quinta-feira, 31 de março de 2022

A ARTE DE SER AVÓ – RACHEL DE QUEIROZ

 
Se alguém imaginou que eu iria perder meu tempo fazendo algum comentário (além deste) sobre o jurássico golpe-revolução de 1964, dançou. O post de hoje é cheio de lirismo e delicadeza, pois traz uma crônica deliciosa de Rachel de Queiroz. Olhaí.

 
Quarenta anos, quarenta e cinco. Você sente, obscuramente, nos seus ossos, que o tempo passou mais depressa do que esperava. Não lhe incomoda envelhecer, é claro. A velhice tem suas alegrias, as sua compensações – todos dizem isso, embora você pessoalmente, ainda não as tenha descoberto – mas acredita.
Todavia, também obscuramente, também sentida nos seus ossos, às vezes lhe dá aquela nostalgia da mocidade.
Não de amores nem de paixão; a doçura da meia-idade não lhe exige essas efervescências. A saudade é de alguma coisa que você tinha e lhe fugiu sutilmente junto com a mocidade. Bracinhos de criança no seu pescoço. Choro de criança. O tumulto da presença infantil ao seu redor. Meu Deus, para onde foram as suas crianças? Naqueles adultos cheios de problemas, que hoje são seus filhos, que têm sogro e sogra, cônjuge, emprego, apartamento e prestações, você não encontra de modo algum as suas crianças perdidas. São homens e mulheres – não são mais aqueles que você recorda.
E então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das agonias da gestação ou do parto, o doutor lhe põe nos braços um menino. Completamente grátis – nisso é que está a maravilha. Sem dores, sem choro, aquela criancinha da sua raça, da qual você morria de saudades, símbolo ou penhor da mocidade perdida. Pois aquela criancinha, longe de ser um estranho, é um menino que se lhe é “devolvido”. E o espantoso é que todos lhe reconhecem o seu direito sobre ele, ou pelo menos o seu direito de o amar com extravagância; ao contrário, causaria escândalo ou decepção, se você não o acolhesse imediatamente com todo aquele amor que há anos se acumulava, desdenhado, no seu coração.
Sim, tenho a certeza de que a vida nos dá os netos para nos compensar de todas as mutilações trazidas pela velhice. São amores novos, profundos e felizes, que vêm ocupar aquele lugar vazio, nostálgico, deixado pelos arroubos juvenis.
Aliás, desconfio muito de que netos são melhores que namorados, pois que as violências da mocidade produzem mais lágrimas do que enlevos. Se o Doutor Fausto fosse avô, trocaria calmamente dez Margaridas por um neto…
No entanto! Nem tudo são flores no caminho da avó. Há, acima de tudo, o entrave maior, a grande rival: a mãe. Não importa que ela, em si, seja sua filha. Não deixa por isso de ser a mãe do neto. Não importa que ela hipocritamente, ensine a criança a lhe dar beijos e a lhe chamar de “vovozinha” e lhe conte que de noite, às vezes, ele de repente acorda e pergunta por você. São lisonjas, nada mais. No fundo ela é rival mesmo. Rigorosamente, nas suas posições respectivas, a mãe e a avó representam, em relação ao neto, papéis muito semelhantes ao da esposa e da amante nos triângulos conjugais. A mãe tem todas as vantagens da domesticidade e da presença constante. Dorme com ele, dá-lhe banho, veste-o, embala-o de noite. Contra si tem a fadiga da rotina, a obrigação de educar e o ônus de castigar.
Já a avó não tem direitos legais, mas oferece a sedução do romance e do imprevisto. Mora em outra casa. Traz presentes. Faz coisas não programadas. Leva a passear, “não ralha nunca”. Deixa lambuzar de pirulito. Não tem a menor pretensão pedagógica. É a confidente das horas de ressentimento, o último recurso dos momentos de opressão, a secreta aliada nas crises de rebeldia. Uma noite passada em sua casa é uma deliciosa fuga à rotina, tem todos os encantos de uma aventura. Lá não há linha divisória entre o proibido e o permitido, antes uma maravilhosa subversão da disciplina. Dormir sem lavar as mãos, recusar a sopa e comer croquetes, tomar café, mexer na louça, fazer trem com as cadeiras na sala, destruir revistas, derramar água no gato, acender e apagar a luz elétrica mil vezes se quiser – e até fingir que está discando o telefone. Riscar a parede com lápis dizendo que foi sem querer – e ser acreditado!
Fazer má-criação aos gritos e em vez de apanhar ir para os braços do avô, e lá escutar os debates sobre os perigos e os erros da educação moderna…
Sabe-se que, no reino dos céus, o cristão defunto desfruta os mais requintados prazeres da alma. Porém não estarão muito acima da alegria de sair de mãos dadas com o seu neto, numa manhã de sol. E olhe que aqui embaixo você ainda tem o direito de sentir orgulho, que aos bem-aventurados será defeso. Meu Deus, o olhar das outras avós com seus filhotes magricelas ou obesos, a morrerem de inveja do seu maravilhoso neto!
E quando você vai embalar o neto e ele, tonto de sono, abre um olho, lhe reconhece, sorri e diz “Vó”, seu coração estala de felicidade, como pão ao forno.
E o misterioso entendimento que há entre avó e neto, na hora em que a mãe castiga, e ele olha para você, sabendo que, se você não ousa intervir abertamente, pelo menos lhe dá sua incondicional cumplicidade.
Até as coisas negativas se viram em alegrias quando se intrometem entre avó e neto: o bibelô de estimação que se quebrou porque o menino – involuntariamente! – bateu com a bola nele. Está quebrado e remendado, mas enriquecido com preciosas recordações: os cacos na mãozinha, os olhos arregalados, o beicinho pronto para o choro; e depois o sorriso malandro e aliviado porque “ninguém” se zangou, o culpado foi a bola mesma, não foi, vó? Era um simples boneco que custou caro. Hoje é relíquia: não tem dinheiro que pague.
Rachel de Queiroz, do livro “O homem e o tempo: 74 crônicas escolhidas”. 1976.

quarta-feira, 30 de março de 2022

EU SÓ QUERO CHOCOLATE!


 

HOJE EU QUERO SAIR DO SÉRIO!

 
Basta! Hoje eu quero sair do sério! Estou de saco cheio de ceder à tentação de malhar o Bozo ou malhar o Lula, a toda hora e por qualquer motivo (sempre justo, diga-se). Hoje eu quero sair do sério, quero "cantar asneiras", falar besteiras e fazer piadas de quinta (não categoria, mas série mesmo), piadas que podem dar argumentos para que meus filhos me interditem. Ops, já comecei a falar sério!


NOÇÕES DE LITERATURA:
Science friction ou Fricção científica é um tipo de literatura especializada, voltada à descrição detalhada e estudo metódico das melhores práticas sexuais.

NEOLOGISMANDO:
Outro dia ouvi alguém falar uma palavra que me encantou – Falsiana -, empregada para destacar a pouca confiabilidade de alguém. Obviamente, se existem Falsianas, deve também existir alguém em quem se possa sempre confiar. Qual o nome? Sincérika.

TONEL:
Dizer que o corpo humano é uma caixinha de surpresas, além de péssimo clichê, é um total equívoco. Pelo menos, no meu caso. Com 105 kg distribuídos de modo não uniforme por 1,84 m de altura, meu corpo está mais para barril de surpresas.
 
MENTE INSANA:
E por falar em corpo humano, às vezes fico pensando que o stress, o medo, as preocupações com o futuro podem levar algumas pessoas a um tipo de “Burnout” diferente. Submetidas a situações de grande tensão, essas pessoas apresentam obstrução intestinal de forma um pouco recorrente, precisando às vezes ser internadas. Mas a explicação é bastante simples: geralmente, nessas horas, o circuito natural está alterado, pois estão com o cu na mão.
 

 

terça-feira, 29 de março de 2022

DIREITO AO CONTRADITÓRIO

O Blogson Crusoe é e sempre foi, entre outras coisas, um repositório de minhas lembranças, muitas delas descritas de forma detalhada e geralmente sem filtro. Por esse lance de preservação da memória, muitas vezes ocorre de um comentário feito por algum leitor gerar uma resposta tão longa que acaba virando post independente. A coisa fica ainda melhor quando quem fez o comentário contesta o que acabou de ler. Como neste caso.
 
Recentemente, perguntei à minha irmã se ela teria interesse em ler o post "Tchibum", uma sessão de "psicoterapia" muito intensa, pois escrevi pra caramba, me joguei sem filtro e sem rede de proteção nas lembranças e o que acabou saindo foi uma (mais uma) declaração de amor a meu pai (nosso pai).
 
Ela disse que queria, eu mandei o link do blog, brincando que ela era sócia do blog, pela ajuda que deu no resgate de vários casos esquecidos. Sua resposta veio através de e-mail. Disse ter-se divertido (“à beça”) e se emocionado, mas alguns trechos a deixaram “bolada”, pelos comentários ácidos e “até injustos”.
 
Perguntei-lhe quais comentários ela tinha considerado "injustos e desnecessários" e recebi de volta uma "tijolada", uma tijolada cheia de carinho que provocou mais uma reflexão no estilo jotabélico: rasa, chata e desnecessária.
 
Antes, preciso registrar que puxou minha orelha ao destacar que “quando você torna públicas essas recordações (da forma como foram sentidas e entendidas por uma criança e/ou um jovem), tornam-se "verdades" para quem lê”. Além disso, deixou clara sua discordância com o estilo sarcástico e até “impiedoso nas narrativas”, utilizado pelo escritor e médico Pedro Nava ao registrar suas próprias lembranças. E lança uma suspeita grave sobre as memórias do escritor: “quanto daquilo era realmente verdade?”

Fiquei super feliz com o comentário e até a agradeci por ser minha irmã. E, por ela não ter concordado com algumas coisas mais ácidas que leu,  dei um spoiler sobre o título do post provocado por seus comentários: “Direito ao contraditório”.

Quando comecei a escrever minhas lembranças eu ainda não tinha percebido o que hoje acredito ser verdadeiro: o que guardei na memória não se traduz necessariamente nas lembranças de mais ninguém, pois passados muitos anos, essa foi a releitura que fiz do que sobrou  na memória; e, talvez, quem sabe?, uma memória recriada.

Minha irmã acertou ao me conectar com os livros do Pedro Nava, pois sou fã de sua capacidade de detalhar minuciosa e ironicamente alguns casos mais saborosos ou apimentados; por isso, eu sempre tentei “pedronavear” as histórias de que me lembrava, e isso me divertiu bastante. Mas nunca aumentei nada, apenas “escolhi o ângulo do retrato”.
 
