quarta-feira, 23 de março de 2022

MANIA MOLE

 
Aparentemente os ânimos têm se acalmado um pouco, pois a expressão “cultura do cancelamento” está meio sumida da mídia (talvez as críticas ao cancelamento tenham sido canceladas, quem sabe?). Espero que essa excrescência seja mesmo esquecida, banida - ou cancelada -, pois para mim é filha legítima ou um sinônimo do que eu chamaria de “ditadura do coletivo”, a mesma ditadura que inventou a militância do “politicamente correto” (expressão que eu odeio).
 
Dizem os entendidos (sem trocadilho, por favor) que o comportamento politicamente incorreto seria uma característica da Direita. Se isso for verdade, então eu sou definitivamente de direita. Porque abomino e critico o uso inadequado da arqueologia etimológica - que levou à condenação de palavras que talvez a maioria absoluta das pessoas usasse sem jamais saber sua origem e sem nenhuma conotação de ofensa ou menosprezo a quem fossem ditas.  Mas um mau humor do cão (sem ofensa aos cachorros nem ao demo) parece ter-se instalado na mente das pessoas, de algumas pessoas, fazendo com que passassem a se ofender com qualquer coisa que remotamente as levasse a sentimentos de rancor, inferioridade, de perseguição ou coisas assim.
 
Sou um sujeito da área de Exatas e tenho dificuldade de apresentar uma argumentação elegante que traduza o que penso e sinto. Mas, para mim, ditadura é e sempre será sinônimo de autoritarismo e censura. Na época dos presidentes militares o que não faltava (entre otras cositas mas) era autoritarismo e censura. Por isso, músicos, escritores, jornalistas, atores e autores de qualquer tipo de manifestação cultural rebolavam (no sentido figurado, por favor. Olha a censura!) para exibir e divulgar sua obra sem vê-la previamente mutilada ou simplesmente proibida pelos censores de plantão. E essa é uma das diferenças daquela época com os dias atuais: a censura era concentrada, oficial, institucional; hoje, a censura é difusa e surge sem que você entenda o motivo de várias palavras e expressões de uso centenário ser consideradas quase um anátema.

Pior ainda é quando alguém pensa em adotar um substituto absurdamente ridículo para um nome tradicional e para lá de inocente. Por exemplo, o que há de ofensivo ou inadequado na guloseima "maria mole" que eu comprava no botequim perto da minha casa? O nome mais que tradicional seria uma ofensa aos milhões de "Marias" que existem no mundo? Para mim, o único defeito era quando esse doce só estava disponível no sabor amendoim, que não curtia muito.

Por isso, querem uma sugestão de nome? Que tal "mania mole" (para manter a sonoridade) ou até "zé mole"  (talvez combine bem com o estágio atual de "algumas" pessoas!). Mas não podemos - nem devemos - ofender nenhum ser vivo da Terra. Nem plantas, nem bichos, nem pedras rolantes nem gente como a gente (alguém talvez diga "come, porra nenhuma!"). Tempos difíceis!
 
Pensando nisso, resolvi republicar um texto maravilhoso que o genial Millôr Fernandes escreveu na época da antiga ditadura (dos generais), por também ser uma crítica perfeita da atual ditadura (do politicamente correto). O título original, publicado no jornal Pasquim é "Um presente para o leitor". E o "presente" era o desenho de uma tesoura dentada. Delicie-se (com o texto).


Em absoluta sintonia com o alto espírito cívico que preside todas as nossas edições, qualquer de nossos artigos, a menor de nossas palavras e o mais íntimo de nossos gestos, O PASQUIM, sempre a favor da causa pública e da manutenção dos costumes atuais - que acreditamos imutáveis - oferece, hoje, a seus inúmeros leitores da TFM - não confundir com a Tradicional Família do Millôr - este magnífico regalo que pensamos seja o instrumento mais indicado, para manter a Estrutura, o Conceito e a Paz. De quê? Ah, bom, pô!

