viagem. Com o coração cheio de pasmo, ele falou a seu pai:
"Pai, há um homem, diferente de todos os outros, que desce das colinas.
Ele é o homem mais forte do mundo, parece um dos imortais do céu. Vagueia pelas
colinas com os animais selvagens e come grama; vagueia por tuas terras e desce
até os poços d'água. Tenho medo e não ouso dele me aproximar. Ele tapa os
buracos que cavo e destrói as armadilhas que preparo para a caça; ele ajuda as feras
a escapar e agora elas escorregam por entre meus dedos."
Seu pai abriu a boca e disse ao caçador:
"Filho, em Uruk vive Gilgamesh; ninguém jamais o venceu, ele é tão forte
quanto uma estrela do céu. Vai a Uruk, encontra Gilgamesh e exalta-lhe a força deste
selvagem. Pede-lhe que te arranje uma rameira, uma dissoluta do templo do amor;
retorna com ela e deixa que seu poder subjugue este homem. Da próxima vez que
ele descer para tomar água no poço, ela estará lá, nua; e quando a vir,
acenando para ele, vai abraçá-la, e os animais da selva passarão a
repudiá-lo."
O caçador partiu para Uruk e se dirigiu a
Gilgamesh, dizendo: "Um homem diferente de todos os outros anda vagueando
por nossos pastos; ele tem a força de uma estrela do céu e tenho medo de aproximar-me
dele. Ele ajuda as presas a escapar e tapa e destrói as minhas
armadilhas." Gilgamesh disse: "Caçador, volta, leva contigo uma rameira,
uma filha do prazer. No poço ela se desnudará; ao vê-la acenando, ele a tomará
em seus braços e os animais da selva certamente passarão a repudiá-lo."
O caçador então retornou, levando consigo a
rameira. Após três dias de viagem, eles chegaram ao poço e lá se sentaram; a
rameira e o caçador se sentaram frente a frente e se puseram a esperar pela chegada
dos animais. Por dois dias o caçador e a rameira ficaram esperando, mas no
terceiro dia eles chegaram; chegaram para beber água e Enkidu estava entre
eles. As pequenas criaturas selvagens regozijaram-se com a água, e entre elas
Enkidu, que comia grama junto com as gazelas e nascera nas colinas; e ela o
viu, o selvagem, vindo das distantes colinas. O caçador disse à rameira:
"Lá está ele. Agora, mulher, desnuda teus seios, não tenhas vergonha;
anda, acolhe o seu amor. Deixa que ele te veja nua, deixa que
possua teu corpo. Quando ele chegar perto, tira tua roupa e deita-te com ele;
ensina ao selvagem tuas artes de mulher, para que, quando venha murmurar-te
palavras de amor, os animais da selva, que compartilharam sua vida nas colinas,
passem a repudiá-lo."
Ela não teve pudores em tomá-lo em seus
braços, ela se despiu e acolheu de bom grado o corpo ávido de Enkidu. Ele se
deitou sobre ela murmurando palavras de amor, e ela lhe ensinou as artes da
mulher. Por seis dias e sete noites eles ali ficaram deitados, pois Enkidu se
esquecera de seu lar nas colinas; depois de satisfeito, porém, ele voltou para
os animais selvagens. Mas agora, ao vê-lo, as gazelas punham-se em disparada;
as criaturas agrestes fugiam quando delas se aproximava. Enkidu queria
segui-las, mas seu corpo parecia estar preso por uma corda, seus joelhos
fraquejavam quando tentava correr, ele perdera sua rapidez e agilidade. E todas
as criaturas da selva fugiram; Enkidu perdera sua força, pois agora tinha o conhecimento
dentro de si, e os pensamentos do homem ocupavam seu coração. Então ele voltou
e sentou-se ao pé da mulher, e escutou com atenção o que ela lhe disse: "És
sábio, Enkidu, e agora te tornaste semelhante a um deus. Por que queres ficar
correndo à solta nas colinas com as feras do mato? Vem comigo. Vem e te levarei
à Uruk das poderosas muralhas, ao abençoado templo de Ishtar e Anu, do amor e
do céu; lá vive Gilgamesh, que é forte, e como um touro selvagem domina e
governa os homens."