Tudo o que publiquei no blog talvez possa ter sido contaminado por sentimentos antigos, mas nas várias páginas que escrevi (e põe "várias" nisso!) sobre meus pais, irmãos, avós e tios, creio que dá para perceber o amor que sempre senti por essa gente – mesmo que vestindo a “roupa” galhofeira dos tios mais amolecados, que sempre brincaram e mostraram um lado suavemente malicioso e engraçado. Por isso, se eu conseguisse condensar o estilo que adotei para escrever os casos e lembranças (que minha irmã me ajudou a concretizar), eu diria que o estilo é uma mistura da ironia e sarcasmo do Pedro Nava e da jovialidade e molecagem dos meus tios sem noção.

E esta é a mensagem: todas as verdades sempre serão apenas meias verdades, pois jamais ninguém conseguirá ver tudo, ouvir tudo e, principalmente, lembrar-se de tudo. Mas vale a pena tentar.

 

segunda-feira, 28 de março de 2022

ULTIMATE FIGHTING

 
Meu amigão Bozo parece nunca perder a oportunidade de passar vergonha em público! Recentemente, em um evento do PL, nono partido ao qual já se filiou (isso mesmo, 9º), voltou a reverenciar a memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, torturador da ditadura militar condenado em primeira, segunda e terceira instância, chamando-o de “um velho amigo que lutou por democracia”.
 
Como o que eu gosto mesmo é de pensar besteiras, fiquei imaginando que se o Ustra lutou mesmo pela democracia, deve ter feito isso em torneios de boxe ou em campeonatos de MMA, com os adversários de olhos vendados e mãos amarradas. Só assim!

domingo, 27 de março de 2022

BRAVO, BRAVÍSSIMO!

 
Não entendo de canto lírico nem de música erudita, clássica (na verdade, não entendo de merda nenhuma!), pois acho a sonoridade ou muito complexa ou soporífera, fazendo-me adormecer logo aos primeiros acordes, tal como fiz quando assisti em BH a um show de Ravi Shankar, então ainda muito colado à sua apresentação no Concerto de Bangladesh organizado pelo George Harrison logo após a separação dos Beatles. Aquela mistura de música de cítara e incenso foi fatal – dormi o tempo todo, apesar de ter sido eu o mais entusiasmado para ver o show.
 
Assim imagino que seja o efeito do bel canto em mim. Mas algumas peças, árias ou trechos, talvez por serem mais divulgadas, fazem com que eu me emocione e me encha de alegria ou respeitosa admiração.
 
Como curto muito ouvir e ver os vídeos musicais do Youtube, às vezes sou surpreendido por alguma sugestão desse enxerido e bisbilhoteiro aplicativo. A mais recente delas é um vídeo do Luciano Pavarotti cantando “Nessun dorma”, ária do ato final da ópera “Turandot” (obrigado, Google!). É maravilhoso ver e ouvir sua interpretação!
 
Dos três tenores que fizeram shows, gravaram DVDs e excursionaram pelo mundo, Pavarotti tinha a voz mais bonita, limpa e colorida. E nessa ária de letra em sua língua natal (nem precisava que o cérebro traduzisse), ele faz uma entrega de emoções em nível máximo, quase como se estivesse em transe. Pelo menos é assim que eu senti ao ver sua expressão no final da música.
 
Talvez você goste de pagode, funk ou sertanejo, mas saiba que há música além dessas fonteiras. Como fazem nas salas de concerto, só posso dizer:

Bravo, Pavarotti, bravíssimo!









LULA AGORA EXIGE DESCULPAS DA IMPRENSA - RICARDO KERTZMAN

 
Quem acessou os posts do início do Blogson, onde eu malhava o Lula, a Dilma e a tchurma do PT, deve ter ficado confuso quando comecei a malhar o Bozo. A explicação é simples: eu detesto os extremos, qualquer extremo.
 
Mas alguns amigos virtuais parecem se incomodar um pouco pelo fato de atualmente     eu não fazer críticas ou piadas sobre o Lula e seus amiguinhos. O problema é que o Bozo não me deixa tempo para isso, pois tem sempre uma “gracinha” que merece ser comentada.
 
Recentemente, creio ter percebido uma espécie de síndrome de abstinência de um amigo virtual, provocada justamente por algum comentário malhando o mito. Esse amigo chegou até a reclamar de minhas críticas - “E sobre (...) Nenhuma palavra?

Por isso, para mostrar a ele que não me esqueci do Lula, resolvi postar um ótimo e irônico texto de um jornalista do portal da revista Isto É, onde ele malha nosso ex-presidiário com a mesma elegância e ironia que utiliza em suas críticas ao Bozo. Este texto é pra você, Ozy.


Oh, grande líder do mensalão e do petrolão, estes dois esquemas fantasiosos de corrupção que assaltaram o Brasil, humildemente eu lhe peço desculpas – no jargão jurídico, escusas. Oh, alma mais honesta deste País, por favor, me perdoe. Nos perdoe! Oh, ‘amigo de meu pai’, que não é dono de sítio e de tríplex, nos conceda a graça de sua santa clemência.

Perdoe Sergio Moro e os procuradores da Lava Jato. Perdoe os três desembargadores do Rio Grande do Sul e os cinco ministros do STJ. Ah! Perdoe, também, os quatro ou cinco ministros do STF que, injustamente, como os demais magistrados citados acima, cometeram tamanha crueldade ao condenar alguém tão limpo e probo assim.

Perdoe todas as oitenta fases daquela operação ilegal a que assistimos durante seis anos. Perdoe os mais de seis bilhões de reais recuperados e devolvidos aos cofres públicos do País. Perdoe as mais de duzentas condenações, que somaram mais de três mil anos de prisão. Tudo isso foi uma brutal perseguição orquestrada pelo FBI e a CIA.

Perdoe, grande e amado pai dos pobres brasileiros, os arbitrários e ilegais mil e quinhentos mandados de busca e apreensão; as duzentas e tantas conduções coercitivas – inclusive a sua – injustificadas; os trezentos mandados de prisão (temporárias e preventivas) sem o menor cabimento. É que vivemos tempos sombrios de exceção no País, entende?

Por caridade, perdoe também as dezenas de ações de improbidade administrativa, que resultaram em processos de mais de 40 bilhões de reais. E perdoe as dezenas de executivos da Odebrecht, OAS e outras empreiteiras inocentes e honestas, como o senhor, que o delataram e apresentaram documentos (falsos, é claro) provando as acusações.

Igualmente, não se esqueça de perdoar seus amigos de décadas, parceiros da maior intimidade e confiança, como Emílio e Marcelo Odebrecht, Léo pinheiro, Antônio Palocci, entre outros, que não apenas o acusaram de corrupção, como também apresentaram recibos e planilhas (sim, eu sei, tudo falso!!) comprovando o que disseram.

E perdoe todos os últimos tesoureiros do PT, presos por crimes diversos, como corrupção e lavagem de dinheiro – o senhor já ouviu falar nestes crimes, grande líder? E também José Dirceu, Aloizio Mercadante, Gleisi Hoffmann, Guido Mantega, João Cunha, José Genuíno, Paulo Bernardo, etc., pois alvos da Justiça, que mancharam seu honrado nome.

Sim, tanta gente em volta, gente do mais íntimo círculo de sua confiança que o traiu e se envolveu em negociatas. Mas graças à sua mãe que ‘nasceu analfabeta’, o senhor sempre resistiu às tentações do vil metal, não é mesmo? Malditos sejam aqueles que plantaram vinhos raros, pedalinhos e outras provas em seu desfavor, apenas para incriminá-lo.

Perdoe William Bonner e a Globo. Perdoe o saudoso Ricardo Boechat e a Band. Perdoe a FSP, o Estadão, a Veja, a IstoÉ, o Estado de Minas, enfim, perdoe este desconhecido e insignificante colunista por tantas mentiras e ofensas que os fatos e a história insistiram em nos atirar aos olhos. Perdoe aquele delírio coletivo, sumo Lula da Silva! Nós, pobres mortais pecadores, carecemos de seu divino perdão. Ou melhor: pai, perdoe-nos. Não sabíamos o que fazíamos. Assim está bem, Santo Lula?

 

 

 

sábado, 26 de março de 2022

"CADA UM TEM SEU JEITINHO"

Há situações em que às vezes nos envolvemos e que trazem resultados inesperados, constrangedores ou totalmente inadequados. Nessas horas não há o que fazer, não adianta pedir desculpas ou tentar corrigir, só lamentar.

Um caso desse tipo aconteceu com meu falecido amigo Pintão. Talvez fosse fim de semana ou talvez ele e seus amigos ou colegas estivessem numa happy hour anabolizada. O fato é que já tinham enchido a cara quando algum do grupo recebeu um telefonema avisando que a mãe de um amigo comum a todos tinha falecido e estava sendo velada em tal lugar.

O bando de bêbados resolveu ir ao velório para cumprimentar e consolar o amigo. Segundo meu amigo Pintão, quando o filho da falecida o viu chegar, franziu o rosto numa cara de choro, dizendo “Ô Luís...”. Mas nem terminou a frase, pois o Pintão, bêbado igual a uma vaca (vaca bebe?) começou a rir descontroladamente. Na cara do amigo. Em pleno velório. Ao lado do caixão da falecida. Ainda tentou explicar alguma coisa, mas não parava de rir e teve de sair às pressas do lugar. No dia seguinte, já curado da bebedeira, ainda tentou explicar e se desculpar pelo acontecido, mas já tinha perdido a amizade para sempre.

Um caso de inadequação não tão dramático aconteceu comigo no último domingo. As duas netinhas que moram em BH vieram com seus pais à nossa casa. Elas são lindas, graciosas e muito altas - mas têm apenas quatro anos.

Quando abri o portão elas exibiram o maior sorriso e foram entrando. Para fazer “gracinha”, disse assim a elas:
- Vou contar um segredo para vocês! Vocês são lindas e maravilhosas, mas... tem uma pessoa que é mais linda ainda.

Elas me olharam com a inocência e curiosidade de seus quatro anos e eu completei:
- Sou eu!
Só não esperava ouvir a resposta dita seriamente por uma delas:
- Cada um tem seu jeitinho.

Aquela resposta quase me desintegrou! Grosseiramente falando, devo ter ficado mais sem graça que as piadas que eu mesmo invento. Tentei dizer que só estava brincando, que elas são lindas e que eu sou feio pra caramba, etc., mas percebi que a pureza da primeiríssima infância não entende ironias nem duplo sentido.

