Já disse que sou especialista em títulos idiotas e o que escolhi para este post não foge à regra; mas serve apenas para desestressar e tirar um pouco da seriedade dos últimos textos publicados. O título original escolhido era “Um mergulho na lagoa”. Essa lagoa, na verdade é o município de Lagoa Santa, cidade da região metropolitana onde passei a maior parte das férias escolares do ensino fundamental. E o “mergulho” fazia referência à imersão nas lembranças não muito boas que tenho desse lugar e dessa época.
E este texto é a compilação de oito posts recentes, onde contei a história da compra de um terreno por minha avó materna e seus desdobramentos. Confesso ter sido uma das experiências mais catárticas já vividas desde a criação do blog, justamente pela carga de tristeza, melancolia, inveja e ódio sentidos por mim e que consegui resgatar. Ou seja, foi um mergulho meio dolorido na infância. Mas deu para voltar à superfície. Olhaí (esta introdução é dedicada a meu amigo virtual GRF).
O Mapa
Este é mais um fragmento
do mosaico das minhas lembranças, da minha memória cada vez mais fragmentada (talvez
um dos últimos). Sinceramente, estou começando a escrever sem a mínima inspiração,
movido apenas por um fato só conhecido recentemente sobre um terreno que deixou
algumas marcas no final da minha infância. Como não sei ainda o que dizer nem onde
pretendo chegar, precisarei de um mapa que traga algumas informações que talvez
utilize enquanto estiver contando esse caso, iniciado há sessenta anos, por aí.
(sentiu o bafo de um tiranossauro passando perto de você? Pois é...).
Já aviso que é um
mapa que copiei do Google Maps acrescido
de informações que só existem na memória, sujeitas a toda sorte de imprecisões e
dúvidas, pois eu devia ter não mais de dez anos na época e as pessoas que poderiam
confirmá-las ou corrigi-las já morreram. Por isso, provavelmente farei algumas postagens
à medida que for resgatando as lembranças dessa época. No final de tudo, juntarei
os cacos desse mosaico em um único post, para uma visão mais abrangente. Dadas as
(in)devidas explicações, eis o mapa. As duas figuras irregulares coloridas de azul
são lagoas. Depois, falarei mais sobre isso. No momento, basta saber que existiram
um Paraíso e um Purgatório (lugar adequado para expiar os pecados e as culpas presentes,
futuras e até mesmo de vidas passadas).
Comprando Um Terreno
O "causo" de hoje começa assim: minha avó materna nasceu no interior, provavelmente na fazenda de seu pai. Essa origem rural deve ter determinado seu desejo de, sempre que possível, tentar recriar o ambiente onde cresceu. O significado disso era a criação de galinhas, plantio de legumes, hortaliças e cultivo de árvores frutíferas onde fosse possível.
Sua casa, onde morei até me casar, possuía um quintal minúsculo, ridiculamente minúsculo. Apesar disso, lembro-me de ter ali existido um galinheiro, bananeira, mamoeiro, limoeiro e sei lá que mais. Quando os filhos começaram a se casar, todos os espaços disponíveis iam progressivamente sendo ocupados por edículas destinadas à moradia dos novos casais. Que não demoravam a se mudar dali, graças à convivência pouco amistosa de minha avó com as noras. Eu era ainda adolescente quando me dei conta de morar em um ninho de cobra, pois para ela todas as suas filhas eram "muito bem casadas", já os filhos...
Deixando de lado as quizilas familiares, o que sei é que minha avó resolveu um dia comprar um terreno de um de seus sobrinhos. Aparentemente, a experiência de ter sido espoliada por seus irmãos na partilha da herança de meu bisavô não deixou maiores sequelas em sua mente. Iniciadas as negociações, foi-lhe oferecida a compra de (creio) um alqueire, uma minúscula parte da fazenda de seu sobrinho. Quando foi lavrada a escritura (ou depois dela ter pagado a importância acertada), descobriu-se que o sobrinho filho da puta tinha vendido para sua tia não um "alqueire mineiro", mas um "alqueire paulista" (apesar de o terreno estar localizado em Minas Gerais). Para quem não sabe a diferença, um alqueire mineiro corresponde a 48.400 m² de terra. Já o alqueire paulista equivale a apenas 24.200 m² de terreno, metade do mineiro, Eu mesmo não sabia, só me lembro do bate-boca tempestuoso entre vendedor e compradora e a consequente crise nervosa (mais uma) que derrubou minha avó em uma cama.
