quinta-feira, 3 de março de 2022

VIVENDO ENTRE OS SÉCULOS 19,7 E 20,3

Entre junho e julho de 2015, quando o Blogson tinha apenas um ano de existência, publiquei cinco textos escritos em 2013 (um ano antes da criação do blog) sobre a família de meu pai e originalmente destinados a contar para meus filhos as escassas lembranças que (ainda) tinha sobre alguns de seus antepassados.  Não sei exatamente o motivo dos raríssimos leitores do blog terem gostado tanto desses casos e lembranças. Mas uma coisa sempre me intrigou: se os títulos utilizados já indicavam tratar-se de uma sequência, por qual motivo esses posts não tiveram a mesma quantidade de visualizações? Por isso, resolvi republicá-los em um único post sem me preocupar que isso tenha gerado um super textão. Os títulos originalmente escolhidos abrem cada um dos cinco textos a que correspondem. Acho que meu pai merece essa homenagem ( ainda que talvez não aprovasse toda essa exposição).


SÉCULO DEZENOVE VÍRGULA SETE

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo (...)

Onde estão todos eles?
— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.
(extraído do belíssimo poema "Profundamente", de Manoel Bandeira)

O texto a seguir foi revisado e ampliado em 2013. O tema são as (poucas) lembranças que tenho de uma família extremamente singular (a de meu pai). Sinceramente, eu gostaria que os leitores deste blog tirassem alguma diversão deste post, tal como eu, enquanto o escrevia. Mas não tenho tanta esperança assim. Afinal, são lembranças de gente comum, com alguns casos curiosos. Os livros de memória escritos pelo Pedro Nava servem de desculpa para tornar públicas estas lembranças. É claro que a comparação não procede, pois ele abriu uma larga e bem cuidada estrada, enquanto eu consigo, no máximo, uma picada, uma trilha irregular e cheia de raízes e galhos. E como o texto é maior do que duas páginas – padrão que eu procuro obedecer no Blogson – será (foi originalmente) dividido em partes e postado sequencialmente. 



A FAMÍLIA DE MEU PAI
Preciso fazer um pequeno comentário antes de apresentar esse assunto: o embrião, a versão inicial deste texto foi escrita quando minha mãe ainda estava viva (ela morreu em 2009) e foi enviada apenas para nosso filho mais velho e para meu irmão. Meu objetivo, já naquela época, era deixar para os meninos um registro de minhas lembranças e impressões sobre a família de meu Pai. Só que eu perdi esse arquivo. Recentemente, entretanto, fuçando uns backups antigos, reencontrei o texto “perdido”.

Eu sempre curti muito esse negócio de memória, de preservação da memória, fato que foi muito aumentado depois que fiz cinqüenta anos. Então, depois de reler o que escrevi lá atrás, achei que estava legal, “leve” (como disse meu filho), mas incompleto. Faltavam datas, nomes, etc. Foi aí que eu recorri à minha irmã. De posse dos dados que ela forneceu, dei uma corrigida e ampliei alguma coisa. Talvez o texto tenha perdido um pouco da “leveza”, mas ganhou em “densidade”. A Física explica...

Deixo claro que mesmo não querendo magoar ou ofender ninguém, o texto pode ter algum deboche e sarcasmo (ironia, não, porque segundo o ator Paulo Cesar Pereio, “ironia é coisa de viado”). Por quê? Porque essa é a minha maneira de ser.

Antes de entrar nas lembranças propriamente ditas, é importante transcrever a relação que minha irmã forneceu. Dois são os motivos para isso: o mais simples (e meio delirante) é que a leitura das datas de nascimento dos tios mais velhos, todas anteriores a 1900, dá até alguma vertigem, ou, se preferirem, é como olhar as ondas de calor que sobem do asfalto em um dia muito quente, criando uma distorção das imagens. O “calor”, nesse caso, seria a passagem do tempo.

O outro motivo, mais reflexivo, tem a ver com uma ideia que me ocorreu recentemente: as pessoas que não estão citadas em livros de história, as pessoas que não tiveram algum destaque maior em vida, as pessoas que, enfim, são a quase totalidade da raça humana permanecem “vivas” enquanto alguém conseguir lembrar-se delas, enquanto puderem ser identificadas por fotos ou documentos.

E lembrar-me dos membros da família de meu Pai é mais do que importante para mim. Porque parte do que sou hoje veio lá de São José dos Oratórios, veio dessa família, de seus costumes, de sua esquisitice, de sua forma peculiar de relacionar-se com o “mundo exterior”.