Sinceramente, não consegui deixar de pensar nisso e na vergonha que senti naquele momento. E eu, que considero o humor e a ironia uma das mais altas conquistas da espécie humana, sinal inequívoco de inteligência mais refinada, fiquei novamente com essa dúvida antiga: seremos mais felizes, ficaremos mais alegres quando troçamos de outras pessoas e do que acontece com elas? Seria esse o motivo de me auto-depreciar propositalmente quando tento fazer humor ou dizer coisas "espirituosas" (pois assim não estarei magoando ou ofendendo ninguém)? Cartas para a redação!

sexta-feira, 25 de março de 2022

"PALAVRAS SÃO PALAVRAS, NADA MAIS QUE PALAVRAS"

Chico Anysio foi um gênio do humor. Entre os mais de duzentos personagens criados por ele, um merece ser lembrado hoje: Walfrido Canavieira, prefeito trambiqueiro de Chico City e irmão do Professor Raimundo, da "Escolinha". Um de seus bordões mais conhecidos era a frase “Palavras são palavras, nada mais que palavras”. Acho essa frase perfeita para comentar o que disse outro dia nosso amado presidente. Duvida? Saca só:
 
Em evento recente no Ceará, o discurso de nosso presidente foi bastante enfático:
"Quando se fala em corrupção, nós temos o que falar: três anos e três meses sem qualquer denúncia de corrupção em nossos ministérios”.
 
Sinceramente, eu me divirto muito com esse cara! Gosto dessa cara de pau, dessa falta de pudor que ele exibe ao dizer coisas desse tipo. Mas sempre me lembro de uma propaganda de aparelho auditivo veiculada na TV, onde o locutor apresentava o produto dizendo -“para você que escuta, mas não entende bem as palavras”.
 
Seria esse o problema? Seria o Cavalão portador de deficiência auditiva? Com problemas de cognição? Analfabeto funcional? Não escuta, não vê, não lê nem entende o que se passa à sua volta? Espero que não! Mas seu ministro da educação religiosa talvez possa (pelo exemplo) dar a little help para ele; quem sabe, talvez ajudá-lo de alguma forma a não dizer palavras vazias, pois o pastor Milton tem a manha!

quinta-feira, 24 de março de 2022

FÉ DEMAIS

 
Para ganhar mais uns trocados, o pastor presbiteriano Milton Ribeiro pegou um bico como ministro da educação religiosa. Nessa atividade, parece ter tentado fazer um remake do filme “Fé demais não cheira bem”, originalmente estrelado pelo comediante Steve Martin (no papel de um pastor picareta). É importante saber que o filme original era uma comédia, totalmente diferente do remake brasuca, mais chegado a uma tragédia.
 
Mas filme é assim mesmo, tem gravações de áudios e cenas que depois são descartadas. Aparentemente, foi isso que o pastor Milton tentou fazer ao negar o áudio em que explica para vários prefeitos e religiosos o enredo do remico (perdão, eu quis dizer remake), que é ter priorizado pedidos de liberação de verba de prefeituras nas quais estariam envolvidas negociações feitas por dois pastores, Gilmar Santos e Arilton Moura.
 
Esse pecado (venal ou venial? Não entendo de religião!) foi divulgado pela Folha, pois alguém gravou e filmou o descaramento:  “No áudio, Ribeiro afirma que sua prioridade no Ministério da Educação (MEC) são as prefeituras que mais precisam e, em seguida, ‘todos que são amigos do pastor Gilmar’. Ele explica aos prefeitos e religiosos que participaram da conversa que a prioridade foi estabelecida por uma solicitação direta do presidente Jair Bolsonaro (PL).‘Foi um pedido especial que o presidente da República fez para mim sobre a questão do [pastor] Gilmar’, disse. O ministro complementa que o pedido de apoio não é segredo e que visa a construção de igrejas”.
 
O erro do pastor (presbiteriano) Milton foi talvez não perceber que na reunião poderia haver muitas testemunhas - de Jeová, naturalmente (acho que vou virar pastor também!).

quarta-feira, 23 de março de 2022

MANIA MOLE

 
Aparentemente os ânimos têm se acalmado um pouco, pois a expressão “cultura do cancelamento” está meio sumida da mídia (talvez as críticas ao cancelamento tenham sido canceladas, quem sabe?). Espero que essa excrescência seja mesmo esquecida, banida - ou cancelada -, pois para mim é filha legítima ou um sinônimo do que eu chamaria de “ditadura do coletivo”, a mesma ditadura que inventou a militância do “politicamente correto” (expressão que eu odeio).
 
Dizem os entendidos (sem trocadilho, por favor) que o comportamento politicamente incorreto seria uma característica da Direita. Se isso for verdade, então eu sou definitivamente de direita. Porque abomino e critico o uso inadequado da arqueologia etimológica - que levou à condenação de palavras que talvez a maioria absoluta das pessoas usasse sem jamais saber sua origem e sem nenhuma conotação de ofensa ou menosprezo a quem fossem ditas.  Mas um mau humor do cão (sem ofensa aos cachorros nem ao demo) parece ter-se instalado na mente das pessoas, de algumas pessoas, fazendo com que passassem a se ofender com qualquer coisa que remotamente as levasse a sentimentos de rancor, inferioridade, de perseguição ou coisas assim.
 
Sou um sujeito da área de Exatas e tenho dificuldade de apresentar uma argumentação elegante que traduza o que penso e sinto. Mas, para mim, ditadura é e sempre será sinônimo de autoritarismo e censura. Na época dos presidentes militares o que não faltava (entre otras cositas mas) era autoritarismo e censura. Por isso, músicos, escritores, jornalistas, atores e autores de qualquer tipo de manifestação cultural rebolavam (no sentido figurado, por favor. Olha a censura!) para exibir e divulgar sua obra sem vê-la previamente mutilada ou simplesmente proibida pelos censores de plantão. E essa é uma das diferenças daquela época com os dias atuais: a censura era concentrada, oficial, institucional; hoje, a censura é difusa e surge sem que você entenda o motivo de várias palavras e expressões de uso centenário ser consideradas quase um anátema.

Pior ainda é quando alguém pensa em adotar um substituto absurdamente ridículo para um nome tradicional e para lá de inocente. Por exemplo, o que há de ofensivo ou inadequado na guloseima "maria mole" que eu comprava no botequim perto da minha casa? O nome mais que tradicional seria uma ofensa aos milhões de "Marias" que existem no mundo? Para mim, o único defeito era quando esse doce só estava disponível no sabor amendoim, que não curtia muito.

Por isso, querem uma sugestão de nome? Que tal "mania mole" (para manter a sonoridade) ou até "zé mole"  (talvez combine bem com o estágio atual de "algumas" pessoas!). Mas não podemos - nem devemos - ofender nenhum ser vivo da Terra. Nem plantas, nem bichos, nem pedras rolantes nem gente como a gente (alguém talvez diga "come, porra nenhuma!"). Tempos difíceis!
 
Pensando nisso, resolvi republicar um texto maravilhoso que o genial Millôr Fernandes escreveu na época da antiga ditadura (dos generais), por também ser uma crítica perfeita da atual ditadura (do politicamente correto). O título original, publicado no jornal Pasquim é "Um presente para o leitor". E o "presente" era o desenho de uma tesoura dentada. Delicie-se (com o texto).


Em absoluta sintonia com o alto espírito cívico que preside todas as nossas edições, qualquer de nossos artigos, a menor de nossas palavras e o mais íntimo de nossos gestos, O PASQUIM, sempre a favor da causa pública e da manutenção dos costumes atuais - que acreditamos imutáveis - oferece, hoje, a seus inúmeros leitores da TFM - não confundir com a Tradicional Família do Millôr - este magnífico regalo que pensamos seja o instrumento mais indicado, para manter a Estrutura, o Conceito e a Paz. De quê? Ah, bom, pô!

Com este instrumento na mão - o que, já de início, evitará que ponha a mão em qualquer outro instrumento o têéfeêmísta – teéfepista ou qualquer outro teéfista – estará a salvo de todos os ataques dos imorais desagregadores que pululam em todas as nossas publicações, sejam elas livros, revistas, jornais, opúsculos, bulas, alfarrábios, compêndios, cadernos, folhetos, panfletos, miliários, códigos, incunábulos ou enciclopédias. Com esta tesoura, dentada mas silenciosa, o leitor em questão deverá percorrer as bancas de jornais, estantes de livrarias, bibliotecas públicas, discotecas, cinematecas e outros ambientes deletérios, cortando, com a coragem e a tranquilidade dos justos, tudo aquilo que de malsão se lhe antolhar: seios femininos alguns masculinos também, partes pudendas, atos iníquos, cenas eróticas, atitudes dúbias, comportamentos negativos, frases de duplo sentido, demonstrações, enfim, de impudicícia, carnalidade, ultraje ao pudor, pederastia, sodomia, polução voluntária, indecência, impureza, despudor, lubricidade, sedução, transvio, desvirginamento, estupro, sensualidade imoderada e mesmo algumas moderadas, meretrício, degradação, masoquismo, inversão sexual, orientação e pornografia tout court . O dito impertérrito cidadão, nossa tesoura mágica e dentada em punho - compre dois exemplares para o caso de um se gastar rapidamente - deve, ainda, estar atento a qualquer referência ou ilustração de: concupiscência, ereção, priapismo, concúbito, lascívia, luxúria, carne, desejo, filoginia, voluptuosidade, obscenidade, ditos fesceninos, turpilóquios, pretextata verba, rebolados, batuques, cheganças, órgãos genitais, regiões púbicas, acasalamentos, inseminações - artificiais e naturais - libidinagem, frascarias, desregramento, pecados - todos os sete - pouca vergonha, carnis desideria, apetite venéreo - amor livre, má vida, meretrício, safismo, safadeza, lesbianismo, adultério, menage à trois - ou a mais pessoas – concubinagem, mancebia, amizades ilícitas e... surubas.

Cumpre ainda estar de aviso para referências a locais ou regiões geográficas específicas, tais como; harém, bordel, alcoice, conventilho, lupanar, prostíbulo, calógio, bramadeiro, casa-da-tia, casa-de-passe, randevu, e das pessoas aí encontradiças: libertinos, cevões, bargantes, pistoleiros, mulheres da vida, lotários, proxenetas, cáftens, caftinas, madames, adúlteros, prevaricadores, cortesãs, traviatas, transviados, viados propriamente ditos, bichas e bichonas, cabras, troquilheiros, mulheres de rebuço, decaídas, meretrizes, rameiras, perdidas, ambulatrizes, culatronas, bandarras, bêbedos, pinóias, maganas, bagaxas, hetaíras, bandalhos, messalinas, mundanas, corsárias, mulheres de vida fácil, cabriolas, manolas, frinéis, gueixas, cocotes, marafonas, inculcadeiras, barregãs, sátiros, bordeleiras, mulheres-damas, michelas, piranhas, bacantes, teúdas e toda essa gente que perambula pelas vielas lúgubres da prostituição.

