terça-feira, 2 de abril de 2024

A CHEGADA DE ENKIDU

 
Gilgamesh correu o mundo, mas, até chegar a Uruk, não encontrou quem pudesse opor-se à força de seus braços. Entretanto, os homens de Uruk murmuravam em suas casas: "Gilgamesh toca o sinal de alarme para se divertir; sua arrogância, de dia ou de noite, não conhece limites. Não há pai a quem tenha sobrado um filho, pois Gilgamesh os leva todos, até mesmo as crianças; e, no entanto, um rei deveria ser um pastor para seu povo. Sua luxúria não poupa uma só virgem para seu amado; nem a filha do guerreiro nem a mulher do nobre; no entanto, é este o pastor da cidade, sábio, belo e resoluto."

Os deuses escutaram o lamento do povo. Os deuses do céu gritaram para o Senhor de Uruk, para Anu, o deus de Uruk: "Uma deusa o fez forte como um touro selvagem; ninguém pode opor-se à força de seus braços. Não há pai a quem tenha sobrado um filho, pois Gilgamesh os leva todos; e é este o rei, o pastor de seu povo? Sua luxúria não poupa uma só virgem para seu amado, nem a filha do guerreiro nem a mulher do nobre." Depois de Anu ter escutado seu lamento, os deuses gritaram para Aruru, a deusa da criação: "Vós o fizestes, oh, Aruru, criai agora um outro igual; que seja tão parecido com ele quanto seu próprio reflexo; que seja seu segundo eu, coração tempestuoso com coração tempestuoso. Que eles se enfrentem e deixem Uruk em paz."

A deusa então concebeu em sua mente uma imagem cuja essência era a mesma de Anu, o deus do firmamento. Ela mergulhou as mãos na água e tomou um pedaço de barro; ela o deixou cair na selva, e assim foi criado o nobre Enkidu. Havia nele virtudes do deus da guerra, do próprio Ninurta. Seu corpo era rústico, seus cabelos como os de uma mulher; eles ondulavam como o cabelo de Nisaba, a deusa dos grãos. Ele tinha o corpo coberto por pêlos emaranhados, como os de Samuqan, o deus do gado. Ele era inocente a respeito do homem e nada conhecia do cultivo da terra.

Enkidu comia grama nas colinas junto com as gazelas e rondava os poços de água com os animais da floresta; junto com os rebanhos de animais de caça, ele se alegrava com a água. Mas um dia, no poço, ele se viu frente a frente com um caçador, pois os animais de caça haviam entrado em seu território. Por três dias eles se encontraram frente a frente, e o caçador se intimidou. Voltou para casa com sua caça e permaneceu mudo, paralisado de terror. Seu rosto estava alterado como o de alguém que retorna de uma longa viagem. Com o coração cheio de pasmo, ele falou a seu pai: "Pai, há um homem, diferente de todos os outros, que desce das colinas. Ele é o homem mais forte do mundo, parece um dos imortais do céu. Vagueia pelas colinas com os animais selvagens e come grama; vagueia por tuas terras e desce até os poços d'água. Tenho medo e não ouso dele me aproximar. Ele tapa os buracos que cavo e destrói as armadilhas que preparo para a caça; ele ajuda as feras a escapar e agora elas escorregam por entre meus dedos."

Seu pai abriu a boca e disse ao caçador: "Filho, em Uruk vive Gilgamesh; ninguém jamais o venceu, ele é tão forte quanto uma estrela do céu. Vai a Uruk, encontra Gilgamesh e exalta-lhe a força deste selvagem. Pede-lhe que te arranje uma rameira, uma dissoluta do templo do amor; retorna com ela e deixa que seu poder subjugue este homem. Da próxima vez que ele descer para tomar água no poço, ela estará lá, nua; e quando a vir, acenando para ele, vai abraçá-la, e os animais da selva passarão a repudiá-lo."

O caçador partiu para Uruk e se dirigiu a Gilgamesh, dizendo: "Um homem diferente de todos os outros anda vagueando por nossos pastos; ele tem a força de uma estrela do céu e tenho medo de aproximar-me dele. Ele ajuda as presas a escapar e tapa e destrói as minhas armadilhas." Gilgamesh disse: "Caçador, volta, leva contigo uma rameira, uma filha do prazer. No poço ela se desnudará; ao vê-la acenando, ele a tomará em seus braços e os animais da selva certamente passarão a repudiá-lo."

O caçador então retornou, levando consigo a rameira. Após três dias de viagem, eles chegaram ao poço e lá se sentaram; a rameira e o caçador se sentaram frente a frente e se puseram a esperar pela chegada dos animais. Por dois dias o caçador e a rameira ficaram esperando, mas no terceiro dia eles chegaram; chegaram para beber água e Enkidu estava entre eles. As pequenas criaturas selvagens regozijaram-se com a água, e entre elas Enkidu, que comia grama junto com as gazelas e nascera nas colinas; e ela o viu, o selvagem, vindo das distantes colinas. O caçador disse à rameira: "Lá está ele. Agora, mulher, desnuda teus seios, não tenhas vergonha; anda, acolhe o seu amor. Deixa que ele te veja nua, deixa que possua teu corpo. Quando ele chegar perto, tira tua roupa e deita-te com ele; ensina ao selvagem tuas artes de mulher, para que, quando venha murmurar-te palavras de amor, os animais da selva, que compartilharam sua vida nas colinas, passem a repudiá-lo."