O irmão mais velho de meu pai chamava-se José, e nasceu em 1892. Morreu com cinco anos de idade, vítima de meningite. Meu pai reproduzia dois casos tristíssimos sobre ele, certamente narrados por um de meus avós. Já doente, no colo de meu avô, pedia algo como -“papai, tira essa dor da minha cabeça! Um dia (provavelmente dias depois), foi chamado para ver uma procissão que passava em frente à casa onde moravam. Não aparecendo, foram procurá-lo e o encontraram de joelhos atrás de uma porta. Perguntado por que estava ali, teria respondido que estava pedindo à Nossa Senhora para que ela o levasse. Teria morrido nesse mesmo dia. Dá para imaginar os sentimentos destroçados de meus avós?

Em 30 de dezembro de 1894 nasceu tio Delvaux (Delvô). O terceiro filho, tio Lourival (Lurinho, para seus irmãos), nasceu em 25 de setembro de 1895.

Talvez tragédias familiares não fossem tão incomuns na transição do século XIX para o século XX, não sei. O fato é que mais uma aconteceu na família. Em 1897 (provavelmente), nasceu Joaquim, o quarto filho de meus avós. Com dois anos de idade, morreu de sarampo. Meu pai, visivelmente emocionado, contava que enquanto vovô levava o filho para ser enterrado, vovó Vita dava à luz o tio Chiquinho. Minha irmã também percebeu essa mesma emoção, o que significa que, para papai a dor não passava fácil, mesmo que ele nem tivesse nascido quando essas mortes aconteceram. 

Em 12 de fevereiro de 1899 nasceu Francisco Augusto, o tio Chiquinho citado. Tia Sinhá (Maria) nasceu em 17 de novembro de 1901. Tio Nhô (Josefino), companheiro de maluquices na infância e irmão predileto de meu pai, nasceu em 27 de novembro. O ano pode ser 1907 a 1909, não há certeza.

“Sô Amintas”, como eu o chamava de brincadeira, nasceu em 2 de novembro de 1911, em pleno dia de Finados. Não tenho dúvida que essa data certamente ajudou muito a moldar a sua personalidade e seu comportamento.  

Tia Neném (Augusta Natalina) nasceu em 25 de dezembro de 1914 (será que nosso filho gostaria de ter no nome o complemento “Natalino” ou Natalício”?). E, por último, tia Zinha (Vitalina), nascida em 8 de  maio de 1916.



SÉCULO DEZENOVE VÍRGULA NOVE

A família de meu pai, tal como a conheci, sempre me pareceu oriunda de um século próprio, só deles, tal a singularidade de comportamentos e características. Teriam nascido e vivido no século 19,7 ou no século 20,3. Alguma coisa desse tipo. Porque tinham traços de grande modernidade misturados com um imenso conservadorismo. Todos os irmãos que chegaram à idade adulta tinham curso universitário. Isso, na primeira metade do Século XX! 

As moças estudaram línguas, piano e violino. Os homens tinham queda pela literatura. Lembro-me de um lindo soneto, escrito a lápis em uma folha de caderno, que meu pai um dia me estendeu. Como sabia da fama literária de meus tios mais velhos, perguntei se era de um deles. Deu um sorriso misterioso. Perguntei então se era ele o autor. Sorriu mais misteriosamente ainda e pegou de volta o papel, apesar da minha insistência em copiá-lo. Infelizmente - assim como fizeram os irmãos antes dele - pouco antes de morrer, meu pai destruiu todos seus papeis pessoais.


Não sei de seus irmãos, mas meu pai nasceu em São José dos Oratórios, antigo distrito de Ponte Nova. Saiu de lá na década de 1930, creio, mas guardou sempre uma lembrança carinhosa de sua terra. De tal forma que, quando mencionei que o João Bosco, compositor nascido em Ponte Nova, havia composto uma música com o nome de “Das Dores de Oratórios”, meu pai espantou-se:
 Não é possível! Será que é mesmo a minha querida Oratórios?
Era. Dei a ele o disco que continha essa música. A bem da verdade, não era uma música para se gostar de imediato (ou algum dia). Falava de uma noiva que foi abandonada no altar, enlouquecendo a partir daí. Vestida com os restos da roupa de casamento, ficava gemendo e gritando pela cidade.

De minha avó, tenho apenas uma única lembrança. Fui uma vez visitá-la e ela estava doente, de cama. Levei para ela um pente verde, de cabo largo e arredondado (meu irmão deu um, igual, de cor vermelha, para minha avó materna). Creio que ela me pediu para penteá-la, não sei. Imagino que tenha morrido pouco tempo depois. O que me causa alguma estranheza é o fato de eu conseguir me lembrar - com absoluta nitidez - do tal pente, pois tinha menos de cinco anos quando isso aconteceu.