Depois, com "Inês já morta", minha avó resolveu ocupar o terreno que adquirira (imagino que deveria ter 80m de largura por 300m de comprimento, mas isso é apenas uma suposição). Creio que a primeira providência foi cercar com uns três fios de arame farpado os 80m que faziam divisa com a estrada encascalhada que dava acesso ao lugar e que continuava por um bom trecho até chegar à porteira da fazenda do sobrinho buona gente. De nada adiantou a cerca, pois não demorou muito para que o arame e os postes fossem roubados. E assim começava a história do Purgatório.
O "causo" de hoje começa assim: minha avó materna nasceu no interior, provavelmente na fazenda de seu pai. Essa origem rural deve ter determinado seu desejo de, sempre que possível, tentar recriar o ambiente onde cresceu. O significado disso era a criação de galinhas, plantio de legumes, hortaliças e cultivo de árvores frutíferas onde fosse possível.
Sua casa, onde morei até me casar, possuía um quintal minúsculo, ridiculamente minúsculo. Apesar disso, lembro-me de ter ali existido um galinheiro, bananeira, mamoeiro, limoeiro e sei lá que mais. Quando os filhos começaram a se casar, todos os espaços disponíveis iam progressivamente sendo ocupados por edículas destinadas à moradia dos novos casais. Que não demoravam a se mudar dali, graças à convivência pouco amistosa de minha avó com as noras. Eu era ainda adolescente quando me dei conta de morar em um ninho de cobra, pois para ela todas as suas filhas eram "muito bem casadas", já os filhos...
Deixando de lado as quizilas familiares, o que sei é que minha avó resolveu um dia comprar um terreno de um de seus sobrinhos. Aparentemente, a experiência de ter sido espoliada por seus irmãos na partilha da herança de meu bisavô não deixou maiores sequelas em sua mente. Iniciadas as negociações, foi-lhe oferecida a compra de (creio) um alqueire, uma minúscula parte da fazenda de seu sobrinho. Quando foi lavrada a escritura (ou depois dela ter pagado a importância acertada), descobriu-se que o sobrinho filho da puta tinha vendido para sua tia não um "alqueire mineiro", mas um "alqueire paulista" (apesar de o terreno estar localizado em Minas Gerais). Para quem não sabe a diferença, um alqueire mineiro corresponde a 48.400 m² de terra. Já o alqueire paulista equivale a apenas 24.200 m² de terreno, metade do mineiro, Eu mesmo não sabia, só me lembro do bate-boca tempestuoso entre vendedor e compradora e a consequente crise nervosa (mais uma) que derrubou minha avó em uma cama.
Depois, com "Inês já morta", minha avó resolveu ocupar o terreno que adquirira (imagino que deveria ter 80m de largura por 300m de comprimento, mas isso é apenas uma suposição). Creio que a primeira providência foi cercar com uns três fios de arame farpado os 80m que faziam divisa com a estrada encascalhada que dava acesso ao lugar e que continuava por um bom trecho até chegar à porteira da fazenda do sobrinho buona gente. De nada adiantou a cerca, pois não demorou muito para que o arame e os postes fossem roubados. E assim começava a história do Purgatório.
Capim Pegando Fogo
Para se chegar ao terreno comprado por minha avó aproveitava-se o ônibus intermunicipal que ligava BH com Lagoa Santa. Sinceramente falando, creio que era assim que funcionava: o ônibus vindo de BH parava na rodoviária, a maioria das pessoas descia e ele então continuava até a "Varge" (Várzea). A partir daí, só mesmo a pé para chegar naquele cu de mundo no meio do nada.
Pelos testes que fiz com o Google Maps, a distância do ponto onde se descia do ônibus e o início do terreno seria da ordem de 1.600 metros, percorridos em uma estrada de fazenda, de terra encascalhada e cheia de buracos, o que tornava o caminhar uma coisa não muito divertida para uma criança que tinha uns nove ou dez anos, já que além da distância a percorrer, o cascalho ali espalhado aparentemente tinha apenas a função de impedir uma maior erosão da pista de rolamento, pois a poeira levantada por alguma caminhonete ou caminhão de leite que passasse na hora era a mesma. E era muita.
Há um ditado popular que estabelece que "água de morro abaixo e fogo de morro acima ninguém segura" (há uma versão mais apimentada dita pelo Juca Chaves lá pelos idos de 1970, mas vou abster-me de repeti-la). A topografia do lugar caberia bem nessa descrição, pois um dos limites do terreno era materializado por uma enorme vala escavada pelas enxurradas de muitas estações chuvosas, uma voçoroca (a que chamávamos de boqueirão) com uns quatro metros de largura e uns três de profundidade, um verdadeiro canal criado pela erosão do solo e que despencava da estrada rural até o terreno dos Calaboca (imagino que a origem dessa alcunha ou apelido coletivo talvez tenha se originado de “Cala a boca!”, embora desconheça o motivo).