Evidentemente, como diria um prolixo nato, o espaço é pouco para que enumeremos todos os vícios, erros, desvios, perigos, anomalias, tortuosidades, desregramentos, indecoros, depravações, abjeções, infâmias, falporrições, relaxamentos morais, degenerescências de caráter, podridões, lascívias e execrações que o simples brandir de nossa tesoura alvinitente - papel acetinado de primeira - pode destruir e evitar. Lutando apenas contra o que enumeramos acima, o cidadão teéfeêmista já poderá dormir tranquilo, na sua retidão física e probidade moral. Os que, contudo, quiserem levar ainda um pouco mais longe seu zelo consular devem procurar também cortar pela raiz o mal terrível de palavras que se escondem perfidamente em outras, como abundante, acuidade, iconografia, culatra, acuado, recuar, anseio, asseio, passeio, parapeito, despeito, meditabunda, moribunda, vagabunda e tremebunda; nomes de logradouros que mal e mal disfarçam a imoralidade de quem os batizou: Cupertino Durão, Aquino Rego, Bulhões de Carvalho, Jacinto Leite. E expressões aparentemente triviais mas tremendamente desagregadoras em sua sonoridade dúbia: "Que time é o teu?", "Se eu cozinho não lavo", "Jacaré no seco, anda?", "Cachorro que late nágua, late em terra?" "A rosa no cume nasce". Enfim, todo cuidado é pouco. Tesoura em riste e mãos à obra. Qualquer desvio de atenção pode ser fatal.

terça-feira, 22 de março de 2022

QUE PENA. HEIM?

 
Não queria tocar nisso, de tão patético que é. Mas, por falta de coisa mais importante com que me (des)preocupar e também por impaciência congênita para idiotices, resolvi registrar (ainda que tardiamente) minha opinião sobre a medalha do mérito indigenista que o Ministro da Justiça(?) recentemente concedeu ao presidente Bolsonaro. Sinceramente falando, isso para mim é o mesmo que o Silvio Santos receber o “Troféu Imprensa” – que é concedido pelo seu programa!
 
Outra coisa que dá nos nervos é ver autoridades aceitando “enfeitar” a cabeça com cocares ou chapéus de couro do Nordeste. A ver esse tipo de coisa dá até para lembrar uma ótima piada: “vai passar vergonha no crédito ou no débito?” A lista de gente ridícula é grande, mas cito apenas o Lula e o Bozo, que adoram pagar mico eleitoreiro com essas “façanhas”. Aliás, nem é mico, está mais para bugio, guariba ou mono carvoeiro, de tão grande.
 
Voltando ao nosso querido presidente, fiquei impressionado com a altura das penas utilizadas. Seriam penas mesmo? De aves brasileiras? Ou importadas da China? Pouco importa. O que importa mesmo é que ao examinar novamente a imagem do presidente com seu vistoso cocar (põe vistoso nisso!), percebi que ela contém uma mensagem subliminar: votar para reeleger o Bozo é, definitivamente, um programa de índio.



 

  

segunda-feira, 21 de março de 2022

JÁ NÃO HÁ MAIS NADA SAGRADO NO MUNDO!

O Mc Donalds está saindo da Rússia, mas os empresários da rede Tio Vaniya’s que assumirá as lojas da “Méqui” de lá nem precisaram virar a mesa, só o logo.

Vaniya em alfabeto cirílico é escrito assim:
 
ВАНИЯ
 
E olha o logo da rede russa (não há mais nada sagrado no mundo!):
 

domingo, 20 de março de 2022

O TEMPORA! O MORES! (A CULPA É DO BOLO!)

 
Bateu a maior azia depois de ler uma reportagem que meu filho me enviou. Queimação, náusea, tontura, falta de ar, senti tudo isso. E a culpa de tudo é um bolo, um filhadaputa de um bolo! Nem vou dizer mais nada, só transcrever a reportagem (fico até me perguntando se não é fake news!). Olhaí:
 
Padaria de SP muda nome de bolo ‘nega maluca’ para ‘afrodescendente’. O pedido para troca vem através de comunicado oficial do Sindicato dos Industriais de Panificação e Confeitaria de São Paulo
 
Na última quarta-feira, 16, a padaria Aveiro, que fica em São Paulo, comunicou a mudança de nome do bolo “nega maluca” para “afrodescendente”. Segundo a publicação divulgada, em agosto do ano passado, o estabelecimento recebeu um ofício do Sindicato dos Industriais de Panificação e Confeitaria de São Paulo, da Associação dos Industriais e do Instituto de Desenvolvimento de Panificação e Confeitaria. No pedido, a instituição falou para “se atentar aos novos comportamentos sociais”.
 
 “Nomes tradicionais antes vistos com simpatia não são mais aceitos e podem gerar constrangimento e acusações de crime racial, machismo, preconceito. Recomendamos a nossos associados a tomarem cuidado com nomes de produtos que podem ser mal interpretados”, disse o sindicato em comunicado à Aveiro, que informou, em suas redes sociais, ser um estabelecimento sem espaço para racismo.
 
O comunicado citava outros nomes tradicionais de doces como “teta de nega”, “língua de sogra” e “maria mole”. A padaria disse que os produtos seriam chamados, então, de “nhá benta”, “pão doce mole” e “sorvete mole”. O antigo bolo “nega maluca” também mudou de nome e se chama “bolo afrodescendente”.

 
O presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, comentou nas redes sociais com a foto do doce no intuito de ironizar a situação.
“Querem criminalizar bolos. Isso precisa acabar”, escreveu Camargo em um primeiro post. “Temos uma relação de afeto com esses doces. Fazem parte das nossas vidas. Basta de tanto mimimi. Ninguém aguenta mais” completou o presidente da Palmares.
 

Que posso dizer? Para eu concordar com um comentário feito pelo presidente da Fundação Palmares é porque a situação está mesmo feia! Só me resta fechar este post triste com uma frase milenar, dita pelo senador romano Marco Túlio Cícero:

O TEMPORA! O MORES!

 

"POLALIZAÇÃO"

 
Imagino que todo mundo já ouviu um caso engraçadinho envolvendo crianças que ainda estão aprendendo a falar. Nessa fase (especialmente as mais espertas e inteligentes) dizem comentam ou fazem coisas desconcertantes, surpreendentes, hilariantes ou inteligentíssimas. Pena que quase nenhum pai ou mãe se disponha a anotar essas pérolas de humor e graça infantil. Eu mesmo fui um desses.
 
Quando meus filhos ainda estavam na primeiríssima infância - também chamada de “idade dourada”, na fase mais "tchutchuca" da vida, diziam coisas que me faziam rolar de rir ou ficar de queixo caído. Pensei muitas vezes em registrar esses casos, mas fui vítima de uma superstição idiota que eu mesmo criei. Sabe Deus por que, sempre que eu pensava em anotar alguma coisa dita por eles, tinha a sensação de que alguém morreria se eu fizesse isso. Precisa dizer alguma coisa? Melhor não!
 
Hoje a idade de meus filhos varia entre 35 e 45 anos (pois é, Jotabê é quase uma múmia egípcia que esqueceram de guardar no sarcófago) e é impossível eu lembrar os comentários e atitudes que me encantaram tanto naquela época. E só posso lamentar essa minha idiotice (na verdade, só mais uma das muitas já cometidas). Por isso, eu sempre digo para meus filhos e noras que anotem as frases, comentários e reações inesperadas, engraçadíssimas ou cheias de poesia que minhas netinhas à vezes dizem ou fazem. Mas creio que não estou sendo ouvido.
 
Por isso, resolvi registrar aqui no blog um micro caso, só por sua associação ao comentário engraçadíssimo feito por uma das noras, moça de um senso de humor fabuloso.  Segundo ela, suas filhinhas estão na fase de se identificar com alguém ou alguma coisa, numa mistura de brincadeira e fantasia. Quando uma delas, por exemplo, diz que é o “Chase” (personagem de desenho animado), a irmã gêmea diz que é a “Sky” (outro personagem do mesmo desenho). Às vezes identificam-se com as primas um ano mais velhas que elas, etc.
 
E o caso mais recente é este: de tanto ouvir no carro as instruções do GPS mandando “virar à direita na rua tal” ou “virar à esquerda em 100 metros”, as maluquinhas de três anos de idade começaram a dizer que são “esquerda” e “direita”, brincadeira facilitada pelo fato de ficarem presas às cadeirinhas no banco traseiro. Imagino que a pronúncia correta seja "dileita" e "esqueda". Segundo minha nora, uma delas (a que fica sentada do lado esquerdo) é mais articulada e gosta de provocar a irmã (que reage, dando porrada). Assim, ao dizer que era “esquerda” e ouvir a irmã dizer que era “direita”, reagiu: “direita eca!”.
 
Ao me contar esse caso, minha nora - que votou no Bozo e se arrependeu - assim como eu fiz, comentou rindo:
- “Vê se pode, agora as divergências ideológicas já estão acontecendo aos três anos de idade!” Rachei de rir.

sábado, 19 de março de 2022

PARA QUEM QUISER SABER

 
Depois do mais repulsivo corporativismo entre dois blogueiros exibido nos comentários do post “Que história é essa, Jotabê?” e da mais descarada puxação mútua de saco (no sentido apenas figurado, jamais no plano real, entende?), achei que deveria dar um basta definitivo nessa situação pra lá de constrangedora. E a solução nunca foi o silêncio obsequioso, pois no Blogson Crusoe é assim: resposta grande vira post!
 
Meu amigo virtual Marreta fez este comentário: “Rapaz, agradeço demais (de verdade) o quase nível A de excelência. Mesmo nível atingido por você em suas postagens memorialistas. Nunca te falei isso, mas tenho uma inveja do caralho da sua memória, mesmo que muitas vezes as lembranças não sejam boas e, creio, tragam certa dor.
Tenho uma memória fraquíssima sobre os assuntos e a história da minha família. Lembro, claro, dos meus avós e até de dois bisavós, de tios etc, mas não tenho praticamente nenhuma história para contar deles, não me lembro de quase nada. Por isso, me impressionam os seus longos e detalhados posts memorialistas”.
 