Ela não teve pudores em tomá-lo em seus braços, ela se despiu e acolheu de bom grado o corpo ávido de Enkidu. Ele se deitou sobre ela murmurando palavras de amor, e ela lhe ensinou as artes da mulher. Por seis dias e sete noites eles ali ficaram deitados, pois Enkidu se esquecera de seu lar nas colinas; depois de satisfeito, porém, ele voltou para os animais selvagens. Mas agora, ao vê-lo, as gazelas punham-se em disparada; as criaturas agrestes fugiam quando delas se aproximava. Enkidu queria segui-las, mas seu corpo parecia estar preso por uma corda, seus joelhos fraquejavam quando tentava correr, ele perdera sua rapidez e agilidade. E todas as criaturas da selva fugiram; Enkidu perdera sua força, pois agora tinha o conhecimento dentro de si, e os pensamentos do homem ocupavam seu coração. Então ele voltou e sentou-se ao pé da mulher, e escutou com atenção o que ela lhe disse: "És sábio, Enkidu, e agora te tornaste semelhante a um deus. Por que queres ficar correndo à solta nas colinas com as feras do mato? Vem comigo. Vem e te levarei à Uruk das poderosas muralhas, ao abençoado templo de Ishtar e Anu, do amor e do céu; lá vive Gilgamesh, que é forte, e como um touro selvagem domina e governa os homens."

A fala da mulher agradou a Enkidu; ele ansiava por ter um companheiro, alguém que pudesse compreender seu coração. "Vamos, mulher, leva-me a esse templo sagrado, à casa de Anu e de Ishtar, ao lugar onde Gilgamesh domina e governa seu povo. Eu audazmente o desafiarei; gritarei em Uruk: 'Sou o mais forte daqui, vim para mudar a velha ordem, sou aquele que nasceu nas colinas, sou aquele que é de todos o mais forte.'"

Ela disse: "Vamos, e deixa que ele te veja o rosto. Sei muito bem onde se encontra Gilgamesh na grande Uruk. Oh, Enkidu, lá todos se vestem magnificamente, todos os dias são de festa, e que maravilhosa visão fornecem os rapazes e as jovens. Como é suave e doce seu cheiro! Todos os poderosos estão despertos pela cidade. Oh, Enkidu, tu, que amas a vida, farei com que conheças Gilgamesh, um homem de muitos humores; tu o conhecerás em seu radiante apogeu de virilidade. Seu corpo é perfeito em força e maturidade; ele jamais descansa, nem à noite nem de dia. Ele é mais forte que tu, por isso põe de lado essa bravata. Shamash, o glorioso sol, concedeu-lhe favores, assim como Anu dos céus, e Enlil; e Ea, o sábio, deu-lhe discernimento e inteligência. Eu te digo, mesmo antes de teres deixado a vida selvagem, Gilgamesh saberá de tua chegada através de sonhos."

Então Gilgamesh se levantou para contar o sonho que tivera à sua mãe, Ninsun, uma das deusas de grande saber. "Mãe, tive um sonho esta noite. Eu me sentia muito feliz, cercado de jovens heróis, e caminhava pela noite sob as estrelas do firmamento. Um meteoro, feito da mesma substância de Anu, caiu do céu. Tentei levantá-lo do chão, mas era pesado demais. Toda a gente de Uruk veio vê-lo; o povo se empurrava e se acotovelava ao seu redor, e os nobres se apinhavam para beijar-lhe os pés; ele exercia sobre mim uma atração semelhante à que exerce o amor de uma mulher. Eles me ajudaram; levantei seu corpo com o auxílio de correias e trouxe-o à vossa presença, e vós declarastes ser ele meu irmão."

Então Ninsun, que é sábia e bem-amada, disse a Gilgamesh: "Esta estrela do céu que caiu como um meteoro, que tentaste levantar do chão, mas achaste muito pesada, que tentaste remover, mas que dali não arredava pé, e então trouxeste a mim; eu a criei para ti, para estimular-te como que com um aguilhão, e te sentiste atraído como que por uma mulher. Ele é um forte companheiro, alguém que ajuda o amigo nas horas de necessidade. Ele é o mais forte entre todas as criaturas selvagens; é feito da substância de Anu. Ele nasceu nos campos e foi criado nas colinas agrestes. Ficarás feliz ao encontrá-lo; vais amá-lo como a uma mulher, e ele jamais te abandonará. E isto o que significa teu sonho."