Pela localização em região de cerrado, a vegetação não era muito fechada e as árvores, quando existiam, além de poucas, eram baixas, o tronco meio retorcido, com casca grossa e folhas largas e secas. Quando minha avó comprou esse terreno alguns pequizeiros ainda podiam ser vistos aqui e ali. No final da história não havia mais nenhum, provavelmente cortados pelos passantes para fazer lenha. Hoje se fala muito da importância do pequi na alimentação regional, etc., etc., mas o cheiro de seu fruto amarelo (que lembra muito uma gema de ovo cozido) é simplesmente repulsivo.
É importante ressaltar que o terreno adquirido localizava-se integralmente em uma encosta de morro. Assim, as únicas partes planas (horizontais) eram o leito de uma antiga estrada que corria paralela à que acabei de descrever e o lugar onde minha avó escolheu para construir sua edícula. Em homenagem à indigência da construção, talvez fosse melhor chamá-la de "redícula". Creio que um desenho esquemático ajudará a visualizar as condições do lugar.
Mesmo que eu não entenda nada desse assunto, imagino que para se apreciar plenamente todas as delícias do Paraíso talvez seja razoável passar um tempinho antes no Purgatório. E minha ideia de usar esses termos foi justamente essa: realçar a absurda disparidade de conforto existente entre os dois lugares assim identificados. Por isso, vamos primeiro dar uma passadinha no velho e bom Purgatório. Olha o “croquete” dele aí:
Conforto Cinco Estrelas
Uma das vantagens de ser criança é não ligar muito para comodidades e confortos que tanto agradam aos adultos. E digo isso por não me sentir incomodado de ser levado para passar alguns dias no terreno comprado por minha avó, mesmo que o conforto existente fosse zero. Até onde me lembro, minha avó mandou construir uma edícula ou barracão (tal como chamávamos) de três cômodos em linha, com essa distribuição: quarto, sala/quarto e cozinha (zero reboco em todas as paredes).
Imagino que a instalação sanitária (casinha) foi construída à parte, mas essa é uma informação apagada da minha memória. Creio que a "redícula" não tinha janelas e só uma porta com chave. A iluminação noturna era feita com uma ou duas lamparinas de querosene penduradas na parede. Com o tempo, o lugar onde se pendurava a lamparina ficava com uma língua preta de fuligem acima do pavio.
A água era retirada de uma cisterna escavada na parte mais baixa do terreno e tinha uns sete metros de profundidade (fundura). Como é comum fazer, para proteger e impedir a queda de coisas ou pessoas no buraco construiu-se um anel de tijolos em volta da borda da cisterna, que ficava coberta com tábuas. Sobre esse anel instalou-se um sarilho acionado a manivela, que puxava o balde cheio da água do fundo do poço.
Não sei como era a cozinha nem o que possuía. Provavelmente as panelas devem ter sido compradas de um "folheiro" que morava perto da casa de minha avó em BH. A partir da chapa das latas de banha ou outro produto qualquer ele fabricava panelas com cabo, leiteiras, canecas, suportes e bicos de lamparina, etc. Com o tempo e uso frequente acabavam enferrujando e ficando pretas por fora. Mas funcionavam bem e eram muito bem acabadas. Os alimentos eram preparados em fogão de lenha (provavelmente) ou fogareiro "Jacaré" à base de querosene. Os banhos eram tomados em bacia ("banho tcheco"), com água aquecida no fogão.
Para completar a descrição das "benfeitorias", creio que minha avó plantou algumas mudas de árvores frutíferas (laranjeiras, limoeiros), mas nada vingou, pois o solo não era adequado a esse tipo de plantio. Além do mais, quem regaria as mudas quando não estivéssemos lá? Regar, ninguém regou, pois as mudas foram "transplantadas" para a casa de algum desconhecido. Que só não roubou nada da "mansão" porque não havia nada mesmo que valesse a pena levar. Assim era o Purgatório, um lugar de conforto cinco estrelas.
Mas o Paraíso era bem diferente. O Paraíso, ah, o Paraíso... A seguir, um croqui com a distribuição esquemática de áreas e ambientes.
Para se chegar ao terreno comprado por minha avó aproveitava-se o ônibus intermunicipal que ligava BH com Lagoa Santa. Sinceramente falando, creio que era assim que funcionava: o ônibus vindo de BH parava na rodoviária, a maioria das pessoas descia e ele então continuava até a "Varge" (Várzea). A partir daí, só mesmo a pé para chegar naquele cu de mundo no meio do nada.
