SÉCULO VINTE VÍRGULA TRÊS
Tia Zinha, tio Nhô e tia Sinhá foram os tios com quem mais tive contato na infância. Tia Sinhá e tio Nhô eram solteiros (solteirões) e tia Zinha era separada. Tio Nhô era um desenhista incrível, sempre com ideias mais para a charge e humor. Era um sujeito extremamente habilidoso. Tão habilidoso quanto excêntrico. Fazia molhos fantásticos (tipo molho inglês), consertava seus próprios sapatos, afinou o piano da sobrinha com alicate e faca de cozinha.
Aliás, essa afinação foi motivo de aposta com um amigo, que duvidou que conseguisse afinar o piano com essas ferramentas (“se você afinar o piano com isso, eu corto minha cabeça”). Contava meu pai que tio Nhô, bem humorado, foi cobrar a aposta do amigo.
Um dos casos pitorescos que esse tio protagonizou foi o conserto de uma motoneta de meu primo Totó, que contou o caso para minha irmã. Para variar, a descrição é dela também (descobri que ela é uma boa contadora de casos!):
"O outro caso foi o Totó que me contou com todo aquele espalhafato que lhe é peculiar. Ele disse que tinha uma motocicleta velha pra caramba que andava uma beleza na reta e na descida, mas qualquer subidinha era um vexame (uma tal de gulivet ou coisa parecida, só sei que podia pedalar quando precisava). Ele comprou essa coisa porque queria fazer bonito pra uma moça lá na Pedro II que nem olhava quando ele passava de bicicleta. Aí foi um espetáculo, porque ela começou a 'olhar de rabo de olho; também com aquele barulhão', mas no dia seguinte da compra, atravessou um cachorro na frente da moto e ele caiu bem no passeio da casa da moça e ele e a moto ficaram todos estropiados.
Foi então que Tio Nhô disse que ia resolver o problema e mandou levar a moto pra dentro do quarto dele, fechou a porta e começou a desmanchar 'a possante'. E ele conta que quando viu aquele monte de peças no chão, pensou: 'puta que pariu, antes eu tinha uma jeringonça que não funcionava, agora eu tenho é uma montoeira de peças que eu não sei pra que que serve'. E ele descrevendo Tio Nhô é bacana demais: 'E Nô lá com aquela cara muito séria e compenetrada, com o cigarro num canto da boca, e depois de um tempo me mandava acelerar, e cada acelerada era POOU e Vruuummmm e aquela fumaceira danada e nós dois ficando cada vez mais pretos. E mamãe (Tia Zinha) desesperada do lado de fora gritando 'Nô, abre essa porta, vocês dois vão sufocar aí dentro'. Depois de muita peleja, sai eu e Nô igual carvão e o 'veículo', novo em folha. Foi um sucesso e funcionou muito tempo'.
Outra coisa curiosa que eu gostava muito, é que papai contava que Tio Chiquinho, Tia Sinhá e Tio Nhô sabiam tocar violino, só que Tio Nhô como era canhoto invertia as cordas do violino, colocava-as ao contrário. Eu não entendia, mas achava aquilo um barato".
Tio Nhô, entre outras maluquices, em uma ocasião, tirou e revelou fotos 3x4 de meu pai e dele próprio (a bem da verdade, ficaram muito esquisitas). Às vezes inventava artefatos estranhos que desenhava, explicando depois como deveriam funcionar. Nunca saiu de casa sem paletó e achava um arrojo e sinal de grande modernidade o fato de meu pai sair sem.
Meu pai tinha adoração por ele, embora sempre lhe desse “uns coices” e lhe “passasse descomposturas”, como meu pai mesmo reconhecia (-“O Nhô me trata como se ele fosse minha mãe e eu retribuo escoiceando-o”).
Tio Nhô morreu em março de 1979. Segundo minha irmã, então com 17 anos, foi a primeira vez que viu nosso pai chorar (depois de ter se segurado até o último minuto). Além das lágrimas que teimaram em sair apesar do controle rígido das emoções que ele impunha aos irmãos e a si mesmo, enquanto a cova era tampada, balbuciou uma frase simples mas definitiva: -"adeus, meu irmão querido".
Depois disso, certamente, o dia de Finados, aniversário de meu pai, ficou definitivamente triste e insuportável. Nesse dia, trancava-se no quarto e, com exceção de nós, seus filhos, não atendia ninguém, nem mesmo mamãe. Para ele, era inadmissível comemorar seu aniversário em um dia de tão tristes lembranças.
Nunca soube se sempre se sentiu assim. Às vezes penso que com a morte do pai e depois da mãe, essa data perdeu de vez o brilho para ele.
Tia Sinhá era uma pessoa meio etérea e, talvez, um pouco aérea também. Solteira, falava inglês e era pintora, boa pintora acadêmica. Lembro-me de alguns quadros pintados por ela na juventude, dependurados na casa de tia Zinha, com quem morava. Eu sempre admirava um quadro grande, com vários carneiros em um estábulo ou coisa parecida. Era de um realismo impressionante.