Antes de falar do elogio recebido, preciso explicar o motivo do “quase nível A de excelência” que atribuí ao blog A Marreta do Azarão. Seria A total se ele não insistisse na postagem de fotos posadas sob o título “Travessuras de menina má”. O blog é dele e dele também é o direito de postar o que quiser. Para mim, entretanto, as fotos têm um efeito altamente broxante  e vulgarizam desnecessariamente o blog (para ser sincero, quase tudo provoca hoje um efeito broxante em mim, mas isso não está em discussão e nem estamos no blog do Marreta). Então é isso.
 
Quanto ao elogio que fez sobre meus dotes memorialistas, a explicação é simples: sempre tive uma memória muito boa para guardar coisas inúteis (verdade!) e zero memória para as úteis. Para piorar (ou melhorar), minha memória sempre foi predominantemente visual, fazendo com que eu seja (hoje em dia, o certo seria dizer “que eu fosse”) capaz de descrever pessoas, objetos e sua localização espacial. Para exemplificar, uma vez pedi a um colega que buscasse no arquivo da empresa uma revista técnica que tinha um artigo com informações relacionadas ao trabalho que estava realizando. Identifiquei a revista por uma fotografia e as cores que trazia na capa. O cara trouxe! E eu li novamente um artigo que tinha visto uns quatro anos antes.
 
Além dessa memória bizarra, também sempre me interessei por fotos antigas e casos e lembranças de parentes, interesse facilitado por ter morado durante 24 anos na casa de minha avó materna e convivido com oito tios pai, mãe, avô e avó. Para finalizar, quando comecei a registrar esses casos, pedi “a little help from my sister”, onze anos mais nova que eu e com memória mais fresca. Acho que é por aí.

sexta-feira, 18 de março de 2022

QUE HISTÓRIA É ESSA, JOTABÊ?

Só recentemente descobri o programa “Que história é essa, Porchat?”, apresentado por volta de 14h00 (parece que existem outros horários além dessa sessão, específica para aposentados e coça-sacos). É um programa leve e bem humorado em que três famosos e dois desconhecidos contam situações bizarras ou pitorescas que viveram ou presenciaram. No finalzinho do programa o apresentador faz três ou quatro perguntas padrão para os três famosos. Uma delas é Qual brasileiro te causa orgulho? Alguns dos citados são meio previsíveis: Pelé, Airton Senna, etc.
 
Por estranhar algumas dessas indicações, resolvi seguir os passos (embora os meus estejam meio claudicantes) de um amigo virtual metódico e bom de listas, o gente boa Scant, meu coach para assuntos relacionados ao combate à depressão (não a dele - que não tem, mas da minha). E é isso justamente o que resolvi fazer. Uma lista do tipo “Qual brasileiro...”
 
Por sobra de tempo e excesso de personalidades, resolvi dividir por temas ou assuntos. Neste ponto a lista ficou meio capenga, justamente por deixar de fora muitas categorias e a culpa disso é minha conhecida ignorância. Como falar de pintura ou escultura se não conheço nada desses assuntos? Outro ponto a considerar é que tenho muitas restrições ao sentimento de orgulho; por isso, resolvi trocar por respeito e admiração.
 
Deixo claro que não se trata de escolher os melhores, mas apenas indicar aqueles de quem gosto muito. E se tenho respeito e admiração por alguns famosos, sinto também desprezo e aversão a uma penca de gente. Por isso, há também uma lista de pessoas a quem repudio. Acho que a lista ficou meia boca, mas esta é a sina do blog. Saca só:
 
Música – composição:
Tom Jobim (imbatível), Milton Nascimento, Lô Borges, Cartola
 
Música – letra:
Caetano Veloso e Chico Buarque, mas não dá para esquecer Vítor Martins, Aldir Blanc, Noel Rosa e Guilherme de Brito
 
Literatura – prosa:
Rubem Braga (para mim, basta esse, pois o que me atrai são os livros, não seus autores)
 
Literatura – versos
Vinícius de Moraes, Ferreira Gullar (eu sei que o Drummond pode ser melhor, mas eu gosto mais desses dois).
 
Literatura de humor:
Millôr Fernandes (imbatível) e Luis Fernando Veríssimo
 
Desenho de humor:
Angeli
 
Esporte:
Cesar Cielo (recordista mundial!) e Pelé (só como esportista; como pessoa é um lixo)
 
Jornalismo:
Elio Gaspari e Ricardo Boechat (imensa perda!)
 
Político que ganharia meu voto:
Fernando Henrique (imbatível), Simone Tebet, Fabiano Contarato e os internacionais (que inveja de seus eleitores!)  Barack Obama e Nelson Mandela (in memoriam)
 
Faltam muitas categorias, mas o saco encheu e a ignorância falou mais alto. Só abri exceção para fazer o inverso do orgulho e da admiração:
 
Políticos para repudiar, odiar ou desprezar:
80% dos políticos brasileiros, com menção (des)honrosa para a  Famiglia Bolsonaro (pai, filhos e espírito de porco), Lula, Abraham Weintraub, Gleisi Hoffmann, Ricardo Salles, José Dirceu, Ernesto Araújo, Rui Falcão, todas as gangues do Centrão, Mensalão e Petrolão e (in memoriam) Olavo de Carvalho. E ainda os internacionais Putin, Nicolas Maduro e Daniel Ortega
 
Para finalizar, o melhor blog da internet:
Blogson Crusoe (Ahahah o quê? Para mim é, lógico!).

quarta-feira, 16 de março de 2022

É BLITZ? NÃO, É BLÍSTER

Sabe como também é conhecida uma cartela de comprimidos? Blíster. É por sempre trazer informações fundamentais como esta que até as pedras rolantes sussurram entre si: Blogson também é cultura (mas padece de falta de assunto). E, pelamordedeus, nunca confunda blíster com clister, pois pode dar merda - literalmente
 
Confesso que só descobri essa palavra ao procupar um equivalente para "cartela de comprimidos ou pílulas". Meu brother Google informou que blíster é uma "embalagem feita em cartela de plástico transparente semirrígido, em que pequenos produtos (comprimidos, pilhas etc.) são acondicionados em cavidades, coberta na parte posterior com papel-alumínio ou papelão fino.
 
Já faz algum tempo venho pensando que a Vida é como uma caixa de medicamentos com uma quantidade indeterminada de blísteres ou cartelas de comprimidos. Talvez seja uma visão meio desencantada, mas é assim mesmo que funciona.
 
E tive essa percepção ao começar a fazer uso diário de medicamentos para pressão e hipotireoidismo. A cada cartela que ia substituindo, às vezes me perguntava sobre quantas caixas de remédio eu consumido até o fim da minha vida.
 
Assim, o ato de viver poderia ser simbolicamente descrito como a retirada diária e compulsória de um comprimido da cartela de "Vida" que o abriga. Quando é retirado o último comprimido de um dos blísteres, um novo começa a ser utilizado. E assim, sucessivamente, dia após dia, até que não reste na caixa mais nenhuma cartela, nenhum comprimido. Nesse dia, a vida - a minha, a sua, a de qualquer um - escoa pelo ralo.
 
Pode ser essa uma imagem meio sem noção. nada poética ou otimista, mas em algum momento você poderá ser parado em uma "blitz" por excesso de velhicidade ou outro motivo qualquer. E aí já era (depois desta, acho que preciso tomar meus remédios com um pouco de antiácido). Fui.




 

domingo, 13 de março de 2022

TCHIBUM!

Já disse que sou especialista em títulos idiotas e o que escolhi para este post não foge à regra; mas serve apenas para desestressar e tirar um pouco da seriedade dos últimos textos publicados. O título original escolhido era “Um mergulho na lagoa”. Essa lagoa, na verdade é o município de Lagoa Santa, cidade da região metropolitana onde passei a maior parte das férias escolares do ensino fundamental. E o “mergulho” fazia referência à imersão nas lembranças não muito boas que tenho desse lugar e dessa época.

E este texto é a compilação de oito posts recentes, onde contei a história da compra de um terreno por minha avó materna e seus desdobramentos. Confesso ter sido uma das experiências mais catárticas já vividas desde a criação do blog, justamente pela carga de tristeza, melancolia, inveja e ódio sentidos por mim e que consegui resgatar. Ou seja, foi um mergulho meio dolorido na infância. Mas deu para voltar à superfície. Olhaí (esta introdução é dedicada a meu amigo virtual GRF).


O Mapa

Este é mais um fragmento do mosaico das minhas lembranças, da minha memória cada vez mais fragmentada (talvez um dos últimos). Sinceramente, estou começando a escrever sem a mínima inspiração, movido apenas por um fato só conhecido recentemente sobre um terreno que deixou algumas marcas no final da minha infância. Como não sei ainda o que dizer nem onde pretendo chegar, precisarei de um mapa que traga algumas informações que talvez utilize enquanto estiver contando esse caso, iniciado há sessenta anos, por aí. (sentiu o bafo de um tiranossauro passando perto de você? Pois é...).
Já aviso que é um mapa que copiei do Google Maps acrescido de informações que só existem na memória, sujeitas a toda sorte de imprecisões e dúvidas, pois eu devia ter não mais de dez anos na época e as pessoas que poderiam confirmá-las ou corrigi-las já morreram. Por isso, provavelmente farei algumas postagens à medida que for resgatando as lembranças dessa época. No final de tudo, juntarei os cacos desse mosaico em um único post, para uma visão mais abrangente. Dadas as (in)devidas explicações, eis o mapa. As duas figuras irregulares coloridas de azul são lagoas. Depois, falarei mais sobre isso. No momento, basta saber que existiram um Paraíso e um Purgatório (lugar adequado para expiar os pecados e as culpas presentes, futuras e até mesmo de vidas passadas).



