terça-feira, 8 de março de 2022

A HISTÓRIA DE DONA BELARMINDA E SEU AGENOR

Como já disse várias vezes (sou meio repetitivo), o Blogson Crusoe sempre teve uma função terapêutica para mim, sempre foi uma boa ferramenta para meu autoconhecimento.  Além dessa qualidade, sempre serviu para que eu tentasse entreter os eventuais leitores que tropeçaram nele um dia. Nessa finalidade estão enquadradas as lembranças, as piadas idiotas, e os "dezénhos" (os desenhos do Zé). Com frequência bem menor estão as falsas poesias e os raros contos que me animei a escrever. E o post de hoje é exatamente isso, um conto. Mas requentado, pois já foi publicado em duas partes.
 
Então, qual o interesse de republicá-lo integralmente? Afinal, quase ninguém tem saco para ler textão na internet (mesmo que esse textão corresponda a cinco páginas A4 escritas em Arial 12). Bem, eu acredito que este é o momento ideal para divulgar algumas curiosidades a respeito de sua criação ou de sua história (eu adoro esse tipo de coisa). Mas deixarei para contá-las como comentário no final do texto (jogada de marketing, entendeu?).


Belarminda e Agenor eram vizinhos e conviviam desde a infância, há tanto tempo que diziam ter-se conhecido antes de Cabral descobrir o Brasil. Pela intimidade chamavam-se de Bela e Geno, que ele tentava sem sucesso corrigir para Gênio.
 
Brincaram as brincadeiras normais da infância e que se brincava quando ainda não havia nem mesmo televisão em suas casas. Como estavam sempre juntos, as mexeriqueiras da vizinhança os provocavam dizendo que eram namoradinhos, só para ver a reação irada de Belarminda:
- Nós não somos namoradinhos, o Geno é meu irmão! E ele concordava, sorrindo um pouco constrangido.
 
A puberdade aconteceu para os dois de forma não sincronizada, como é normal acontecer. Para surpresa de Agenor, Belarminda começou a ficar mais alta que ele, o corpo começou a arredondar nos quadris, relevos e vales nunca observados antes começaram a surgir e – o que mais o intrigou – ela não se interessava mais em jogar bola na rua nem brincar de pegador. A amiga de infância era agora uma quase desconhecida, um enigma, um mistério, enquanto ele continuava a ser o mesmo menino bobo que sempre fora.
 
Mas esse foi um tempo "que afinal passou como tudo tem de passar", pois os hormônios logo começaram também a agir em Agenor. O corpo deu um estirão, alguns pelos começaram a surgir em seu rosto (disputando espaço com a tempestade de acne que o atingiu), o pomo de Adão ficou visível no pescoço e a voz começou a alternar tons graves e agudos, provocando risos em Bela.
 
Para encurtar a conversa, entraram os dois na adolescência, mas cada um a seu modo. Belarminda tornou-se uma moça que fazia jus ao apelido de infância, alegre, desinibida, de riso fácil e que deixava todos os marmanjos babando por ela. Agenor tornou-se um jovem introspectivo, apagado, que não atraia a atenção de nenhuma garota. Ainda conversava com Bela de vez em quando, mas não tinha como acompanhar sua vida social e afetiva. Mesmo assim, às vezes ouvia da amiga as confissões mais desconcertantes, como da vez em que ela confessou ter desencaminhado e desencorajado um seminarista do desejo de ser padre.
 
Bela começou a namorar e trocava de namorado com muita rapidez - até conhecer o Tales, por quem se apaixonou. Agenor, que acompanhava de longe o frenesi amoroso da amiga, ainda tentou sugerir que fizesse uma mudança de rota:
 
- Bela, você precisa escolher melhor seus namorados, você parece só gostar de gente errada, de quem só está interessado no seu corpo!
- Ah, Geno, não acho graça em rapaz muito certinho, eu sou do signo de escorpião, talvez seja essa a minha sina. Lembra da história do escorpião e da rã atravessando o rio?
 
Mas era tarde para conselhos. Naquela época, quem engravidava casava. E assim, Belarminda entrou na idade adulta. Parou de estudar, casou-se com Tales e encadeou dez gravidezes no espaço de quinze anos.
 
Agenor, ao contrário, permaneceu sozinho, transformando-se em um solteirão solitário e quase sem amigos. Conseguiu um bem remunerado emprego no governo federal e até mudou-se para a capital. Às vezes voltava à cidade onde nasceu e tentava rever sua amiga, agora já meio velhusca, com aparência bem diferente da beleza que fez virar a cabeça de muitos jovens.
 