Pelos testes que fiz com o Google Maps, a distância do ponto onde se descia do ônibus e o início do terreno seria da ordem de 1.600 metros, percorridos em uma estrada de fazenda, de terra encascalhada e cheia de buracos, o que tornava o caminhar uma coisa não muito divertida para uma criança que tinha uns nove ou dez anos, já que além da distância a percorrer, o cascalho ali espalhado aparentemente tinha apenas a função de impedir uma maior erosão da pista de rolamento, pois a poeira levantada por alguma caminhonete ou caminhão de leite que passasse na hora era a mesma. E era muita.
Há um ditado popular que estabelece que "água de morro abaixo e fogo de morro acima ninguém segura" (há uma versão mais apimentada dita pelo Juca Chaves lá pelos idos de 1970, mas vou abster-me de repeti-la). A topografia do lugar caberia bem nessa descrição, pois um dos limites do terreno era materializado por uma enorme vala escavada pelas enxurradas de muitas estações chuvosas, uma voçoroca (a que chamávamos de boqueirão) com uns quatro metros de largura e uns três de profundidade, um verdadeiro canal criado pela erosão do solo e que despencava da estrada rural até o terreno dos Calaboca (imagino que a origem dessa alcunha ou apelido coletivo talvez tenha se originado de “Cala a boca!”, embora desconheça o motivo).
Pela localização em região de cerrado, a vegetação não era muito fechada e as árvores, quando existiam, além de poucas, eram baixas, o tronco meio retorcido, com casca grossa e folhas largas e secas. Quando minha avó comprou esse terreno alguns pequizeiros ainda podiam ser vistos aqui e ali. No final da história não havia mais nenhum, provavelmente cortados pelos passantes para fazer lenha. Hoje se fala muito da importância do pequi na alimentação regional, etc., etc., mas o cheiro de seu fruto amarelo (que lembra muito uma gema de ovo cozido) é simplesmente repulsivo.
É importante ressaltar que o terreno adquirido localizava-se integralmente em uma encosta de morro. Assim, as únicas partes planas (horizontais) eram o leito de uma antiga estrada que corria paralela à que acabei de descrever e o lugar onde minha avó escolheu para construir sua edícula. Em homenagem à indigência da construção, talvez fosse melhor chamá-la de "redícula". Creio que um desenho esquemático ajudará a visualizar as condições do lugar.
Mesmo que eu não entenda nada desse assunto, imagino que para se apreciar plenamente todas as delícias do Paraíso talvez seja razoável passar um tempinho antes no Purgatório. E minha ideia de usar esses termos foi justamente essa: realçar a absurda disparidade de conforto existente entre os dois lugares assim identificados. Por isso, vamos primeiro dar uma passadinha no velho e bom Purgatório. Olha o “croquete” dele aí:
Conforto Cinco Estrelas
Uma das vantagens de ser criança é não ligar muito para comodidades e confortos que tanto agradam aos adultos. E digo isso por não me sentir incomodado de ser levado para passar alguns dias no terreno comprado por minha avó, mesmo que o conforto existente fosse zero. Até onde me lembro, minha avó mandou construir uma edícula ou barracão (tal como chamávamos) de três cômodos em linha, com essa distribuição: quarto, sala/quarto e cozinha (zero reboco em todas as paredes).
Imagino que a instalação sanitária (casinha) foi construída à parte, mas essa é uma informação apagada da minha memória. Creio que a "redícula" não tinha janelas e só uma porta com chave. A iluminação noturna era feita com uma ou duas lamparinas de querosene penduradas na parede. Com o tempo, o lugar onde se pendurava a lamparina ficava com uma língua preta de fuligem acima do pavio.
A água era retirada de uma cisterna escavada na parte mais baixa do terreno e tinha uns sete metros de profundidade (fundura). Como é comum fazer, para proteger e impedir a queda de coisas ou pessoas no buraco construiu-se um anel de tijolos em volta da borda da cisterna, que ficava coberta com tábuas. Sobre esse anel instalou-se um sarilho acionado a manivela, que puxava o balde cheio da água do fundo do poço.
Não sei como era a cozinha nem o que possuía. Provavelmente as panelas devem ter sido compradas de um "folheiro" que morava perto da casa de minha avó em BH. A partir da chapa das latas de banha ou outro produto qualquer ele fabricava panelas com cabo, leiteiras, canecas, suportes e bicos de lamparina, etc. Com o tempo e uso frequente acabavam enferrujando e ficando pretas por fora. Mas funcionavam bem e eram muito bem acabadas. Os alimentos eram preparados em fogão de lenha (provavelmente) ou fogareiro "Jacaré" à base de querosene. Os banhos eram tomados em bacia ("banho tcheco"), com água aquecida no fogão.