 

Comprando Um Terreno
O "causo" de hoje começa assim: minha avó materna nasceu no interior, provavelmente na fazenda de seu pai. Essa origem rural deve ter determinado seu desejo de, sempre que possível, tentar recriar o ambiente onde cresceu. O significado disso era a criação de galinhas, plantio de legumes, hortaliças e cultivo de árvores frutíferas onde fosse possível.
Sua casa, onde morei até me casar, possuía um quintal minúsculo, ridiculamente minúsculo. Apesar disso, lembro-me de ter ali existido um galinheiro, bananeira, mamoeiro, limoeiro e sei lá que mais. Quando os filhos começaram a se casar, todos os espaços disponíveis iam progressivamente sendo ocupados por edículas destinadas à moradia dos novos casais. Que não demoravam a se mudar dali, graças à convivência pouco amistosa de minha avó com as noras. Eu era ainda adolescente quando me dei conta de morar em um ninho de cobra, pois para ela todas as suas filhas eram "muito bem casadas", já os filhos...
Deixando de lado as quizilas familiares, o que sei é que minha avó resolveu um dia comprar um terreno de um de seus sobrinhos. Aparentemente, a experiência de ter sido espoliada por seus irmãos na partilha da herança de meu bisavô não deixou maiores sequelas em sua mente. Iniciadas as negociações, foi-lhe oferecida a compra de (creio) um alqueire, uma minúscula parte da fazenda de seu sobrinho. Quando foi lavrada a escritura (ou depois dela ter pagado a importância acertada), descobriu-se que o sobrinho filho da puta tinha vendido para sua tia não um "alqueire mineiro", mas um "alqueire paulista" (apesar de o terreno estar localizado em Minas Gerais). Para quem não sabe a diferença, um alqueire mineiro corresponde a 48.400 m² de terra. Já o alqueire paulista equivale a apenas 24.200 m² de terreno, metade do mineiro, Eu mesmo não sabia, só me lembro do bate-boca tempestuoso entre vendedor e compradora e a consequente crise nervosa (mais uma) que derrubou minha avó em uma cama.
Depois, com "Inês já morta", minha avó resolveu ocupar o terreno que adquirira (imagino que deveria ter 80m de largura por 300m de comprimento, mas isso é apenas uma suposição). Creio que a primeira providência foi cercar com uns três fios de arame farpado os 80m que faziam divisa com a estrada encascalhada que dava acesso ao lugar e que continuava por um bom trecho até chegar à porteira da fazenda do sobrinho buona gente. De nada adiantou a cerca, pois não demorou muito para que o arame e os postes fossem roubados. E assim começava a história do Purgatório.


Capim Pegando Fogo
Para se chegar ao terreno comprado por minha avó aproveitava-se o ônibus intermunicipal que ligava BH com Lagoa Santa. Sinceramente falando, creio que era assim que funcionava: o ônibus vindo de BH parava na rodoviária, a maioria das pessoas descia e ele então continuava até a "Varge" (Várzea). A partir daí, só mesmo a pé para chegar naquele cu de mundo no meio do nada.
Pelos testes que fiz com o Google Maps, a distância do ponto onde se descia do ônibus e o início do terreno seria da ordem de 1.600 metros, percorridos em uma estrada de fazenda, de terra encascalhada e cheia de buracos, o que tornava o caminhar uma coisa não muito divertida para uma criança que tinha uns nove ou dez anos, já que além da distância a percorrer, o cascalho ali espalhado aparentemente tinha apenas a função de impedir uma maior erosão da pista de rolamento, pois a poeira levantada por alguma caminhonete ou caminhão de leite que passasse na hora era a mesma. E era muita.
Há um ditado popular que estabelece que "água de morro abaixo e fogo de morro acima ninguém segura" (há uma versão mais apimentada dita pelo Juca Chaves lá pelos idos de 1970, mas vou abster-me de repeti-la). A topografia do lugar caberia bem nessa descrição, pois um dos limites do terreno era materializado por uma enorme vala escavada pelas enxurradas de muitas estações chuvosas, uma voçoroca (a que chamávamos de boqueirão) com uns quatro metros de largura e uns três de profundidade, um verdadeiro canal criado pela erosão do solo e que despencava da estrada rural até o terreno dos Calaboca (imagino que a origem dessa alcunha ou apelido coletivo talvez tenha se originado de “Cala a boca!”, embora desconheça o motivo).
Pela localização em região de cerrado, a vegetação não era muito fechada e as árvores, quando existiam, além de poucas, eram baixas, o tronco meio retorcido, com casca grossa e folhas largas e secas. Quando minha avó comprou esse terreno alguns pequizeiros ainda podiam ser vistos aqui e ali. No final da história não havia mais nenhum, provavelmente cortados pelos passantes para fazer lenha. Hoje se fala muito da importância do pequi na alimentação regional, etc., etc., mas o cheiro de seu fruto amarelo (que lembra muito uma gema de ovo cozido) é simplesmente repulsivo.
É importante ressaltar que o terreno adquirido localizava-se integralmente em uma encosta de morro. Assim, as únicas partes planas (horizontais) eram o leito de uma antiga estrada que corria paralela à que acabei de descrever e o lugar onde minha avó escolheu para construir sua edícula. Em homenagem à indigência da construção, talvez fosse melhor chamá-la de "redícula". Creio que um desenho esquemático ajudará a visualizar as condições do lugar.
Mesmo que eu não entenda nada desse assunto, imagino que para se apreciar plenamente todas as delícias do Paraíso talvez seja razoável passar um tempinho antes no Purgatório. E minha ideia de usar esses termos foi justamente essa: realçar a absurda disparidade de conforto existente entre os dois lugares assim identificados. Por isso, vamos primeiro dar uma passadinha no velho e bom Purgatório. Olha o “croquete” dele aí:


  
Conforto Cinco Estrelas
Uma das vantagens de ser criança é não ligar muito para comodidades e confortos que tanto agradam aos adultos. E digo isso por não me sentir incomodado de ser levado para passar alguns dias no terreno comprado por minha avó, mesmo que o conforto existente fosse zero. Até onde me lembro, minha avó mandou construir uma edícula ou barracão (tal como chamávamos) de três cômodos em linha, com essa distribuição: quarto, sala/quarto e cozinha (zero reboco em todas as paredes).
Imagino que a instalação sanitária (casinha) foi construída à parte, mas essa é uma informação apagada da minha memória. Creio que a "redícula" não tinha janelas e só uma porta com chave. A iluminação noturna era feita com uma ou duas lamparinas de querosene penduradas na parede. Com o tempo, o lugar onde se pendurava a lamparina ficava com uma língua preta de fuligem acima do pavio.
A água era retirada de uma cisterna escavada na parte mais baixa do terreno e tinha uns sete metros de profundidade (fundura). Como é comum fazer, para proteger e impedir a queda de coisas ou pessoas no buraco construiu-se um anel de tijolos em volta da borda da cisterna, que ficava coberta com tábuas. Sobre esse anel instalou-se um sarilho acionado a manivela, que puxava o balde cheio da água do fundo do poço.
Não sei como era a cozinha nem o que possuía. Provavelmente as panelas devem ter sido compradas de um "folheiro" que morava perto da casa de minha avó em BH. A partir da chapa das latas de banha ou outro produto qualquer ele fabricava panelas com cabo, leiteiras, canecas, suportes e bicos de lamparina, etc. Com o tempo e uso frequente acabavam enferrujando e ficando pretas por fora. Mas funcionavam bem e eram muito bem acabadas. Os alimentos eram preparados em fogão de lenha (provavelmente) ou fogareiro "Jacaré" à base de querosene. Os banhos eram tomados em bacia ("banho tcheco"), com água aquecida no fogão.
Para completar a descrição das "benfeitorias", creio que minha avó plantou algumas mudas de árvores frutíferas (laranjeiras, limoeiros), mas nada vingou, pois o solo não era adequado a esse tipo de plantio. Além do mais, quem regaria as mudas quando não estivéssemos lá? Regar, ninguém regou, pois as mudas foram "transplantadas" para a casa de algum desconhecido. Que só não roubou nada da "mansão" porque não havia nada mesmo que valesse a pena levar. Assim era o Purgatório, um lugar de conforto cinco estrelas.
Mas o Paraíso era bem diferente. O Paraíso, ah, o Paraíso... A seguir, um croqui com a distribuição esquemática de áreas e ambientes.

 
O lugar que eu chamei de Paraíso era uma casa de campo ou de veraneio, uma propriedade à beira da lagoa principal do município. Não sei se ainda pertence hoje à famiglia de meus primos. Só sei que o terreno ocupava metade da quadra onde estava localizado. A avó italiana de meus primos ricos o havia comprado dezenas de anos antes, talvez no início do século XX, para descansar nos fins de semana.
Quando a conheci, era uma propriedade espetacular e super bem cuidada. Logo após o largo portão de ferro, o acesso de veículos era ladeado por aleias de fícus podados geometricamente. À esquerda e à direita dessa entrada ficava um pomar, cheio de laranjeiras de várias espécies, limoeiros, mexeriqueiras, limeiras e mangueiras. Próximo à casa havia ainda um abacateiro, que provocava uma cena curiosa: sempre que um abacate maduro despencava lá do alto, o barulho atraía o cachorro do vizinho, que não vacilava - antes que alguém chegasse, ele comia a fruta.
Logo à frente do pomar, um gramado super bem cuidado, ótimo para jogar futebol, vôlei, andar de bicicleta, jogar bentialtas, brincar de pegador e coisas do gênero. Esse gramado "abraçava" a casa, uma construção de dois andares, maior que a casa de minha avó onde morávamos. O andar de cima tinha varanda, três quartos, uma sala/copa ampla, banheiro e cozinha. No andar de baixo havia dois quartos pequenos, um banheiro pequeno, uma área aberta destinada à lavanderia e um quartinho externo onde eram guardadas as bicicletas. Uma escada interna unia o andar de cima com os quartos e banheiro do piso térreo.
Naquela época só havia luz elétrica no centro da cidade, mas isso não era problema ali, pois a iluminação era feita com lampião extremamente limpo e potente, bem diferente das lamparinas enfumaçadas e fedorentas do barraco de minha avó. A água tirada de uma cisterna totalmente fechada era jogada em uma caixa d' água com bomba de acionamento manual. Quando a caixa enchia, o excesso começava a sair pelo ladrão, momento excelente para se tomar um banho frio de bica. E quem bombeava a água, mantinha o gramado e cuidava do pomar era o caseiro Chico, um senhor humilde já idoso e gente boa.
No final do terreno, havia um bosque criado e plantado pela avó italiana de meus primos. Havia vários tipos de árvores e arbustos, mas o que chamava mesmo a atenção era uns quinze pés de eucalipto, árvores altíssimas (20 metros ou mais), que balançavam furiosamente em dias de ventania forte. Por ordem expressa da italiana, o chão do bosque nunca era limpo e nenhuma árvore cortada. Por isso, era uma área muito sombreada e toda coberta por uma camada de folhas e galhos secos que caiam das árvores. Andar sozinho naquele lugar mexia com minha imaginação infantil, fazendo-me pensar em monstros ou fantasmas à espreita atrás de um daqueles imensos e grossos eucaliptos.
Um dia, receoso de que sua casa fosse atingida se um dos eucaliptos próximos à rua quebrasse com o vento, um vizinho pediu para "podar" alguns galhos mais ameaçadores. Mas não havia como cortar esses galhos a mais de quinze metros do chão. Sem comunicação prévia ou autorização da avó de meus primos, o vizinho mandou cortar duas árvores (cujo tronco devia ter pelo menos uns 40 cm de diâmetro). Ao saber do corte dos eucaliptos que ela plantara dezenas de anos antes. a velha italiana ficou tão puta e desgostosa que deixou de passar seus fins de semana naquele lugar.
Esse episódio, mais a dispensa ou morte do caseiro e a falta de vontade de meus primos de trocar as festinhas e a agitação do início da adolescência pela calma pasmacenta daquele lugar foram determinantes para o progressivo abandono da propriedade. A grama cresceu, foi invadida pelo capim que ninguém mais se preocupou em arrancar ou cortar; o pomar ficou abandonado, entregue aos passarinhos e aos cuidados que as diferentes estações do ano proporcionavam. Para arrematar, um dia alguém arrombou a casa e levou todas as bicicletas, as espingardas de caça e as varas de pescar. Mas estou me adiantando um pouco.
Antes que isso acontecesse e para uma criança que não tinha nada, aquela casa e o que nela existia eram o contraponto exato entre nossa pobreza e a opulência dos primos ricos. Havia ali toda uma parafernália destinada ao lazer de crianças e adultos: oito bicicletas, espingardas cartucheiras para caçar, espingarda de ar comprimido (chumbinho) dos primos, varas de pescar de vários tamanhos, molinetes, anzóis, um barco a remo e, em frente à casa, entrando para dentro da lagoa, um "trampolim", construção extremamente comum naquela época. Todo bacana que possuía casa à beira da lagoa tinha o seu. Os ricaços que tinham casa de campo na cidade mas não à beira d'água também davam um jeito de construir um, meio espremido entre os já existentes, e claro, com a anuência dos moradores da orla. Creio que hoje não resta nenhum para contar história, mas na foto a seguir dá para perceber a "superpopulação trampolinística" que existia.