Para surpresa de Bela, ele passou a chamá-la de Dona Belarminda.
- Geno, você está ficando louco? Eu sou sua amiga Bela, está lembrado?
- Sim, mas toda mulher casada precisa ser tratada com respeito.
- Você está cada dia mais sistemático e antiquado, só falta usar fraque e cartola! Mas como eu gosto de você, o "senhor" pode me chamar do jeito que quiser. E contra atacou, passando a chamá-lo entre risos de "Seu Agenor".
 
E o tempo continuou a passar, cada vez mais rápido, "como tudo tem de passar". Agenor aposentou-se com salário integral e resolveu morar de novo no bairro onde tinha nascido. E o motivo foi ter ficado sabendo da recente viuvez de Belarminda, finalmente livre daquele escroto do Tales.
- Por que você chama o Tales de escroto?
- Porque ele é. Um sujeito que fez a senhora embarrigar dez vezes é um escroto de carteirinha.
- Seu Agenor, Seu Agenor! Acho que o "senhor" começou a caducar com vinte anos!
 
Resolvido o problema da moradia voltou a chamar a amiga pelo apelido antigo.
- Ué, Seu Agenor, o senhor está muito moderno!
- Ah, Bela, para com isso! É que agora você é novamente uma mulher livre para se relacionar com outros homens.
- Geno! Você está se insinuando para mim?
- Claro que não!
 
Mas, mesmo sem admitir nem para si mesmo, estava. O problema era o período de luto a ser respeitado. E foi durante esse tempo que ele começou a mudar. A primeira providência foi se matricular em uma academia, "para perder esta barriga". De forma planejada e programada, começou também a ter aulas de dança de salão - uma das melhores formas de iniciar um processo de conquista e sedução, no seu entendimento.
 
Belarminda, por sua vez, começou a sentir saudade do toque de pele, do calor do corpo balofo do falecido. Ainda sem saber o que fazer, começou a brincar com um elefante de louça que ficava sobre a mesinha da sala, presente de Tales em algum aniversário de casamento, pois enxergava uma sensualidade oculta naquelas curvas esmaltadas.

Para Agenor, um período de luto adequado deveria durar um ano. Por isso, nesse meio tempo, um dia avisou Belarminda de que iria levar uma pizza a palito para petiscar enquanto conversassem sobre os velhos tempos, a Vida, o escroto do Tales, qualquer coisa que desse vontade. Belarminda achou ótima a ideia, pois morava sozinha agora, já que a filharada toda tinha se casado e se espalhado por vários lugares, cidades e até no exterior, pois uma das gêmeas morava em Portugal.
 
E Agenor continuou pacientemente a executar sua programação. Um dia, a pretexto de estar cansado de encomendar e receber pizza fria, convidou Belarminda para jantar fora.
- Você precisa sair mais, se divertir.
- Tem razão, às vezes eu me sinto muito só. Ainda bem que tenho sua companhia.
 
Ir a uma pizzaria aos sábados à noite tornou-se rotina para os dois. Até o dia em que Belarminda comentou:
- Anteontem completou um ano do falecimento do Tales.
- Eu sei.
- Sabe? Acho que vou te designar para o cargo de minha agenda oficial!
- Eu sou um homem de muitas qualidades insuspeitadas.
- Você está me saindo melhor que a encomenda! E ficaram rindo da bobagem.
 
Na semana seguinte, Agenor avançou mais uma casa em seu jogo de sedução. As muitas aulas de dança e a malhação na academia já tinham apresentado significativo progresso.
- Bela, é o Geno. Estava pensando em fazer hoje um programa totalmente diferente.
- Espero que não seja ver televisão!
- Não, estou te convidando para um jantar dançante.
- Uau! Você sabe dançar? Eu nunca imaginaria isso! Você sempre foi tão tímido e introspectivo...
- Eu sou cheio de mistérios.
- E aonde iremos?

Depois de aposentado, Agenor comprou uma quota de sócio-proprietário do melhor clube da cidade, onde, aos sábados, acontecia um "jantar dançante para a melhor idade". E era para lá que iria com Belarminda.
 
Bela arrumou-se toda e sentou-se no sofá perto do elefante de louça, à espera do amigo. Agenor era sempre pontual, mas naquele dia ela acreditou que estava ligeiramente atrasado. Enquanto esperava, alternava o pensamento entre o amigo e o elefante, pois sua tromba parecia estar perdendo o brilho próprio da louça.
 