Para completar a descrição das "benfeitorias", creio que minha avó plantou algumas mudas de árvores frutíferas (laranjeiras, limoeiros), mas nada vingou, pois o solo não era adequado a esse tipo de plantio. Além do mais, quem regaria as mudas quando não estivéssemos lá? Regar, ninguém regou, pois as mudas foram "transplantadas" para a casa de algum desconhecido. Que só não roubou nada da "mansão" porque não havia nada mesmo que valesse a pena levar. Assim era o Purgatório, um lugar de conforto cinco estrelas.
Mas o Paraíso era bem diferente. O Paraíso, ah, o Paraíso... A seguir, um croqui com a distribuição esquemática de áreas e ambientes.
O lugar que eu chamei de Paraíso era uma casa de campo ou de veraneio, uma propriedade à beira da lagoa principal do município. Não sei se ainda pertence hoje à famiglia de meus primos. Só sei que o terreno ocupava metade da quadra onde estava localizado. A avó italiana de meus primos ricos o havia comprado dezenas de anos antes, talvez no início do século XX, para descansar nos fins de semana.
Quando a conheci, era uma propriedade espetacular e super bem cuidada. Logo após o largo portão de ferro, o acesso de veículos era ladeado por aleias de fícus podados geometricamente. À esquerda e à direita dessa entrada ficava um pomar, cheio de laranjeiras de várias espécies, limoeiros, mexeriqueiras, limeiras e mangueiras. Próximo à casa havia ainda um abacateiro, que provocava uma cena curiosa: sempre que um abacate maduro despencava lá do alto, o barulho atraía o cachorro do vizinho, que não vacilava - antes que alguém chegasse, ele comia a fruta.
Logo à frente do pomar, um gramado super bem cuidado, ótimo para jogar futebol, vôlei, andar de bicicleta, jogar bentialtas, brincar de pegador e coisas do gênero. Esse gramado "abraçava" a casa, uma construção de dois andares, maior que a casa de minha avó onde morávamos. O andar de cima tinha varanda, três quartos, uma sala/copa ampla, banheiro e cozinha. No andar de baixo havia dois quartos pequenos, um banheiro pequeno, uma área aberta destinada à lavanderia e um quartinho externo onde eram guardadas as bicicletas. Uma escada interna unia o andar de cima com os quartos e banheiro do piso térreo.
Naquela época só havia luz elétrica no centro da cidade, mas isso não era problema ali, pois a iluminação era feita com lampião extremamente limpo e potente, bem diferente das lamparinas enfumaçadas e fedorentas do barraco de minha avó. A água tirada de uma cisterna totalmente fechada era jogada em uma caixa d' água com bomba de acionamento manual. Quando a caixa enchia, o excesso começava a sair pelo ladrão, momento excelente para se tomar um banho frio de bica. E quem bombeava a água, mantinha o gramado e cuidava do pomar era o caseiro Chico, um senhor humilde já idoso e gente boa.
No final do terreno, havia um bosque criado e plantado pela avó italiana de meus primos. Havia vários tipos de árvores e arbustos, mas o que chamava mesmo a atenção era uns quinze pés de eucalipto, árvores altíssimas (20 metros ou mais), que balançavam furiosamente em dias de ventania forte. Por ordem expressa da italiana, o chão do bosque nunca era limpo e nenhuma árvore cortada. Por isso, era uma área muito sombreada e toda coberta por uma camada de folhas e galhos secos que caiam das árvores. Andar sozinho naquele lugar mexia com minha imaginação infantil, fazendo-me pensar em monstros ou fantasmas à espreita atrás de um daqueles imensos e grossos eucaliptos.
Um dia, receoso de que sua casa fosse atingida se um dos eucaliptos próximos à rua quebrasse com o vento, um vizinho pediu para "podar" alguns galhos mais ameaçadores. Mas não havia como cortar esses galhos a mais de quinze metros do chão. Sem comunicação prévia ou autorização da avó de meus primos, o vizinho mandou cortar duas árvores (cujo tronco devia ter pelo menos uns 40 cm de diâmetro). Ao saber do corte dos eucaliptos que ela plantara dezenas de anos antes. a velha italiana ficou tão puta e desgostosa que deixou de passar seus fins de semana naquele lugar.
Esse episódio, mais a dispensa ou morte do caseiro e a falta de vontade de meus primos de trocar as festinhas e a agitação do início da adolescência pela calma pasmacenta daquele lugar foram determinantes para o progressivo abandono da propriedade. A grama cresceu, foi invadida pelo capim que ninguém mais se preocupou em arrancar ou cortar; o pomar ficou abandonado, entregue aos passarinhos e aos cuidados que as diferentes estações do ano proporcionavam. Para arrematar, um dia alguém arrombou a casa e levou todas as bicicletas, as espingardas de caça e as varas de pescar. Mas estou me adiantando um pouco.