Gilgamesh disse: "Mãe, tive um segundo sonho. Um machado jazia no chão de Uruk das poderosas muralhas; seu formato era estranho e as pessoas se amontoavam ao seu redor. Eu o vi e fiquei contente. Eu me abaixei, sentindo-me profundamente atraído por ele; eu o amei como a uma mulher e passei a levá-lo comigo, ao meu lado." Ninsun respondeu: "Aquele machado que viste, que te atraiu tão profundamente como o amor de uma mulher, aquele é o companheiro que te envio, e ele chegará com força e pujança como um deus da hoste celeste. Ele é o bravo companheiro, que salva o amigo que dele precisa." Gilgamesh disse a sua mãe: "Um amigo, um conselheiro chegou até mim vindo de Enlil; serei, pois, seu amigo e lhe darei conselhos." Gilgamesh assim narrou seu sonho; e a rameira o repetiu para Enkidu.

E ela disse então a Enkidu: "Olho para ti e vejo que agora és como um deus. Por que anseias por voltar a correr pelos campos com as feras do mato? Ergue-te do chão, a cama do pastor." Ele escutou com atenção suas palavras. Era um bom conselho que lhe dava. A rameira dividiu sua roupa em duas partes; com uma metade o vestiu, usando a outra para si. Tomando Enkidu pela mão, como a uma criança, ela o conduziu ao aprisco, para as tendas dos pastores, que se amontoaram ao seu redor para vê-lo. Eles depositaram pão à sua frente, mas Enkidu só estava habituado ao leite que sugava dos animais selvagens. Ele se atrapalhou com as mãos e pasmou, sem saber o que fazer com o pão e o vinho forte. A mulher então disse: "Enkidu, come o pão, é o suporte da vida; bebe o vinho, é o costume da terra." Enkidu então comeu até ficar satisfeito e bebeu do vinho forte, sete cálices. Ele ficou alegre, seu coração exultou e seu rosto se cobriu de brilho. Enkidu escovou os pelos emaranhados de seu corpo e untou-se com óleo. Ele se transformara num homem; mas, ao vestir as roupas humanas, ficou parecendo um noivo. Ele se armou para caçar o leão, para que os pastores pudessem repousar à noite. Ele caçou lobos e leões, e os pastores puderam dormir em paz, pois Enkidu, aquele homem forte e sem rivais, era seu sentinela.

Ele se sentia feliz vivendo com os pastores, até que um dia, levantando o olhar, viu que um homem se aproximava. Ele disse à rameira: "Mulher, traze aqui aquele homem. Por que veio aqui? Quero saber seu nome." Ela foi e chamou o homem, dizendo: "Senhor, onde vais nesta fatigante jornada?" O homem respondeu, falando a Enkidu: "Gilgamesh foi para o templo do casamento e não deixa que o povo lá entre. Ele faz coisas estranhas em Uruk, a cidade das grandes ruas. Ao rufar dos tambores, os homens e as mulheres começam a trabalhar. Gilgamesh, o rei, está prestes a celebrar as núpcias com a Rainha do Amor, e ele ainda insiste em estar primeiro com a noiva; primeiro o rei, depois o marido, pois assim ordenaram os deuses desde a época de seu nascimento, quando lhe foi cortado o cordão umbilical. Mas agora os tambores rufam para a escolha da noiva, e a cidade geme de dor." Ao ouvir estas palavras, Enkidu empalideceu. "Irei à cidade cujo povo Gilgamesh domina e governa; vou desafiá-lo audazmente para um combate e gritarei por Uruk: 'Vim para mudar a velha ordem, pois sou o mais forte daqui.'"

Enkidu ia agora na frente, a largas passadas, e a mulher o seguia.Ele entrou em Uruk, aquele grande mercado, e todo o povo se amontoou ao seu redor. Naquela rua de Uruk das poderosas muralhas, as pessoas se comprimiam e se acotovelavam e, falando dele, diziam: "Ele é a imagem de Gilgamesh." "Ele é mais baixo." "Ele é mais robusto." "Esta é a criatura que se criou tomando leite das feras selvagens. Sua força é superior à de todos os outros." Os homens se regozijavam de felicidade: "Agora Gilgamesh encontrou um rival à sua altura. Esta grande criatura, este herói de divina beleza pode enfrentar até mesmo Gilgamesh."

Em Uruk o leito nupcial fora preparado, um leito digno da deusa do amor. A noiva ficou esperando seu prometido; à noite, porém, Gilgamesh levantou-se e se dirigiu à casa. Enkidu foi então para a rua e bloqueou sua passagem. O poderoso Gilgamesh se aproximou e encontrou Enkidu no portão. Este esticou sua perna para impedir-lhe a entrada. Os dois então se engalfinharam como touros. Destruíram a porta da casa, e suas paredes tremeram; bufavam como dois touros trancados juntos. Os batentes da porta ficaram em pedaços e as paredes da casa tremeram. Gilgamesh curvou o joelho, fincou os pés no chão e, virando-se, derrubou Enkidu. Sua fúria então se desvaneceu imediatamente. Após a queda, Enkidu disse a Gilgamesh: "Não há ninguém como tu no mundo. Ninsun, que tem a força de um boi selvagem no estábulo, foi quem te deu à luz, e agora estás acima de todos os homens. Enlil te deu a coroa, pois tua força ultrapassa a força dos homens." Enkidu e Gilgamesh então se abraçaram, e assim foi selada sua amizade.

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