Com este instrumento na mão - o que, já de início, evitará que ponha a mão em qualquer outro instrumento o têéfeêmísta – teéfepista ou qualquer outro teéfista – estará a salvo de todos os ataques dos imorais desagregadores que pululam em todas as nossas publicações, sejam elas livros, revistas, jornais, opúsculos, bulas, alfarrábios, compêndios, cadernos, folhetos, panfletos, miliários, códigos, incunábulos ou enciclopédias. Com esta tesoura, dentada mas silenciosa, o leitor em questão deverá percorrer as bancas de jornais, estantes de livrarias, bibliotecas públicas, discotecas, cinematecas e outros ambientes deletérios, cortando, com a coragem e a tranquilidade dos justos, tudo aquilo que de malsão se lhe antolhar: seios femininos alguns masculinos também, partes pudendas, atos iníquos, cenas eróticas, atitudes dúbias, comportamentos negativos, frases de duplo sentido, demonstrações, enfim, de impudicícia, carnalidade, ultraje ao pudor, pederastia, sodomia, polução voluntária, indecência, impureza, despudor, lubricidade, sedução, transvio, desvirginamento, estupro, sensualidade imoderada e mesmo algumas moderadas, meretrício, degradação, masoquismo, inversão sexual, orientação e pornografia tout court . O dito impertérrito cidadão, nossa tesoura mágica e dentada em punho - compre dois exemplares para o caso de um se gastar rapidamente - deve, ainda, estar atento a qualquer referência ou ilustração de: concupiscência, ereção, priapismo, concúbito, lascívia, luxúria, carne, desejo, filoginia, voluptuosidade, obscenidade, ditos fesceninos, turpilóquios, pretextata verba, rebolados, batuques, cheganças, órgãos genitais, regiões púbicas, acasalamentos, inseminações - artificiais e naturais - libidinagem, frascarias, desregramento, pecados - todos os sete - pouca vergonha, carnis desideria, apetite venéreo - amor livre, má vida, meretrício, safismo, safadeza, lesbianismo, adultério, menage à trois - ou a mais pessoas – concubinagem, mancebia, amizades ilícitas e... surubas.

Cumpre ainda estar de aviso para referências a locais ou regiões geográficas específicas, tais como; harém, bordel, alcoice, conventilho, lupanar, prostíbulo, calógio, bramadeiro, casa-da-tia, casa-de-passe, randevu, e das pessoas aí encontradiças: libertinos, cevões, bargantes, pistoleiros, mulheres da vida, lotários, proxenetas, cáftens, caftinas, madames, adúlteros, prevaricadores, cortesãs, traviatas, transviados, viados propriamente ditos, bichas e bichonas, cabras, troquilheiros, mulheres de rebuço, decaídas, meretrizes, rameiras, perdidas, ambulatrizes, culatronas, bandarras, bêbedos, pinóias, maganas, bagaxas, hetaíras, bandalhos, messalinas, mundanas, corsárias, mulheres de vida fácil, cabriolas, manolas, frinéis, gueixas, cocotes, marafonas, inculcadeiras, barregãs, sátiros, bordeleiras, mulheres-damas, michelas, piranhas, bacantes, teúdas e toda essa gente que perambula pelas vielas lúgubres da prostituição.

Evidentemente, como diria um prolixo nato, o espaço é pouco para que enumeremos todos os vícios, erros, desvios, perigos, anomalias, tortuosidades, desregramentos, indecoros, depravações, abjeções, infâmias, falporrições, relaxamentos morais, degenerescências de caráter, podridões, lascívias e execrações que o simples brandir de nossa tesoura alvinitente - papel acetinado de primeira - pode destruir e evitar. Lutando apenas contra o que enumeramos acima, o cidadão teéfeêmista já poderá dormir tranquilo, na sua retidão física e probidade moral. Os que, contudo, quiserem levar ainda um pouco mais longe seu zelo consular devem procurar também cortar pela raiz o mal terrível de palavras que se escondem perfidamente em outras, como abundante, acuidade, iconografia, culatra, acuado, recuar, anseio, asseio, passeio, parapeito, despeito, meditabunda, moribunda, vagabunda e tremebunda; nomes de logradouros que mal e mal disfarçam a imoralidade de quem os batizou: Cupertino Durão, Aquino Rego, Bulhões de Carvalho, Jacinto Leite. E expressões aparentemente triviais mas tremendamente desagregadoras em sua sonoridade dúbia: "Que time é o teu?", "Se eu cozinho não lavo", "Jacaré no seco, anda?", "Cachorro que late nágua, late em terra?" "A rosa no cume nasce". Enfim, todo cuidado é pouco. Tesoura em riste e mãos à obra. Qualquer desvio de atenção pode ser fatal.

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