Agenor chegou, desculpou-se pelo pneu furado e foram se divertir. Um bom vinho foi pedido, a conversa ficou mais leve, pediram alguns petiscos antes de escolher a refeição e mais uma garrafa de vinho chegou.
- Geno, assim eu vou ficar bêbada!
- Bobagem! Quer dançar comigo agora?
 
A música que estava tocando era um bolero, o ritmo ideal da sedução. Agenor enlaçou a cintura um tanto avantajada de Bela e começou a exibir a habilidade adquirida.
- Geno! Nunca imaginei que você soubesse dançar! O Tales era horrível, sempre dava um jeito de se atrapalhar. E você dança muito bem!
- A Vida me ensinou. Mas deixe o Tales para lá, vamos apenas curtir a noite.
- Humm, seu perfume é delicioso. Não sabia que meu irmãozinho era tão cheiroso!
 
Agenor encostou suavemente seu rosto no de Bela e pediu sussurrando:
- Por favor, não me chame mais de irmãozinho.
- Mas você sempre foi!
- Não sou mais. Chame-me de amigo, de companheiro, de sócio de pizza, mas não de irmão.
- E por que não?
- Um dia eu te conto.
 
Belarminda achou aquele pedido muito esquisito, mas como a dança estava boa e o vinho fazia efeito, deixou-se levar pelo amigo, mantendo os olhos fechados e o rosto colado ao de Agenor. Como ele estava cheiroso! Dançaram mais um pouco, voltaram para a mesa, pediram um filé surprise, comeram, conversaram mais um pouco e foram embora. Ao deixá-la na porta de casa, Agenor deu-lhe um beijo no rosto milésimos de segundo mais demorado que o normal, mas suficiente para Bela perceber e ficar pensativa. Aquela tinha sido uma noite muito estranha...
 
Durante a semana Belarminda repassou algumas vezes a noite de sábado. Nunca imaginou que Geno tivesse uma pegada tão boa para dançar. E seu corpo estava elegante, quase sem barriga. Também examinou mais atentamente sua própria imagem no espelho. Talvez uma aplicação de botox fosse uma boa ideia. O problema eram os seios, muito grandes, murchos e caídos. Também, quem mandou ter dez filhos? Culpa do idiota do Tales! Na próxima vez em que se encontrassem, perguntaria pro Geno se um implante de silicone ficaria bom. E aquele beijo no rosto, bem perto da boca? Estranho estar pensando essas coisas!
 
Agenor também repassou o que tinha acontecido naquela noite. Sim, correra tudo muito bem, ele não tinha pressa. Afinal, passara toda uma vida sonhando com isso. Mas estava na hora de tentar avançar mais um pouco, tentar um xeque-mate.
 
No sábado seguinte, novo convite para dançar. Mesmo ritual da semana anterior, um vinho para desinibir e a dança de rosto colado.
- Bela, tenho uma confissão para te fazer.
- Não me venha dizer que é gay!
- Não, longe disso! O que eu sou é louco por você.
 
Bela ficou atordoada com o que acabara de ouvir.
- Quê? Brincadeira boba!!
- Sempre fui!
- Ai, meu Deus! Depois dessa eu acho que preciso de mais um vinho! Por que está me falando isso agora?
- Na juventude você só tinha olhos para outros caras, mais velhos, mais sarados, mais espertos. Depois, casou-se com o Tales, teve dez filhos. Como eu poderia dizer que você sempre foi minha paixão, minha fantasia sexual mais duradoura?
- Estou passada! Aliás, estou chocada!
- Por isso eu te pedi para parar de me chamar de irmão.
- Acho que vinho só não basta para absorver esta notícia, preciso beber um uísque. Ou dois. E não quero mais dançar.
- OK.
 
Sentaram-se à mesa novamente e um silêncio total instalou-se entre eles. Belarminda estava com o olhar meio perdido, olhando para todos os lados, menos para Agenor. Ele, ao contrário, não tirava o olhar dela. Colocou suavemente sua mão sobre a dela e disse:
- Deixe-me explicar. Eu realmente sempre fui louco por você, mas só tinha direito de sentir um amor platônico, pois você, além de ter uma vida afetiva muito intensa, ainda me transformou em seu confidente. Cada situação mais picante que despreocupadamente me contava fazia com que eu me incendiasse por dentro. Perdi a conta de quantas vezes tive sonhos eróticos com você, desde simples beijinhos na boca até a mais completa intimidade.
- Mas essa menina não existe mais; o tempo passou e hoje eu sou outra pessoa, velha, gorda, caída e sem atrativos...
- Engano seu, eu continuo a te achar linda e desejável, muito desejável.
- Eu te tratando de irmãozinho e você na maior saliência comigo enquanto dormia. Só falta dizer que também sonhava acordado!
- Claro! Quase todo dia, para ser sincero...
- Cruzes!
- Lembre-se de que você era a menina mais linda e gostosa da região!
 