Quando tia Sinhá morreu, tia Zinha deu esse quadro para meu pai. Durante algum tempo, ele enfeitou a sala da casa onde morava minha mãe e que hoje é de minha irmã. Depois que meu pai morreu, aconteceu um fato que me surpreendeu muito. A narrativa a seguir é de minha irmã:
– O quadro dos carneiros da tia Sinhá está novamente com a Cocota. Eu devolvi para ela porque quando tia Zinha o entregou ao papai foi porque ele de certa forma fez uma ‘pressãozinha’ e eu ficava com muita pena quando ela e a Cocota ficavam admirando o quadro com um ar muito saudosista. Uma vez tia Zinha pediu licença para tirar um retrato do quadro para se lembrar melhor dele. Isso me tocou muito e então eu resolvi ‘devolvê-lo a quem de direito’, no caso, a Cocota. Antes, porém, eu me inspirei na tia Zinha e pedi a um fotógrafo profissional amigo do meu cunhado para tirar um retrato do quadro. Mandei imprimir em tamanho A2, em lona, e pus uma moldura. Ficou bacana, embora as cores tenham ficado um pouco mais escuras.
Bacana, mas com essa notícia, quem ficou com “um ar meio saudosista” fui eu. Mas, tudo bem.
Outro quadro imenso que ficava pendurado na sala de tia Zinha mostrava uma paisagem rural. No canto esquerdo do quadro via-se um cavalo e uma moça jovem, que se parecia muito com tia Sinhá. Um dia ela me disse que era ela mesma. Esse quadro foi pintado quando tinha dezessete anos. Depois que eu me casei, ela pintou um quadro para me dar de presente. Também uma paisagem rural. Segundo me disse, achara uma gravura linda, com a tal paisagem. Por isso, resolveu ampliá-la para me presentear. Sinceramente, deixando de lado o aspecto sentimental, prefiro os quadros de sua juventude.
Tia Zinha era o contraponto de realidade para tio Nhô e tia Sinhá. Casou-se com um médico (brilhante, segundo meu pai) e teve um casal de gêmeos, Dalmo e Dalma, segundo o cartório de registro civil. Ou José Geraldo e Maria das Graças, segundo a Igreja Católica.
O marido, sem que tia Zinha sonhasse com isso, foi ao cartório e registrou os filhos com um nome. Minha tia, sem saber de nada, batizou-os com outro nome (fico imaginando que o pai de meus primos deveria estar presente no batizado).
Essa foi uma das loucuras protagonizadas pelo marido de minha tia (Ladeira, era como meu pai o tratava), até ela separar-se dele. Não tenho certeza, mas creio que quando nasci ela já estava separada. Depois que minha avó morreu, Tia Zinha mudou-se para uma casa no bairro onde morávamos.
Nessa época, pelo menos Tio Delvô ainda estava vivo, embora eu não mais o visse. Curiosamente, depois que um dos irmãos adoecia, sumia para o mundo. Nenhuma visita tinha permissão para entrar no quarto do doente. Nem minha mãe nem ninguém. Só minha prima Neusa, muito "topetuda", uma vez, enfrentou os tios e entrou no quarto para ver o doente. Mas creio que foi só essa vez.
Embora meus primos sejam um pouco mais velhos que eu, eu adorava encontrá-los quando ia à casa de tia Zinha. Para mim, eram Totó e Cocota. Meu primo Totó era um de meus ídolos, pois, além de mais velho, tinha cachorro e bicicleta (e liberdade para usufruir isso). Meu pai também o chamava de Nonô.
A Cocota namorou e noivou ao som de Anísio Silva (“quero beijar-te as mãos, minha querida...”), um cantor horripilante do tipo Amado Batista ou Reginaldo Rossi (e fez sucesso, o filho da puta!). Casou-se com o Getúlio (falecido recentemente), um sujeito vermelhão e gente fina, por quem meu pai nutria algum desprezo, já que não tinha curso universitário. Mas era trabalhador, ao contrário de mim e de meu irmão, que vagabundamos despreocupada e irresponsavelmente até o meio da faculdade. Creio que tiveram três filhos: Mônica, Moema e “Tulinho”.
Totó era bem apessoado, com um topete que lembraria o do Elvis Presley em início de carreira. Mesmo assim, talvez por timidez, acabou se casando com uma mulher feia pra cacete (Jandira) e que parecia bem mais velha que ele. A impressão inicial que tive dela era a de uma pessoa má e invejosa. Esse julgamento nunca se desfez. Tiveram uns três filhos que não me lembro de jamais ter conhecido.
Um belo dia (para o Totó), o casal se separou e ela tornou-se evangélica (não sei se antes ou depois da separação). Encontrando-me com o Totó em uma missa de formatura ou outra coisa qualquer, tivemos o seguinte diálogo, com o humor contido da família de meu pai.
– Zé, você sabe que eu me separei, né? Pois é, fiquei sabendo que a Jandira me queimou na fogueira santa da igreja dela...