 
Não sei se meus primos sabiam nadar, mas entravam na lagoa, pescavam lambarizinhos e pequenas traíras da ponte do trampolim, saiam de barco com os adultos (pai e tio), andavam de bicicleta, davam tiros de chumbinho em aves aquáticas. Eu não sabia nadar, não sabia andar de bicicleta, não sabia pescar, não podia andar sozinho na ponte do trampolim e, menos ainda, sair dando tiro de chumbinho. Por isso, ficava lá, só olhando, só na vontade. Isso me faz pensar que se você conhece o Paraíso mas dele não pode usufruir plenamente, talvez fosse melhor nem conhecê-lo, concordam? Pois é. Olhaí um trampolim semelhante ao da casa de meus primos.


 
Foi Bom Enquanto Durou?
Quem leu o texto anterior pode se perguntar o que fazíamos no terreno de minha avó e se nos divertíamos. Pela distância a percorrer a pé até chegar ao terreno, creio que só fomos para lá durante algumas férias escolares, pois (para mim, pelo menos) não valeria a pena esse deslocamento só para passar um fim de semana ali. Com exceção da última vez, posso dizer que tive alguns momentos de diversão naquele fim de mundo.
E as lembranças são decorrentes de minha memória visual, que é bastante boa. Mas este relato não é um inventário para fazer um balancete ou prestação de contas. Por isso, para não tornar a leitura muito enfadonha tentarei resumir um pouco os episódios que poderiam ser classificados como "diversão".
Nunca levávamos qualquer tipo de brinquedo quando íamos ficar uns dias naquele barraco. E o motivo é simples: além de não possuirmos nada que valesse a pena levar, ainda havia o problema logístico provocado pela distância a percorrer a pé (sacolas com roupas, mantimentos, papel higiênico - provavelmente) e sei lá mais o quê que fosse essencial para a sobrevivência em Marte.
Por isso, uma diversão garantida era sair com minha mãe e meu irmão para explorar as redondezas do terreno, caminhando sempre na direção da fazenda do primo de minha mãe. Quatro lugares merecem destaque. O boqueirão que definia um dos limites do terreno é um deles, pois tinha para mim uma aura de filme de aventuras, um misto de Tarzan com Viagem ao Centro da Terra. Graças à sua erosão diferenciada, podíamos descer sem muita dificuldade até o fundo arenoso da vala. As raízes dos arbustos parcialmente expostas, as imensas teias de aranha, a sinuosidade esculpida pelas enxurradas, o silêncio e a alternância de sombras e luz nas paredes quase verticais mexiam muito com minha imaginação.
Outro lugar que também mexia comigo era a estrada abandonada que cortava o terreno em dois. Eu achava o máximo que minha avó tivesse um trecho de estrada só dela. Andando por essa estradinha às vezes nos deparávamos com algum buraco arredondado na borda mais elevada do terreno, que minha mãe dizia ser toca de coelho ou tatu e que não deveríamos mexer nela.
O terceiro foi descoberto em um dia em que resolvemos caminhar até umas mangueiras que podiam ser vistas à distância quando estávamos na parte mais alta do terreno. Levamos duas sacolas com finalidades distintas: uma para carregar as mangas que eventualmente conseguíssemos apanhar; e a outra..., bem, a outra era para catar e carregar a bosta seca de vaca que encontrássemos pelo caminho (se quiser, pode trocar por estrume de vaca). As mangueiras ficavam bem distantes do terreno de minha avó e em lugar mais favorável ao seu desenvolvimento. Já a bosta seca de vaca era encontrada esporadicamente. Minha mãe guardava em uma sacola esse "precioso insumo" para depois transformá-lo em esterco a ser aplicado nas mudas de laranjeira recém-plantadas. Foi quando nos deparamos com aquela paisagem incrível, lunar.
Diante daquela erosão o boqueirão que conhecíamos era filhote. Naquele lugar, as sucessivas temporadas chuvosas tinham criado um verdadeiro cânion, de tão largo que era. Imagino que deveria ter uns quinze metros de largura, mas não tenho certeza se minha mãe se animou a nos deixar descer até o fundo da grota gigantesca.
O quarto e último lugar a merecer destaque foi um galpão existente na propriedade dos Calaboca. Imagino que minha mãe deve ter ido tentar comprar hortaliças ou verduras dos vizinhos. Quem nos recebeu era um homem simples e humilde, de sorriso largo, vestido com roupas que lembrariam o caipira de Mazzaropi ou o "Nerso da Capitinga". Ele e sua esposa conversaram um pouco com minha mãe e nos levaram para conhecer o galpão onde fabricavam rapadura. Fiquei super impressionado com o tamanho gigantesco do tacho de cobre onde o caldo da cana era fervido. Não conheço o processo, apenas me lembro de que o Calaboca pegou uma faca e desplacou da borda do tacho uma lasca de rapadura remanescente do último preparo. Ah, e eles tinham uma lagoinha dentro de sua propriedade. Chique pra caramba!
Mas deixei para o final os dois melhores episódios, protagonizados por meu pai. Naquela época, quando ele ainda estava sem emprego e ralava para pagar agiotas (poderia dizer que ralava para rolar as dívidas antigas da sociedade com os irmãos falecidos) e até para comprar cigarros ou pegar um bonde, às vezes aparecia no Purgatório. Imagino que isso acontecia quando estávamos apenas eu, meu irmão e nossa mãe. Dada a indigência e precariedade das acomodações imagino também que era na base do “ou ele ou minha avó”. Nós três mais minha avó e meu pai talvez caracterizasse superlotação do barraco.
Mas duas das vezes em que passou uns dias conosco foram especiais. Ele não sabia nadar, mas, para nos divertir, resolveu construir uma piscina. Sem dinheiro para pagar ajudantes, começou ele mesmo a escavar o terreno. À medida que o serviço avançava, comecei a estranhar o formato do buraco. Para começo de conversa, a piscina não tinha cara de piscina, pois era um tronco de pirâmide invertido, com os lados superiores talvez medindo 1,50 m e só uns 40 cm de profundidade.
Concluída a escavação da piscina-que-não-tinha-cara-de-piscina, meu pai começou a impermeabilizar as laterais e o fundo, aplicando uma camada de argamassa diretamente sobre o solo. Depois de seca essa massa, só faltava encher a "piscina". Com qual água? A que era tirada da cisterna, logicamente. Para simplificar, imaginem que o volume de água necessário para encher a piscina seria da ordem de 500 litros - ou mais de 30 latas com 15 litros cada, a ser tiradas no muque de uma cisterna de oito metros de profundidade, uma tarefa super cansativa. Mesmo assim, foi isso que meu pai fez.
Assim que a água fria começou a ser jogada no buraco, eu e meu irmão entramos na "piscina". Que logo ficou suja, pois sem nenhuma proteção ou isolamento para impedir, a terra da borda era carregada pelos pés molhados. Outro defeito era a aspereza do revestimento; qualquer movimento mais estabanado significava uma ralada na pele. Assim, apesar do trabalhão que meu pai teve para construí-la, sua piscina teve vida efêmera. O esforço para enchê-la era muito grande e sujávamos a água rapidamente, além de ser muito pequena para fazer qualquer coisa que não fosse ficar sentado ou ajoelhado.
E o caso final é este: um dia, quando já estávamos no terreno, meu pai chegou carregando quatro rodas de madeira, que utilizou para construir um carrinho para nós. Era exatamente igual aos conhecidos carrinhos de rolimã, inúteis e contraindicados para um terreno que era terra pura. Daí a necessidade e adequação das rodas de madeira, que mantinham o carrinho mais alto e à prova de atolamento.
Depois de concluído o carrinho (que tinha até freio), ainda roçou o mato para fazer uma pista com uns quinze a vinte metros de comprimento. Mostrou-nos como pilotar o "bólido" e a partir daí foi “pau na máquina”. No começo, descíamos a rampa segurando o freio; à medida que fomos nos acostumando, começamos a descer de forma "despingolada", "na banguela", só puxando o freio no finalzinho, para não arrebentar a cara na parede do barracão. Numa manobra mal feita "capotei" com carro e tudo, ganhando uma pequena cicatriz no pulso que durou anos para desaparecer.
Curiosamente, logo nos cansamos do carrinho, pois seu maior defeito era ter de levá-lo até o alto do morro. Afinal, como ensina o ditado, se para baixo todo santo ajuda, para cima é que a coisa muda. E já que estamos na base do clichê, poderia, pensando no carrinho, dizer que tudo o que é bom dura pouco. Mas como eu já escrevi demais, imagino que os eventuais leitores já devem estar de saco cheio, detestando a ruindade deste texto. Mesmo que seja tarde para reclamar. Ou não. Afinal, antes tarde que nunca, não é mesmo?