Casa da família de meu pai

Meu pai tinha verdadeira adoração por ela e cursou medicina só para atendê-la. Apesar disso e embora fosse um ótimo médico, odiava essa profissão e toda a carga de sofrimento a ela relacionada. Para mim e para meu irmão, ela era a “vovó Vita”, em contraponto à avó materna, com quem morávamos (Dona Leta), tratada apenas de “vovó”.

Segundo as informações de minha irmã, teria nascido em 27 de outubro de 1874. Todos os meus tios (e primos!) referiam-se à minha avó apenas pelo apelido, Vita. Nada de “Mãe”, nada de “”. Só meu pai referia-se a ela como “Mamãe” ou, tomado de emoção, como “minha querida mãezinha”. Curiosamente, “Papai” era o tratamento que todos davam a meu avô.


Augusto era o seu nome. A data provável de seu nascimento é 19 de julho de 1866 (!). Foi dono de armazém em Oratórios e, segundo ironizava meu pai, era a terceira pessoa em importância no distrito, atrás apenas do padre e do delegado. Com essa “importância” toda, tinha muitos afilhados (provavelmente, muita venda fiado também). De acordo com meu pai, em uma visita a um dos afilhados nascido há pouco tempo, meu avô deparou-se com a “comadre” segurando uma mamadeira e o menino, no colo, berrando. Perguntada sobre o que estava acontecendo, disse que estava dando cachaça para o menino. Diante da reação escandalizada de meu avô (-“está louca, comadre?”), a mãe esclareceu: -“se não acostumar desde pequeno, depois não acostuma mais”. Quando nasci, meu avô já tinha morrido.

Apesar da criação humanista, meus tios tinham uma timidez e introversão enormes, percebidas até por uma criança como eu. Já adulto, comecei a pensar que a família de meu pai tinha uma grande vocação para a auto-extinção. Afinal, em uma época de famílias com prole numerosa, apenas quatro dos oito adultos se casaram. Assim mesmo, dentre os que se casaram, meu pai foi o que teve mais filhos, três, ao todo. Ou seja, minha avó, que teve dez filhos, talvez ficasse silenciosamente escandalizada por ter apenas oito netos. Mais introversão que isso é difícil. Curiosamente, essa tendência continuou a se manifestar nos netos e até nos bisnetos. Há, entretanto, alguns casos obscuros sobre filhos não reconhecidos. Um deles, se não me engano, aconteceu com tio Delvô.

Consta que um dia, muitos e muitos anos atrás, bateu à porta do laboratório farmacêutico de propriedade de meu pai e seus irmãos, uma senhora que trazia uma criança pela mão, filho provável desse tio. Essa senhora queria falar com tio Delvô. Meu pai, que a atendeu, em vez de conversar civilizadamente com a mulher, fez o contrário: bem ao seu estilo explosivo e antissocial, botou a dona pra correr (em estilo figurado, claro). Curiosamente, existe hoje em Ponte Nova uma família cujo sobrenome é “Delvaux”, a grafia exata do nome de meu tio. Seriam eles descendentes desse meu primo desconhecido?


Quando ia com minha mãe e meu irmão à casa de meus tios, tinha a sensação que eles se escondiam de nós, pois surgiam, cumprimentavam, riam e depois sumiam de novo para dentro de seus quartos. Tinham o risinho nervoso das pessoas tímidas e inseguras, olhavam como se estivessem medindo nossa aprovação. Mas eram de trato doce e muito carinhosos, exceção feita apenas para meu pai, de gênio tempestuoso e irascível. Quando queria, suas palavras cortavam silenciosa e profundamente, como se fossem lâminas de bisturi. Não sei se foi sempre assim, mas era o bicho-papão da família. E, não tenho dúvida, foi quem mais perdeu com isso.

Chamava-se Amynthas. Assim mesmo, com y e th, pois não concordava em alterar o nome que seus pais haviam dado a ele só por conta de uma reforma ortográfica ocorrida após seu nascimento. Curiosamente, embora considerasse “sagrada” a grafia original, achava muito feio o próprio nome, referindo-se ironicamente a ele na terceira pessoa: “porque o Amynthasssssss...”, sibilando fortemente o “s”, de pura sacanagem.

Tendo muitos irmãos, sempre que contava algum caso sobre eles, o fazia com indisfarçado amor. Para mim, que os via só de vez em quando, tinham uma magia e um encanto incríveis, tal o carinho e admiração com que meu pai se referia a cada um deles.

Aliás, papai nunca escondeu seus sentimentos positivos. Como tinha perdido tudo e estava sempre às voltas com agiotas, dizia-nos que não tendo nada material para nos deixar, só poderia nos deixar educação e instrução formal. Mas hoje sei que ele nos deixou muito mais do que isso: sua capacidade de demonstrar, sem nenhuma reserva, o amor incondicional que sentia pelos filhos.