A mão de Agenor acariciou delicadamente o rosto de Bela sem que ela se esquivasse ao toque do amigo, que continuou.
- Por isso eu acabei te chamando de senhora, de Dona Belarminda, o que foi um exagero bobo. Talvez, depois do seu casamento, eu devesse apenas abandonar seu apelido insinuante e passasse a te chamar pelo nome de batismo.
- Eu odeio meu nome!
- Pois é, mas só depois que começou a ter filhos um atrás do outro é que eu acrescentei o "senhora" e o "dona". Acho que foi uma forma de protesto pela transformação de uma moça linda em fábrica de filhos.
- O Tales morria de rir dessa bobagem e te achava um idiota.
- Eu pensava o mesmo dele, mas eu queria disfarçar ao máximo minha forma de olhar e até de falar com você. Aliás, você morreria de rir se soubesse de todas as fantasias que fui criando ao longo dos anos. Uma delas, por exemplo, seria te convidar para passar uns dias em Caldas Novas com tudo por minha conta. Com a desculpa de baratear a viagem, reservaria um quarto de casal, mas deixando bem claro que eu dormiria no sofá. É óbvio que eu acabaria não dormindo ali. Diria estar carente afetivamente, me sentindo muito só e que gostaria que me abraçasse de conchinha.
- Você é doente!
- Era só mais uma fantasia, pois você ainda estava casada!
- Acho que já está tarde. Podemos ir embora?
- Claro!
 
Era muita informação a ser processada. Não estava zangada, não estava magoada ou decepcionada, apenas surpresa, apenas perplexa por tudo que tinha ouvido. O trajeto do clube até a casa de Belarminda foi feito em silêncio, só quebrado por ela depois de Agenor estacionar e descer do carro para acompanhá-la até a porta.
- Estou pensando em ir à Feira de Artesanato amanhã. Quer ir comigo?
- Claro! E como eu faço para marcar com você? Te ligo antes ou te cutuco?
 
A brincadeira inesperada e maliciosa desarmou Belarminda. Com o maior sorriso no rosto, puxou Agenor pela mão, dizendo:
- Vem, menino vadio, vem realizar sua fantasia!
 
Na segunda-feira, o lixo normal da casa ganhou a companhia dos cacos de um elefante de louça. Mas, tudo bem. Afinal, ele nunca combinara mesmo com a decoração da sala...


E agora, como prometido, vamos às curiosidades e pequenos segredos contidos na história:
1- Originalmente pensei que os protagonistas de uma história que eu não sabia ainda como desenvolver deveriam ter nomes antiquados, condizentes com uma história de amor platônico, capenga, mal resolvido. De imediato surgiram Belarminda e Agenor. Com o “andar da carruagem”, o nome Belarminda tornou-se ideal para indicar os atributos juvenis da personagem, através do apelido “Bela”. Já o apelido de Agenor ficou uma merda, mas fiquei com preguiça de pensar em outro nome;

2- o caso do seminarista é absolutamente real. Só não tenho certeza se o sortudo abandonou a ideia de ser padre;

3- o “caso do elefante” também é real. Quem me contou disse ter ficado sabendo que a aparência da tromba perdeu o brilho de tanto ser "friccionada". A mulher obcecada por “limpeza” é mais velha e mora sozinha; e ouvi essa história da sobrinha de sua amiga;

4- o diálogo final teve duas inspirações: uma entrevista de Danuza Leão, que o contou ao ser perguntada sobre qual a cantada mais criativa que teria recebido. No caso dela, o convite era para pegar uma praia, não para compras em uma feira de artesanato. E funcionou;

5- A outra inspiração veio da música “Sem fantasia” do Chico Buarque. A frase dita por Belarminda seria apenas, “Vem, menino, vem realizar sua fantasia”. As palavras “vem”, “menino” e “fantasia” fizeram com que eu me lembrasse da belíssima música, cujo verso inicial é “Vem, meu menino vadio”. Aí foi só acrescentar “vadio” para a frase ficar perfeita (para mim, pelo menos);

6- Talvez eu pudesse ter trabalhado mais o texto e ampliado a história, mas, como já disse, escrever textos longos é chato demais. Você precisa ficar atento ao continuísmo, gramática, estilo, etc. E se ninguém gostou das dicas, pelo menos parte do processo criativo ficou registrado. Fui.

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MARCADORES DE UMA ÉPOCA - 4