A Chuva
Creio que aquela chuva mudou definitivamente os sentimentos de minha avó e minha mãe em relação à ideia de "passear" ou passar férias naquele fim de mundo. Confesso também que não faço a mínima ideia de como minha mãe conseguia se comunicar com sua irmã endinheirada, a mais velha de todas, pois não havia ônibus, mensageiro, ou telefone que as colocasse em contato. Talvez fosse intuição ou apenas alguma frase dita antes de irmos para o "Purgatório": "Ficaremos lá até o dia tal".
O que sei é que o dia de voltarmos para BH chegou. Creio que éramos cinco pessoas - minha avó, minha mãe, minha tia solteira, eu e meu irmão. Malas, bolsas e sacolas arrumadas (malas não, pois creio que não existiam), roupa de "ir à missa" e lá fomos nós. Subida do morro, talvez uma pequena pausa para respirar e caminhada pela estrada empoeirada em direção à área urbanizada mais próxima, a "Varge" (várzea), onde talvez pegássemos um ônibus ou coisa assim.
Talvez a distância a percorrer não fosse grande coisa para um adulto, mas, para mim, esse percurso de dois quilômetros era chão pra caramba, ainda mais naquela estrada encascalhada e poeirenta. Embora não me lembre mais, talvez percebesse que o céu estava cheio de nuvens escuras, prenunciando a possibilidade de chuva próxima. E foi isso que efetivamente aconteceu.
No meio da caminhada, sem nenhum lugar para nos esconder, para nos proteger, começou a chover. Era uma chuva muito forte, intensa, agressiva, madrasta, com trovões, rajadas de vento frio que alternavam a direção do aguaceiro - um verdadeiro dilúvio caindo sobre três mulheres e duas crianças no meio do nada. Lembro-me de minha mãe puxando-nos para perto dela, tentando nos abrigar do temporal que caía. Mas era só intenção, pois estávamos todos completamente molhados e com as roupas encharcadas. Situação que só não ficou pior porque o solo da estrada era arenoso e não dava muita lama.
Como a água escorria pelo meu cabelo e rosto, não sei se estava chorando silenciosamente ou apenas tomado por uma tristeza e desespero profundo, pois a única coisa que podíamos fazer era andar, apenas andar. Foi quando um carro vindo na direção contrária apareceu. Apareceu e parou. Ao volante estava meu tio "torto", casado com a irmã mais nova de minha mãe. Abriu as portas, o porta-malas, acomodamo-nos nos bancos e fomos levados para o "Paraíso", onde tomamos banho quente de chuveiro, colocamos roupas secas, provavelmente lanchamos ou jantamos, brincamos com nossos primos, dormimos, os adultos conversaram, etc.
Como disse antes, não sei como meu tio foi despachado para nos apanhar e nos levar de volta à civilização. Fico tentado a pensar em sinais de fumaça ou tambor, mas isso é só uma piada. Depois dessa chuva, creio que ninguém nunca mais pensou em passar sequer um fim de semana no Purgatório, que deve ter ficado abandonado até ser vendido. Mas esse é outro caco do mosaico.


A Herança
Não sei por quanto tempo o "Purgatório" ficou abandonado, talvez de dois a quatro anos (pois imagino que ninguém nunca mais quis passar alguns dias lá). Só sei que um dia minha avó resolveu ou concordou em vendê-lo. E o pato que comprou aquele capim pegando fogo foi meu pai. Para tentar estabelecer quando essa ideia de jerico foi concretizada - talvez uma das ideias mais infelizes que meu pai teve em toda a vida -, preciso fazer um cruzamento de informações. Vamos lá.
Quando minha avó e meu pai fecharam negócio, minha irmã já tinha nascido. Ela nasceu em 1961. Para fazer essa venda minha avó precisaria estar lúcida. Ela morreu em 1972 e tenho quase total certeza de ter começado a exibir sinais de demência uns seis anos antes de sua morte; em 1966, portanto. Por isso, posso estimar que o vacilo de meu pai ocorreu entre 1961 e 1966.
E que desejo obscuro teve meu pai ao comprar um terreno de solo árido, topografia desfavorável e no meio do nada? A explicação dada por ele mesmo é tristemente patética e comovente: ele queria que sentíssemos orgulho de ter alguma coisa em nosso nome. Para isso (essa foi sua segunda ideia de jerico), ele registrou o Purgatório no nome dos filhos, dois adolescentes e uma criança de dois a cinco anos de idade. Por mais que fique comovido com esse gesto encharcado de carinho e amor pelos filhos, não posso deixar de comentar os dois equívocos que cometeu de uma só vez.
Quando meu pai resolveu comprar esse terreno que estava abandonado desde 1960 ou 1961 (eu estava com dez anos quando caiu aquela chuva de triste memória), ele já tinha arranjado um emprego de químico em uma fábrica de cimento na região metropolitana de BH e devia estar com a situação financeira finalmente controlada. Bem ao seu estilo de não comentar nada ou quase nada sobre sua vida pessoal, seus sonhos e frustrações, decidiu investir sua grana sem falar nada comigo e com meu irmão (mesmo que fossemos apenas dois adolescentes). Creio que eu pouco ligaria se ele tivesse comprado o terreno e o registrado em seu nome. O erro foi, como disse, passar a escritura no nome dos filhos. Enquanto escrevo isso, bateu uma dúvida: teria ele tomado essa decisão para se proteger de algum antigo e esquecido credor? Nunca tinha pensado nisso, mas não deixa de ser uma hipótese a considerar.
Não sei a reação que tive quando soubemos da novidade . Mas uma coisa fica clara para mim: se sua ideia real era de nos proporcionar algum motivo de orgulho diante dos primos endinheirados (e aqui preciso lembrar que - para mim! - orgulho pressupõe comparação com algo ou alguém), o efeito seria o mesmo de exibir orgulhosamente um calhambeque com o motor queimando óleo para o proprietário de um carro esportivo importado. Que orgulho insensato seria esse? Por isso, nunca senti orgulho por ter me transformado em dono de um terço daquele terreno que passei a odiar, talvez pelo trauma da mega chuva apanhada anos antes, talvez por discordar radicalmente da compra de um terreno inútil.
Mais alguns anos se passaram e eu continuava abominando e jamais me sentindo um dos donos daquela coisa. Foi quando meu pai tomou mais uma porrada da Vida, um nocaute definitivo, indefensável. Ou, como meu amigo virtual Ozy diria, um xeque-mate. A fábrica onde trabalhava mudou todo o sistema de produção (alguma coisa de "seco" para "úmido" ou o inverso disso), processos que meu pai desconhecia. Creio que sem perceber, começou a ser avaliado para ocupar uma função de chefia. Entretanto, por achar que estavam desconfiando dele por algum motivo e graças a seu temperamento irascível e gênio bilioso, mandou o colega que o avaliava à puta que pariu. Nota zero em relações interpessoais. Pela desatualização profissional e pela inadequação emocional para assumir um cargo gerencial, foi demitido quando tinha mais de sessenta anos e, para piorar, pouco tempo de contribuição no INSS.
Nessa época eu era recém-casado, meu irmão também já se casara e minha irmã ainda era menor de idade. Um dia, super constrangido, procurou-me e perguntou se eu me incomodaria se ele vendesse o Purgatório. Apesar de cheio de pena dele, devo tê-lo deixado emocionalmente um pouco pior, pois além de dizer que concordava integralmente, deixei claro que nunca tinha me sentido dono daquele terreno. Para quem tentou um dia dar algum motivo de orgulho para os filhos, não deve ter sido essa descoberta um momento de alegria. E paro por aqui. O que aconteceu depois disso eu prefiro não comentar (até por já ter contado em algum post antigo). Não aconteceu nada de pecaminoso ou condenável e que deva ser escondido, apenas faz com que eu novamente morra de pena de meu pai ao revolver essas lembranças.


O Tempo Passa, O Tempo Voa
Eu comecei esta série de lembranças melancólicas de infância dizendo estar começando a escrever "sem a mínima inspiração, movido apenas por um fato só conhecido recentemente sobre um terreno que deixou algumas marcas no final da minha infância". Disse ainda não saber o que dizer nem onde pretendia chegar.
Para quem estava sem a mínima inspiração, acho que escrevi demais, talvez até bem mais do que devia. E o detonador dessa catarse foi um comentário que uma das irmãs de minha mãe fez há algum tempo. Alguém teria dito a ela que o terreno que eu chamei de "Purgatório" teria se transformado em um condomínio de luxo. Fiquei pasmo com a notícia. Aquele capim pegando fogo transformado em condomínio? De luxo? Há quem diga que "quem compra terra não erra". Mas, como imaginar que aquele lugar no meio do "pasto", do nada, se transformaria tanto?
Um investidor americano disse uma vez que gostava de comprar terras, "pois há muito tempo pararam de fabricar". Então deve ter lógica esse tipo de investimento, algo como comprar ações para só vendê-las trinta anos depois. Claro, se a empresa ainda existir.
Com o auxílio do bisbilhoteiro Google Maps, resolvi dar uma conferida no tal condomínio (bem no estilo “O mundo visto de cima”), usando como ponto de partida a lagoinha dos Calaboca. Como eu confio mais no Google que no "ouvi dizer" de minha tia, cheguei à conclusão de que esse condomínio não existe. Pelo menos no lugar onde imagino estar localizado o “Purgatório”.
O que consegui ver foi uma região totalmente urbanizada e bem diferente do deserto da minha infância, mas ocupada por construções simples, nada luxuosas. Uma rua que tem o nome de minha tia-avó, mãe do sobrinho buona gente que passou a perna em minha avó parece confirmar que eu não estou (muito) enganado. Mas isso agora deixou de ter importância para mim.
Eu realmente não sabia aonde chegar nem o que dizer, mas depois de garimpar e revolver todas essas lembranças, o que realmente ficou claro para mim foi nunca ter retribuído adequadamente a meu pai todo o carinho e amor por ele demonstrado.
Obrigado, Pai, pelas histórias de sua infância contadas para nós à noite; obrigado por ter fumado todo tipo de cigarro vagabundo só para melhorar nossa coleção sem que precisássemos pegar os maços colecionáveis do chão; obrigado pela disposição, energia e tempo gasto para construir uma piscina-que-não-tinha-cara-de-piscina; obrigado pelo fabuloso carrinho de rodas de madeira.
Obrigado também pela tentativa de nos fazer sentir orgulho por ser donos de uma propriedade rural; obrigado por tudo o que fez e tentou fazer por nós. Mas, sobretudo, obrigado por todo o amor que nos dedicou ao longo da vida. Sabe, Seu Amynthas?, você acabou sendo um pai nota dez!





ALELUIA, ALELUIA!

  Há muito tempo, deixei de comentar as notícias que lia nos grandes portais da internet. Esses comentários recebiam títulos como "Come...