Em uma época em que a maioria dos pais que conheci era distante e autoritária, ele contava histórias para nos fazer dormir (histórias absolutamente sensacionais sobre sua própria infância), beijava nossas testas e murmurava orações e bênçãos inaudíveis (quase como se fossem mantras) quando íamos sair.

Mesmo depois de casado, quando nos encontrávamos, em qualquer lugar que estivéssemos, eu me curvava para que ele me beijasse novamente a testa e me abençoasse, em retribuição a todo o carinho e amor que tinha recebido dele (hoje, eu ajo da mesma forma com meus filhos). Mas, vamos voltar à trilha original.



SÉCULO VINTE VÍRGULA UM

Tio Delvô e tio Chiquinho morreram quando eu ainda era criança. Só vim a reconhecê-los através de retrato, pouco tempo antes de meu pai morrer. Curiosamente, a única imagem de infância que tenho de um deles, é a de um homem de cabelos lisos, despenteados e com um olho branco (o que me causava grande medo), que via às vezes na casa de minha avó. Quando comentei isso com meu pai, vi uma grande surpresa em seu rosto, e o comentário de que tio Chiquinho teve catarata em um dos olhos (quando tio Chiquinho morreu, eu era bem novo, talvez com seis, sete anos. Foi a primeira notícia de morte que recebi).

Pelo que dizia papai, tio Chiquinho escrevia bem pra caramba. De acordo com minha irmã, “papai se referia a ele como um verdadeiro poeta, de uma inteligência e sensibilidade nunca vistos e, ao mesmo tempo, de uma modéstia sem par. Papai achava que como tio Nhô, ele, Chiquinho, também teria estudado medicina por influência dos irmãos, mas sua natureza era de literato e historiador”.  Foi professor de História em Ubá.


Tio Chiquinho (1899 – 1955)



É curioso pensar que, para mim, até outro dia, tio Delvô seria o equivalente ao retrato de Itabira para o Drummond – apenas uma lembrança, só que sem nenhuma dor. De repente, com as informações recebidas, ele quase que se “materializou”. Segundo minha irmã, papai sempre se referiu ao tio Delvaux como sendo o "empreendedor" por excelência. Junto com o irmão Lourival fundou um laboratório de produtos farmacêuticos. Creio que o nome era Laboratório Tapaiuna. Dirigia – ou coordenava algumas farmácias de propriedade da família (coisa com que eu realmente nunca sonhei): uma no bairro de Santa Teresa, administrada pela tia Neném, outra em Brumadinho pela tia Zinha, outra em Ouro Preto, dirigida por tio Lourival e pela filha Neusa e, ainda uma no Rio de Janeiro, de responsabilidade do próprio Delvaux. O laboratório ficava na Av. Brasil e quem tomava conta era meu pai, tio Nhô e tio Chiquinho.

Palavras de minha irmã: “Por todas as informações que consegui obter da tia Zinha, (...) e Neusa, deduzo com bastante probabilidade que tio Delvaux, depois da recessão pós-guerra que culminou na falência dos negócios, desenvolveu um depressão severa que na Medicina chamamos Transtorno Depressivo Maior e não se recuperou mais.” Quando eu nasci – ou pouco tempo depois – esses negócios já tinham ido pro brejo.


Tio Delvaux (1894 – 1964)


Tio Lourival sempre me pareceu um sujeito alegre e irônico, pois sempre o via rindo, nas pouquíssimas vezes que estive com ele. Talvez o mais moleque da família. Creio que foi ele, quando criança, que trocou o pedaço de fumo de rolo de uma visita, amigo de meu avô, por excremento seco de porco. O visitante, sem perceber, teria picado o cocô seco, preparado e fumado o cigarro de palha, apenas estranhando de vez em quando o aroma e o sabor deixado na boca pela fumaça. O resto da história não sei. Já adulto, morou muito tempo em Mariana. Era casado com Lígia (não tia Lígia, apenas Lígia) e pai de Neuza, a prima mais misteriosa da minha infância, pois só vim a conhecê-la quando se casou com o Odilon.

A propósito dessa prima, há um fato pitoresco a lembrar. Ela era apaixonada pelos escritores russos (Tolstoi e companhia). Por isso, deu a todos os filhos - e ela os teve com bastante entusiasmo, talvez para compensar o fato de ser filha única -  nomes tirados dessa literatura: Kátia, Alex, Dimitri, Karina, Igor e Yuri. Ah, ainda teve um cachorro, ou melhor, cadela, de nome Natasha. Bacana!