A fala da mulher agradou a Enkidu; ele
ansiava por ter um companheiro, alguém que pudesse compreender seu coração. "Vamos,
mulher, leva-me a esse templo sagrado, à casa de Anu e de Ishtar, ao lugar onde
Gilgamesh domina e governa seu povo. Eu audazmente o desafiarei; gritarei em
Uruk: 'Sou o mais forte daqui, vim para mudar a velha ordem, sou aquele que
nasceu nas colinas, sou aquele que é de todos o mais forte.'"
Ela disse: "Vamos, e deixa que ele te
veja o rosto. Sei muito bem onde se encontra Gilgamesh na grande Uruk. Oh,
Enkidu, lá todos se vestem magnificamente, todos os dias são de festa, e que
maravilhosa visão fornecem os rapazes e as jovens. Como é suave e doce seu cheiro!
Todos os poderosos estão despertos pela cidade. Oh, Enkidu, tu, que amas a
vida, farei com que conheças Gilgamesh, um homem de muitos humores; tu o
conhecerás em seu radiante apogeu de virilidade. Seu corpo é perfeito em força
e maturidade; ele jamais descansa, nem à noite nem de dia. Ele é mais forte que
tu, por isso põe de lado essa bravata. Shamash, o glorioso sol, concedeu-lhe
favores, assim como Anu dos céus, e Enlil; e Ea, o sábio, deu-lhe discernimento
e inteligência. Eu te digo, mesmo antes de teres deixado a vida selvagem,
Gilgamesh saberá de tua chegada através de sonhos."
Então Gilgamesh se levantou para contar o
sonho que tivera à sua mãe, Ninsun, uma das deusas de grande saber. "Mãe,
tive um sonho esta noite. Eu me sentia muito feliz, cercado de jovens heróis, e
caminhava pela noite sob as estrelas do firmamento. Um meteoro, feito da mesma
substância de Anu, caiu do céu. Tentei levantá-lo do chão, mas era pesado
demais. Toda a gente de Uruk veio vê-lo; o povo se empurrava e se acotovelava
ao seu redor, e os nobres se apinhavam para beijar-lhe os pés; ele exercia
sobre mim uma atração semelhante à que exerce o amor de uma mulher. Eles me
ajudaram; levantei seu corpo com o auxílio de correias e trouxe-o à vossa
presença, e vós declarastes ser ele meu irmão."
Então Ninsun, que é sábia e bem-amada, disse
a Gilgamesh: "Esta estrela do céu que caiu como um meteoro, que tentaste
levantar do chão, mas achaste muito pesada, que tentaste remover, mas que dali não
arredava pé, e então trouxeste a mim; eu a criei para ti, para estimular-te
como que com um aguilhão, e te sentiste atraído como que por uma mulher. Ele é
um forte companheiro, alguém que ajuda o amigo nas horas de necessidade. Ele é
o mais forte entre todas as criaturas selvagens; é feito da substância de Anu.
Ele nasceu nos campos e foi criado nas colinas agrestes. Ficarás feliz ao encontrá-lo;
vais amá-lo como a uma mulher, e ele jamais te abandonará. E isto o que
significa teu sonho."
Gilgamesh disse: "Mãe, tive um segundo
sonho. Um machado jazia no chão de Uruk das poderosas muralhas; seu formato era
estranho e as pessoas se amontoavam ao seu redor. Eu o vi e fiquei contente. Eu
me abaixei, sentindo-me profundamente atraído por ele; eu o amei como a uma
mulher e passei a levá-lo comigo, ao meu lado." Ninsun respondeu:
"Aquele machado que viste, que te atraiu tão profundamente como o amor de
uma mulher, aquele é o companheiro que te envio, e ele chegará com força e
pujança como um deus da hoste celeste. Ele é o bravo companheiro, que salva o
amigo que dele precisa." Gilgamesh disse a sua mãe: "Um amigo, um
conselheiro chegou até mim vindo de Enlil; serei, pois, seu amigo e lhe darei conselhos."
Gilgamesh assim narrou seu sonho; e a rameira o repetiu para Enkidu.
E ela disse então a Enkidu: "Olho para
ti e vejo que agora és como um deus. Por que anseias por voltar a correr pelos
campos com as feras do mato? Ergue-te do chão, a cama do pastor." Ele
escutou com atenção suas palavras. Era um bom conselho que lhe dava. A rameira dividiu
sua roupa em duas partes; com uma metade o vestiu, usando a outra para si.