Antes que isso acontecesse e para uma criança que não tinha nada, aquela casa e o que nela existia eram o contraponto exato entre nossa pobreza e a opulência dos primos ricos. Havia ali toda uma parafernália destinada ao lazer de crianças e adultos: oito bicicletas, espingardas cartucheiras para caçar, espingarda de ar comprimido (chumbinho) dos primos, varas de pescar de vários tamanhos, molinetes, anzóis, um barco a remo e, em frente à casa, entrando para dentro da lagoa, um "trampolim", construção extremamente comum naquela época. Todo bacana que possuía casa à beira da lagoa tinha o seu. Os ricaços que tinham casa de campo na cidade mas não à beira d'água também davam um jeito de construir um, meio espremido entre os já existentes, e claro, com a anuência dos moradores da orla. Creio que hoje não resta nenhum para contar história, mas na foto a seguir dá para perceber a "superpopulação trampolinística" que existia.
Não sei se meus primos
sabiam nadar, mas entravam na lagoa, pescavam lambarizinhos e pequenas traíras da
ponte do trampolim, saiam de barco com os adultos (pai e tio), andavam de bicicleta,
davam tiros de chumbinho em aves aquáticas. Eu não sabia nadar, não sabia andar
de bicicleta, não sabia pescar, não podia andar sozinho na ponte do trampolim e,
menos ainda, sair dando tiro de chumbinho. Por isso, ficava lá, só olhando, só na
vontade. Isso me faz pensar que se você conhece o Paraíso mas dele não pode usufruir
plenamente, talvez fosse melhor nem conhecê-lo, concordam? Pois é. Olhaí um trampolim
semelhante ao da casa de meus primos.
Foi Bom Enquanto Durou?
Quem leu o texto anterior pode se perguntar o que fazíamos no terreno de minha avó e se nos divertíamos. Pela distância a percorrer a pé até chegar ao terreno, creio que só fomos para lá durante algumas férias escolares, pois (para mim, pelo menos) não valeria a pena esse deslocamento só para passar um fim de semana ali. Com exceção da última vez, posso dizer que tive alguns momentos de diversão naquele fim de mundo.
E as lembranças são decorrentes de minha memória visual, que é bastante boa. Mas este relato não é um inventário para fazer um balancete ou prestação de contas. Por isso, para não tornar a leitura muito enfadonha tentarei resumir um pouco os episódios que poderiam ser classificados como "diversão".
Nunca levávamos qualquer tipo de brinquedo quando íamos ficar uns dias naquele barraco. E o motivo é simples: além de não possuirmos nada que valesse a pena levar, ainda havia o problema logístico provocado pela distância a percorrer a pé (sacolas com roupas, mantimentos, papel higiênico - provavelmente) e sei lá mais o quê que fosse essencial para a sobrevivência em Marte.
Por isso, uma diversão garantida era sair com minha mãe e meu irmão para explorar as redondezas do terreno, caminhando sempre na direção da fazenda do primo de minha mãe. Quatro lugares merecem destaque. O boqueirão que definia um dos limites do terreno é um deles, pois tinha para mim uma aura de filme de aventuras, um misto de Tarzan com Viagem ao Centro da Terra. Graças à sua erosão diferenciada, podíamos descer sem muita dificuldade até o fundo arenoso da vala. As raízes dos arbustos parcialmente expostas, as imensas teias de aranha, a sinuosidade esculpida pelas enxurradas, o silêncio e a alternância de sombras e luz nas paredes quase verticais mexiam muito com minha imaginação.
Outro lugar que também mexia comigo era a estrada abandonada que cortava o terreno em dois. Eu achava o máximo que minha avó tivesse um trecho de estrada só dela. Andando por essa estradinha às vezes nos deparávamos com algum buraco arredondado na borda mais elevada do terreno, que minha mãe dizia ser toca de coelho ou tatu e que não deveríamos mexer nela.
O terceiro foi descoberto em um dia em que resolvemos caminhar até umas mangueiras que podiam ser vistas à distância quando estávamos na parte mais alta do terreno. Levamos duas sacolas com finalidades distintas: uma para carregar as mangas que eventualmente conseguíssemos apanhar; e a outra..., bem, a outra era para catar e carregar a bosta seca de vaca que encontrássemos pelo caminho (se quiser, pode trocar por estrume de vaca). As mangueiras ficavam bem distantes do terreno de minha avó e em lugar mais favorável ao seu desenvolvimento. Já a bosta seca de vaca era encontrada esporadicamente. Minha mãe guardava em uma sacola esse "precioso insumo" para depois transformá-lo em esterco a ser aplicado nas mudas de laranjeira recém-plantadas. Foi quando nos deparamos com aquela paisagem incrível, lunar.