Tia Neném era casada com tio Geraldo, um sujeito que sempre me pareceu um gentleman, com seu cabelo liso e ralo sempre muito bem penteado. Meu pai e ele tinham uma convivência civilizada, mas como Tio Geraldo tinha um bar no Santo André, próximo à pedreira Prado Lopes, isso era causa de um desprezo mal disfarçado por parte de meu pai (afinal, Tio Geraldo não tinha “cultura”!!), um esnobismo equivocado e injustificável, principalmente porque meu pai já estava na merda, naquela época.

Tio Geraldo e tia Neném formavam um casal super simpático, pais de duas gêmeas incrivelmente idênticas para mim, que nunca sabia distinguir quem era uma ou outra. Lembro-me de vê-las com vestidos absolutamente iguais. Uma delas tinha um sinal entre os olhos, fruto de uma catapora, creio. Para mim, essa era a única diferença entre elas. Chamavam-se Teresinha Maria (falecida) e Maria Teresinha (idem). Ou Teresinha e Jumbinha, respectivamente.

Essas primas tinham uma pronúncia singular, fruto talvez de terem falado muito tarde (quatro anos?): colocavam erre no final de algumas palavras, criando um efeito inimaginável. Ao referir-se à minha mãe, conhecida por Lia, diziam “porque a Liarrr...”. Além disso, sibilavam fortemente o “s”, como se cochichassem permanentemente, só que em voz alta. Quando falavam de mim e de meu irmão diziam “Cecinhô” e “Eduarrrrrdô”. Eu achava isso o máximo.

Perto da data de nosso casamento, quando estávamos entregando os convites, perguntei a meu pai como faria para entregar um convite para Tia Neném. Papai se surpreendeu e perguntou se eu queria mesmo convidar sua irmã para nosso casamento. Diante do meu “sim” categórico, deu o endereço do apartamento e uma explicação quase extraterrestre:
– “São dois apartamentos por andar. Você bata na porta que estiver escura”.

Quando cheguei ao prédio, descobri de imediato a moradia de uma legítima representante da família de meu pai. As portas de entrada dos apartamentos, como era comum na época, tinham uma janelinha ou abertura fechada com grade e vidro, que permitia a identificação de quem batesse, sem precisar abrir a porta. Pois bem, a janelinha do apartamento de Tia Neném estava escura, sinal de que a sala estava com as janelas fechadas e em total penumbra.

Depois que toquei a campainha, uma das primas abriu a janelinha e foi aquele alvoroço:
– É o “Cecinhô”!!

Minutos depois a porta foi aberta e pude entregar o convite para minha tia e para uma das primas. Nessa época, elas já não se deixavam ver juntas. Quando uma estava na sala, a outra ficava no quarto. Saía a da sala e logo chegava a do quarto. Isso se repetiu quando Tio Geraldo morreu. Só uma delas foi ao enterro. Depois do sepultamento, Tia Neném e a filha deram o braço para minha mulher e foram conversando como se nada tivesse acontecido. Afinal, como orientava meu pai, o choro em público era uma coisa que devia ser evitada, mesmo diante da maior perda. Muito louco.

Um dia, para grande consternação de tia Neném e de seus irmãos, a Teresinha engravidou. O que seria para mim motivo de grande alegria, sinal de que, afinal, ela não era tão lesada como a irmã, virou motivo de vergonha e mortificação. Versões sem nexo foram divulgadas, tais como um casamento (de que ninguém nunca ouviu falar) e imediata separação, coisas assim. O fato é que essa criança, uma menina pouco mais velha que nosso primeiro filho, provavelmente nem registrada foi, o que, aparentemente, também a impediu de cursar o ensino fundamental. Não me lembro do nome dela. Até alguns anos atrás, morava com a Jumbinha, pois Teresinha, sua mãe, morreu de câncer quando ela ainda era criança.


Tia Neném (1913? – 1989)



SÉCULO VINTE VÍRGULA TRÊS

Tia Zinha, tio Nhô e tia Sinhá foram os tios com quem mais tive contato na infância. Tia Sinhá e tio Nhô eram solteiros (solteirões) e tia Zinha era separada. Tio Nhô era um desenhista incrível, sempre com ideias mais para a charge e humor. Era um sujeito extremamente habilidoso. Tão habilidoso quanto excêntrico. Fazia molhos fantásticos (tipo molho inglês), consertava seus próprios sapatos, afinou o piano da sobrinha com alicate e faca de cozinha.

Aliás, essa afinação foi motivo de aposta com um amigo, que duvidou que conseguisse afinar o piano com essas ferramentas (“se você afinar o piano com isso, eu corto minha cabeça”). Contava meu pai que tio Nhô, bem humorado, foi cobrar a aposta do amigo.