Tomando Enkidu pela mão, como a uma criança, ela o conduziu ao aprisco, para as
tendas dos pastores, que se amontoaram ao seu redor para vê-lo. Eles
depositaram pão à sua frente, mas Enkidu só estava habituado ao leite que
sugava dos animais selvagens. Ele se atrapalhou com as mãos e pasmou, sem saber
o que fazer com o pão e o vinho forte. A mulher então disse: "Enkidu, come
o pão, é o suporte da vida; bebe o vinho, é o costume da terra." Enkidu
então comeu até ficar satisfeito e bebeu do vinho forte, sete cálices. Ele
ficou alegre, seu coração exultou e seu rosto se cobriu de brilho. Enkidu
escovou os pelos emaranhados de seu corpo e untou-se com óleo. Ele se
transformara num homem; mas, ao vestir as roupas humanas, ficou parecendo um noivo.
Ele se armou para caçar o leão, para que os pastores pudessem repousar à noite.
Ele caçou lobos e leões, e os pastores puderam dormir em paz, pois Enkidu,
aquele homem forte e sem rivais, era seu sentinela.
Ele se sentia feliz vivendo com os pastores,
até que um dia, levantando o olhar, viu que um homem se aproximava. Ele disse à
rameira: "Mulher, traze aqui aquele homem. Por que veio aqui? Quero saber
seu nome." Ela foi e chamou o homem, dizendo: "Senhor, onde vais
nesta fatigante jornada?" O homem respondeu, falando a Enkidu: "Gilgamesh
foi para o templo do casamento e não deixa que o povo lá entre. Ele faz coisas
estranhas em Uruk, a cidade das grandes ruas. Ao rufar dos tambores, os homens
e as mulheres começam a trabalhar. Gilgamesh, o rei, está prestes a celebrar as
núpcias com a Rainha do Amor, e ele ainda insiste em estar primeiro com a
noiva; primeiro o rei, depois o marido, pois assim ordenaram os deuses desde a
época de seu nascimento, quando lhe foi cortado o cordão umbilical. Mas agora os
tambores rufam para a escolha da noiva, e a cidade geme de dor." Ao ouvir
estas palavras, Enkidu empalideceu. "Irei à cidade cujo povo Gilgamesh
domina e governa; vou desafiá-lo audazmente para um combate e gritarei por
Uruk: 'Vim para mudar a velha ordem, pois sou o mais forte daqui.'"
Enkidu ia agora na frente, a largas passadas,
e a mulher o seguia.Ele entrou em Uruk, aquele grande mercado, e todo o povo se
amontoou ao seu redor. Naquela rua de Uruk das poderosas muralhas, as pessoas
se comprimiam e se acotovelavam e, falando dele, diziam: "Ele é a imagem
de Gilgamesh." "Ele é mais baixo." "Ele é mais
robusto." "Esta é a criatura que se criou tomando leite das feras
selvagens. Sua força é superior à de todos os outros." Os homens se
regozijavam de felicidade: "Agora Gilgamesh encontrou um rival à sua altura.
Esta grande criatura, este herói de divina beleza pode enfrentar até mesmo Gilgamesh."
Em Uruk o leito nupcial fora preparado, um
leito digno da deusa do amor. A noiva ficou esperando seu prometido; à noite,
porém, Gilgamesh levantou-se e se dirigiu à casa. Enkidu foi então para a rua e
bloqueou sua passagem. O poderoso Gilgamesh se aproximou e encontrou Enkidu no
portão. Este esticou sua perna para impedir-lhe a entrada. Os dois então se
engalfinharam como touros. Destruíram a porta da casa, e suas paredes tremeram;
bufavam como dois touros trancados juntos. Os batentes da porta ficaram em
pedaços e as paredes da casa tremeram. Gilgamesh curvou o
joelho, fincou os pés no chão e, virando-se, derrubou Enkidu. Sua fúria então
se desvaneceu imediatamente. Após a queda, Enkidu disse a Gilgamesh: "Não
há ninguém como tu no mundo. Ninsun, que tem a força de um boi selvagem no
estábulo, foi quem te deu à luz, e agora estás acima de todos os homens. Enlil
te deu a coroa, pois tua força ultrapassa a força dos homens." Enkidu e
Gilgamesh então se abraçaram, e assim foi selada sua amizade.
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