– Você não está parecendo muito queimado não. No máximo, está meio gratinado...
A Cocota, que estava perto, riu quase sem abrir a boca, bem à moda da família.
Na maioria das vezes, casos antigos de família sempre trazem boas lembranças, mesmo que na época do ocorrido possam ter gerado constrangimento ou irritação. Para encerrar este texto e como uma homenagem a minha prima Neusa, filha única de Tio Lourival, falecida há pouco mais de um mês, vou contar um caso que me divertiu bastante.
Sempre, nas pouquíssimas vezes em que nos encontramos, a Neusa era de uma simpatia incrível. Simpatia e mordacidade. Eu me divertia muito com as coisas que ela dizia e contava. Foi em um desses raros encontros, em uma das lojas C&A, que ficamos sabendo do caso do suposto irmão, de desfecho hilário.
Papai teria contado à minha irmã que Tio Lourival teve um filho com uma das muitas "namoradas" dos tempos de solteiro e que o menino era a cara dele (de acordo com minha irmã, papai inclusive suspeitava que existissem outros). O fato é que minha prima só veio a saber disso muitos anos depois, quando, creio, meu pai já tinha morrido.
A reação foi hilariante – e contada depois por ela própria para mim e para minha mulher:
– Amintas filho da puta! Porque ele nunca me contou? Eu sempre quis ter um irmão!!!(maio/2013)
DORMINDO PROFUNDAMENTE
Este post é mais um adendo ou anexo, pois não fazia parte do texto original. Resolvi fazê-lo para encerrar a série "Século... vírgula..." sobre a família de meu pai, depois de receber três presentes de minha irmã.
ÁLBUM DE RETRATOS
O primeiro presente foram os retratos que ela me enviou por e-mail. Fiquei fascinado com as fotografias. Sinceramente, gostaria de apresentar os tios sem a beca de formatura, mas não consegui as fotos 3 x 4 de todos. O TOC me impediu de usar quatro fotos normais e só uma com beca. As fotos das tias são mais recentes, tal como eu me lembro delas. E a ordem, claro, é coerente com a data de nascimento de cada um.
Curioso é o fato de todos os homens terem estudado medicina e todas as mulheres farmácia. É claro que alguma coisa deu errado nessa história, pois nenhum dos homens exerceu essa profissão! A minha dedução é que aconteceu com meus tios o mesmo que com meu pai: estudaram medicina só para agradar os pais.
Não faz muito tempo, inexistia a separação nítida de cursos universitários tal como é hoje. Tive um colega cujo título era engenheiro civil-eletricista. Minha mãe tinha um cunhado cujo título era engenheiro-arquiteto. Assim, imagino que, na época de meus tios, quem se formava em medicina estava automaticamente habilitado em farmácia. Foi o que aconteceu com meu pai.
Aliás, há mais uma curiosidade: durante o Estado Novo, se não me engano, os farmacêuticos foram autorizados a registrar-se como químicos, para suprir uma mão de obra inexistente e necessária aos esforços de industrialização do país. Dessa forma, meu pai tinha a formação de médico, farmacêutico e químico (profissão que realmente exerceu).
Esse colar de títulos universitários não o impediu de viver duro a maior parte da vida, sempre às voltas com agiotas. E o motivo, creio, é bem simples: com a morte de dois dos irmãos mais velhos e a quebra dos negócios da família, sobrou para os remanescentes o pagamento de dívidas e encargos, situação bem na linha da frase -"segura no pincel aí que eu vou tirar a escada”.
QUADROS
Na mesma linha homenagem-memória dos textos anteriores, apresento duas imagens do "quadro dos carneiros" mencionado no post anterior ("SÉCULO VINTE VÍRGULA TRÊS"). A primeira resultou de uma foto tirada (ficou com reflexo do flash) por minha cunhada e tem as cores originais da pintura. A segunda é a cópia que está hoje na casa de minha irmã. Como pode ser visto, as cores não correspondem às originais.
NO PAÍS DOS BANGUELAS
Recentemente, minha irmã perguntou se eu queria uma maletinha que pertenceu ao pai de meu pai. Acho que a resposta que dei é óbvia, não? Aceitei na hora, lógico!
Além de toda desmontada e comida de cupim, trazia uma curiosidade: na parte interna (apesar dos cupins), estavam preservados os "berços" das ferramentas que ali estiveram acondicionadas. As formas das ferramentas eram visualizadas ou intuídas facilmente. E eram alicates, boticões e ferrinhos de dentista!
Como meu avô era dono de armazém... em um distrito de Ponte Nova... no final do século XIX / início do século XX... só posso pensar que, às vezes, talvez exercesse também essa atividade naquele fim de mundo. O que teria suas vantagens: antes de extrair o siso de alguém, já vendia logo o anestésico (cachaça, claro).
(Outros casos pitorescos, direta ou indiretamente relacionados a essa família tão querida, estão relatados no post "Coisas de Oratórios").
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