Um dos casos pitorescos que esse tio protagonizou foi o conserto de uma motoneta de meu primo Totó, que contou o caso para minha irmã. Para variar, a descrição é dela também (descobri que ela é uma boa contadora de casos!):

"O outro caso foi o Totó que me contou com todo aquele espalhafato que lhe é peculiar. Ele disse que tinha uma motocicleta velha pra caramba que andava uma beleza na reta e na descida, mas qualquer subidinha era um vexame (uma tal de gulivet ou coisa parecida, só sei que podia pedalar quando precisava).  Ele comprou essa coisa porque queria fazer bonito pra uma moça lá na Pedro II que nem olhava quando ele passava de bicicleta. Aí foi um espetáculo, porque ela começou a 'olhar de rabo de olho; também com aquele barulhão', mas no dia seguinte da compra, atravessou um cachorro na frente da moto e ele caiu bem no passeio da casa da moça e ele e a moto ficaram todos estropiados.

Foi então que Tio Nhô disse que ia resolver o problema e mandou levar a moto pra dentro do quarto dele, fechou a porta e começou a desmanchar 'a possante'. E ele conta que quando viu aquele monte de peças no chão, pensou: 'puta que pariu, antes eu tinha uma jeringonça que não funcionava, agora eu tenho é uma montoeira de peças que eu não sei pra que que serve'. E ele descrevendo Tio Nhô é bacana demais: 'E Nô lá com aquela cara muito séria e compenetrada, com o cigarro num canto da boca, e depois de um tempo me mandava acelerar, e cada acelerada era POOU e Vruuummmm e aquela fumaceira danada e nós dois ficando cada vez mais pretos. E mamãe (Tia Zinha) desesperada do lado de fora gritando 'Nô, abre essa porta, vocês dois vão sufocar aí dentro'. Depois de muita peleja, sai eu e Nô igual carvão e o 'veículo', novo em folha. Foi um sucesso e funcionou muito tempo'.

Outra coisa curiosa que eu gostava muito, é que papai contava que Tio Chiquinho, Tia Sinhá e Tio Nhô sabiam tocar violino, só que Tio Nhô como era canhoto invertia as cordas do violino, colocava-as ao contrário. Eu não entendia, mas achava aquilo um barato".

Tio Nhô, entre outras maluquices, em uma ocasião, tirou e revelou fotos 3x4 de meu pai e dele próprio (a bem da verdade, ficaram muito esquisitas). Às vezes inventava artefatos estranhos que desenhava, explicando depois como deveriam funcionar. Nunca saiu de casa sem paletó e achava um arrojo e sinal de grande modernidade o fato de meu pai sair sem.

Meu pai tinha adoração por ele, embora sempre lhe desse “uns coices” e lhe “passasse descomposturas”, como meu pai mesmo reconhecia (-“O Nhô me trata como se ele fosse minha mãe e eu retribuo escoiceando-o”). 

Tio Nhô morreu em março de 1979. Segundo minha irmã, então com 17 anos, foi a primeira vez que viu nosso pai chorar (depois de ter se segurado até o último minuto). Além das lágrimas que teimaram em sair apesar do controle rígido das emoções que ele impunha aos irmãos e a si mesmo, enquanto a cova era tampada, balbuciou uma frase simples mas definitiva: -"adeus, meu irmão querido".

Depois disso, certamente, o dia de Finados, aniversário de meu pai, ficou definitivamente triste e insuportável. Nesse dia, trancava-se no quarto e, com exceção de nós, seus filhos, não atendia ninguém, nem mesmo mamãe. Para ele, era inadmissível comemorar seu aniversário em um dia de tão tristes lembranças.

Nunca soube se sempre se sentiu assim. Às vezes penso que com a morte do pai e depois da mãe, essa data perdeu de vez o brilho para ele.

Tio Nhô (1909 – 1979)


Tia Sinhá era uma pessoa meio etérea e, talvez, um pouco aérea também. Solteira, falava inglês e era pintora, boa pintora acadêmica. Lembro-me de alguns quadros pintados por ela na juventude, dependurados na casa de tia Zinha, com quem morava. Eu sempre admirava um quadro grande, com vários carneiros em um estábulo ou coisa parecida. Era de um realismo impressionante.

Quando tia Sinhá morreu, tia Zinha deu esse quadro para meu pai. Durante algum tempo, ele enfeitou a sala da casa onde morava minha mãe e que hoje é de minha irmã. Depois que meu pai morreu, aconteceu um fato que me surpreendeu muito. A narrativa a seguir é de minha irmã:

 O quadro dos carneiros da tia Sinhá está novamente com a Cocota. Eu devolvi para ela porque quando tia Zinha o entregou ao papai foi porque ele de certa forma fez uma ‘pressãozinha’ e eu ficava com muita pena quando ela e a Cocota ficavam admirando o quadro com um ar muito saudosista. Uma vez tia Zinha pediu licença para tirar um retrato do quadro para se lembrar melhor dele. Isso me tocou muito e então eu resolvi ‘devolvê-lo a quem de direito’, no caso, a Cocota. Antes, porém, eu me inspirei na tia Zinha e pedi a um fotógrafo profissional amigo do meu cunhado para tirar um retrato do quadro. Mandei imprimir em tamanho A2, em lona, e pus uma moldura. Ficou bacana, embora as cores tenham ficado um pouco mais escuras.