Diante daquela erosão o boqueirão que conhecíamos era filhote. Naquele lugar, as sucessivas temporadas chuvosas tinham criado um verdadeiro cânion, de tão largo que era. Imagino que deveria ter uns quinze metros de largura, mas não tenho certeza se minha mãe se animou a nos deixar descer até o fundo da grota gigantesca.
O quarto e último lugar a merecer destaque foi um galpão existente na propriedade dos Calaboca. Imagino que minha mãe deve ter ido tentar comprar hortaliças ou verduras dos vizinhos. Quem nos recebeu era um homem simples e humilde, de sorriso largo, vestido com roupas que lembrariam o caipira de Mazzaropi ou o "Nerso da Capitinga". Ele e sua esposa conversaram um pouco com minha mãe e nos levaram para conhecer o galpão onde fabricavam rapadura. Fiquei super impressionado com o tamanho gigantesco do tacho de cobre onde o caldo da cana era fervido. Não conheço o processo, apenas me lembro de que o Calaboca pegou uma faca e desplacou da borda do tacho uma lasca de rapadura remanescente do último preparo. Ah, e eles tinham uma lagoinha dentro de sua propriedade. Chique pra caramba!
Mas deixei para o final os dois melhores episódios, protagonizados por meu pai. Naquela época, quando ele ainda estava sem emprego e ralava para pagar agiotas (poderia dizer que ralava para rolar as dívidas antigas da sociedade com os irmãos falecidos) e até para comprar cigarros ou pegar um bonde, às vezes aparecia no Purgatório. Imagino que isso acontecia quando estávamos apenas eu, meu irmão e nossa mãe. Dada a indigência e precariedade das acomodações imagino também que era na base do “ou ele ou minha avó”. Nós três mais minha avó e meu pai talvez caracterizasse superlotação do barraco.
Mas duas das vezes em que passou uns dias conosco foram especiais. Ele não sabia nadar, mas, para nos divertir, resolveu construir uma piscina. Sem dinheiro para pagar ajudantes, começou ele mesmo a escavar o terreno. À medida que o serviço avançava, comecei a estranhar o formato do buraco. Para começo de conversa, a piscina não tinha cara de piscina, pois era um tronco de pirâmide invertido, com os lados superiores talvez medindo 1,50 m e só uns 40 cm de profundidade.
Concluída a escavação da piscina-que-não-tinha-cara-de-piscina, meu pai começou a impermeabilizar as laterais e o fundo, aplicando uma camada de argamassa diretamente sobre o solo. Depois de seca essa massa, só faltava encher a "piscina". Com qual água? A que era tirada da cisterna, logicamente. Para simplificar, imaginem que o volume de água necessário para encher a piscina seria da ordem de 500 litros - ou mais de 30 latas com 15 litros cada, a ser tiradas no muque de uma cisterna de oito metros de profundidade, uma tarefa super cansativa. Mesmo assim, foi isso que meu pai fez.
Assim que a água fria começou a ser jogada no buraco, eu e meu irmão entramos na "piscina". Que logo ficou suja, pois sem nenhuma proteção ou isolamento para impedir, a terra da borda era carregada pelos pés molhados. Outro defeito era a aspereza do revestimento; qualquer movimento mais estabanado significava uma ralada na pele. Assim, apesar do trabalhão que meu pai teve para construí-la, sua piscina teve vida efêmera. O esforço para enchê-la era muito grande e sujávamos a água rapidamente, além de ser muito pequena para fazer qualquer coisa que não fosse ficar sentado ou ajoelhado.
E o caso final é este: um dia, quando já estávamos no terreno, meu pai chegou carregando quatro rodas de madeira, que utilizou para construir um carrinho para nós. Era exatamente igual aos conhecidos carrinhos de rolimã, inúteis e contraindicados para um terreno que era terra pura. Daí a necessidade e adequação das rodas de madeira, que mantinham o carrinho mais alto e à prova de atolamento.
Depois de concluído o carrinho (que tinha até freio), ainda roçou o mato para fazer uma pista com uns quinze a vinte metros de comprimento. Mostrou-nos como pilotar o "bólido" e a partir daí foi “pau na máquina”. No começo, descíamos a rampa segurando o freio; à medida que fomos nos acostumando, começamos a descer de forma "despingolada", "na banguela", só puxando o freio no finalzinho, para não arrebentar a cara na parede do barracão. Numa manobra mal feita "capotei" com carro e tudo, ganhando uma pequena cicatriz no pulso que durou anos para desaparecer.