Bacana, mas com essa notícia, quem ficou com “um ar meio saudosista” fui eu. Mas, tudo bem.

Outro quadro imenso que ficava pendurado na sala de tia Zinha mostrava uma paisagem rural. No canto esquerdo do quadro via-se um cavalo e uma moça jovem, que se parecia muito com tia Sinhá. Um dia ela me disse que era ela mesma. Esse quadro foi pintado quando tinha dezessete anos. Depois que eu me casei, ela pintou um quadro para me dar de presente. Também uma paisagem rural. Segundo me disse, achara uma gravura linda, com a tal paisagem. Por isso, resolveu ampliá-la para me presentear. Sinceramente, deixando de lado o aspecto sentimental, prefiro os quadros de sua juventude.

Tia Sinhá (1901 – 1989)


Tia Zinha era o contraponto de realidade para tio Nhô e tia Sinhá. Casou-se com um médico (brilhante, segundo meu pai) e teve um casal de gêmeos, Dalmo e Dalma, segundo o cartório de registro civil. Ou José Geraldo e Maria das Graças, segundo a Igreja Católica.

O marido, sem que tia Zinha sonhasse com isso, foi ao cartório e registrou os filhos com um nome. Minha tia, sem saber de nada, batizou-os com outro nome (fico imaginando que o pai de meus primos deveria estar presente no batizado).

Essa foi uma das loucuras protagonizadas pelo marido de minha tia (Ladeira, era como meu pai o tratava), até ela separar-se dele. Não tenho certeza, mas creio que quando nasci ela já estava separada. Depois que minha avó morreu, Tia Zinha mudou-se para uma casa no bairro onde morávamos.

Nessa época, pelo menos Tio Delvô ainda estava vivo, embora eu não mais o visse. Curiosamente, depois que um dos irmãos adoecia, sumia para o mundo. Nenhuma visita tinha permissão para entrar no quarto do doente. Nem minha mãe nem ninguém. Só minha prima Neusa, muito "topetuda", uma vez, enfrentou os tios e entrou no quarto para ver o doente. Mas creio que foi só essa vez.

Embora meus primos sejam um pouco mais velhos que eu, eu adorava encontrá-los quando ia à casa de tia Zinha. Para mim, eram Totó e Cocota. Meu primo Totó era um de meus ídolos, pois, além de mais velho, tinha cachorro e bicicleta (e liberdade para usufruir isso). Meu pai também o chamava de Nonô.

Tia Zinha (1916 – 1997)


A Cocota namorou e noivou ao som de Anísio Silva (“quero beijar-te as mãos, minha querida...”), um cantor horripilante do tipo Amado Batista ou Reginaldo Rossi (e fez sucesso, o filho da puta!). Casou-se com o Getúlio (falecido recentemente), um sujeito vermelhão e gente fina, por quem meu pai nutria algum desprezo, já que não tinha curso universitário. Mas era trabalhador, ao contrário de mim e de meu irmão, que vagabundamos despreocupada e irresponsavelmente até o meio da faculdade. Creio que tiveram três filhos: Mônica, Moema e “Tulinho”.


Totó era bem apessoado, com um topete que lembraria o do Elvis Presley em início de carreira. Mesmo assim, talvez por timidez, acabou se casando com uma mulher feia pra cacete (Jandira) e que parecia bem mais velha que ele. A impressão inicial que tive dela era a de uma pessoa má e invejosa. Esse julgamento nunca se desfez. Tiveram uns três filhos que não me lembro de jamais ter conhecido.

Um belo dia (para o Totó), o casal se separou e ela tornou-se evangélica (não sei se antes ou depois da separação). Encontrando-me com o Totó em uma missa de formatura ou outra coisa qualquer, tivemos o seguinte diálogo, com o humor contido da família de meu pai.
 Zé, você sabe que eu me separei, né? Pois é, fiquei sabendo que a Jandira me queimou na fogueira santa da igreja dela...
 Você não está parecendo muito queimado não. No máximo, está meio gratinado...
A Cocota, que estava perto, riu quase sem abrir a boca, bem à moda da família.


Na maioria das vezes, casos antigos de família sempre trazem boas lembranças, mesmo que na época do ocorrido possam ter gerado constrangimento ou irritação. Para encerrar este texto e como uma homenagem a minha prima Neusa, filha única de Tio Lourival, falecida há pouco mais de um mês, vou contar um caso que me divertiu bastante.

Sempre, nas pouquíssimas vezes em que nos encontramos, a Neusa era de uma simpatia incrível. Simpatia e mordacidade. Eu me divertia muito com as coisas que ela dizia e contava. Foi em um desses raros encontros, em uma das lojas C&A, que ficamos sabendo do caso do suposto irmão, de desfecho hilário.

Papai teria contado à minha irmã que Tio Lourival teve um filho com uma das muitas "namoradas" dos tempos de solteiro e que o menino era a cara dele (de acordo com minha irmã, papai inclusive suspeitava que existissem outros). O fato é que minha prima só veio  a saber disso muitos anos depois, quando, creio, meu pai já tinha morrido.

A reação foi hilariante – e contada depois por ela própria para mim e para minha mulher:

 Amintas filho da puta! Porque ele nunca me contou? Eu sempre quis ter um irmão!!!
(maio/2013)



DORMINDO PROFUNDAMENTE

Este post é mais um adendo ou anexo, pois não fazia parte do texto original. Resolvi fazê-lo para encerrar a série "Século... vírgula..." sobre a família de meu pai, depois de receber três presentes de minha irmã.

ÁLBUM DE RETRATOS
O primeiro presente foram os retratos que ela me enviou por e-mail. Fiquei fascinado com as fotografias. Sinceramente, gostaria de apresentar os tios sem a beca de formatura, mas não consegui as fotos 3 x 4 de todos. O TOC me impediu de usar quatro fotos normais e só uma com beca. As fotos das tias são mais recentes, tal como eu me lembro delas. E a ordem, claro, é coerente com a data de nascimento de cada um.

Curioso é o fato de todos os homens terem estudado medicina e todas as mulheres farmácia. É claro que alguma coisa deu errado nessa história, pois nenhum dos homens exerceu essa profissão! A minha dedução é que aconteceu com meus tios o mesmo que com meu pai: estudaram medicina só para agradar os pais. 

Não faz muito tempo, inexistia a separação nítida de cursos universitários tal como é hoje. Tive um colega cujo título era engenheiro civil-eletricista. Minha mãe tinha um cunhado cujo título era engenheiro-arquiteto. Assim, imagino que, na época de meus tios, quem se formava em medicina estava automaticamente habilitado em farmácia. Foi o que aconteceu com meu pai.

Aliás, há mais uma curiosidade: durante o Estado Novo, se não me engano, os farmacêuticos foram autorizados a registrar-se como químicos, para suprir uma mão de obra inexistente e necessária aos esforços de industrialização do país. Dessa forma, meu pai tinha a formação de médico, farmacêutico e químico (profissão que realmente exerceu). 

Esse colar de títulos universitários não o impediu de viver duro a maior parte da vida, sempre às voltas com agiotas. E o motivo, creio, é bem simples: com a morte de dois dos irmãos mais velhos e a quebra dos negócios da família, sobrou para os remanescentes o pagamento de dívidas e encargos, situação bem na linha da frase -"segura no pincel aí que eu vou tirar a escada”.

QUADROS
Na mesma linha homenagem-memória dos textos anteriores, apresento duas imagens do "quadro dos carneiros" mencionado no post anterior ("SÉCULO VINTE VÍRGULA TRÊS"). A primeira resultou de uma foto tirada (ficou com reflexo do flash) por minha cunhada e tem as cores originais da pintura. A segunda é a cópia que está hoje na casa de minha irmã. Como pode ser visto, as cores não correspondem às originais.



NO PAÍS DOS BANGUELAS
Recentemente, minha irmã perguntou se eu queria uma maletinha que pertenceu ao pai de meu pai. Acho que a resposta que dei é óbvia, não? Aceitei na hora, lógico!

Além de toda desmontada e comida de cupim, trazia uma curiosidade: na parte interna (apesar dos cupins), estavam preservados os "berços" das ferramentas que ali estiveram acondicionadas. As formas das ferramentas eram visualizadas ou intuídas facilmente. E eram alicates, boticões e ferrinhos de dentista!

Como meu avô era dono de armazém... em um distrito de Ponte Nova... no final do século XIX / início do século XX... só posso pensar que, às vezes, talvez exercesse também essa atividade naquele fim de mundo. O que teria suas vantagens: antes de extrair o siso de alguém, já vendia logo o anestésico (cachaça, claro).


(Outros casos pitorescos, direta ou indiretamente relacionados a essa família tão querida, estão relatados no post "Coisas de Oratórios").


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FOLHA DE PAPEL

  De repente, sem aviso nenhum, nenhum indício, nenhum sinal, você se sente prensado, achatado, bidimensional como uma folha de papel. E aí....