Curiosamente, logo nos cansamos do carrinho, pois seu maior defeito era ter de levá-lo até o alto do morro. Afinal, como ensina o ditado, se para baixo todo santo ajuda, para cima é que a coisa muda. E já que estamos na base do clichê, poderia, pensando no carrinho, dizer que tudo o que é bom dura pouco. Mas como eu já escrevi demais, imagino que os eventuais leitores já devem estar de saco cheio, detestando a ruindade deste texto. Mesmo que seja tarde para reclamar. Ou não. Afinal, antes tarde que nunca, não é mesmo?
A Chuva
Creio que aquela chuva mudou definitivamente os sentimentos de minha avó e minha mãe em relação à ideia de "passear" ou passar férias naquele fim de mundo. Confesso também que não faço a mínima ideia de como minha mãe conseguia se comunicar com sua irmã endinheirada, a mais velha de todas, pois não havia ônibus, mensageiro, ou telefone que as colocasse em contato. Talvez fosse intuição ou apenas alguma frase dita antes de irmos para o "Purgatório": "Ficaremos lá até o dia tal".
O que sei é que o dia de voltarmos para BH chegou. Creio que éramos cinco pessoas - minha avó, minha mãe, minha tia solteira, eu e meu irmão. Malas, bolsas e sacolas arrumadas (malas não, pois creio que não existiam), roupa de "ir à missa" e lá fomos nós. Subida do morro, talvez uma pequena pausa para respirar e caminhada pela estrada empoeirada em direção à área urbanizada mais próxima, a "Varge" (várzea), onde talvez pegássemos um ônibus ou coisa assim.
Talvez a distância a percorrer não fosse grande coisa para um adulto, mas, para mim, esse percurso de dois quilômetros era chão pra caramba, ainda mais naquela estrada encascalhada e poeirenta. Embora não me lembre mais, talvez percebesse que o céu estava cheio de nuvens escuras, prenunciando a possibilidade de chuva próxima. E foi isso que efetivamente aconteceu.
No meio da caminhada, sem nenhum lugar para nos esconder, para nos proteger, começou a chover. Era uma chuva muito forte, intensa, agressiva, madrasta, com trovões, rajadas de vento frio que alternavam a direção do aguaceiro - um verdadeiro dilúvio caindo sobre três mulheres e duas crianças no meio do nada. Lembro-me de minha mãe puxando-nos para perto dela, tentando nos abrigar do temporal que caía. Mas era só intenção, pois estávamos todos completamente molhados e com as roupas encharcadas. Situação que só não ficou pior porque o solo da estrada era arenoso e não dava muita lama.
Como a água escorria pelo meu cabelo e rosto, não sei se estava chorando silenciosamente ou apenas tomado por uma tristeza e desespero profundo, pois a única coisa que podíamos fazer era andar, apenas andar. Foi quando um carro vindo na direção contrária apareceu. Apareceu e parou. Ao volante estava meu tio "torto", casado com a irmã mais nova de minha mãe. Abriu as portas, o porta-malas, acomodamo-nos nos bancos e fomos levados para o "Paraíso", onde tomamos banho quente de chuveiro, colocamos roupas secas, provavelmente lanchamos ou jantamos, brincamos com nossos primos, dormimos, os adultos conversaram, etc.
Como disse antes, não sei como meu tio foi despachado para nos apanhar e nos levar de volta à civilização. Fico tentado a pensar em sinais de fumaça ou tambor, mas isso é só uma piada. Depois dessa chuva, creio que ninguém nunca mais pensou em passar sequer um fim de semana no Purgatório, que deve ter ficado abandonado até ser vendido. Mas esse é outro caco do mosaico.
A Herança
Não sei por quanto tempo o "Purgatório" ficou abandonado, talvez de dois a quatro anos (pois imagino que ninguém nunca mais quis passar alguns dias lá). Só sei que um dia minha avó resolveu ou concordou em vendê-lo. E o pato que comprou aquele capim pegando fogo foi meu pai. Para tentar estabelecer quando essa ideia de jerico foi concretizada - talvez uma das ideias mais infelizes que meu pai teve em toda a vida -, preciso fazer um cruzamento de informações. Vamos lá.
Quando minha avó e meu pai fecharam negócio, minha irmã já tinha nascido. Ela nasceu em 1961. Para fazer essa venda minha avó precisaria estar lúcida. Ela morreu em 1972 e tenho quase total certeza de ter começado a exibir sinais de demência uns seis anos antes de sua morte; em 1966, portanto. Por isso, posso estimar que o vacilo de meu pai ocorreu entre 1961 e 1966.
E que desejo obscuro teve meu pai ao comprar um terreno de solo árido, topografia desfavorável e no meio do nada? A explicação dada por ele mesmo é tristemente patética e comovente: ele queria que sentíssemos orgulho de ter alguma coisa em nosso nome. Para isso (essa foi sua segunda ideia de jerico), ele registrou o Purgatório no nome dos filhos, dois adolescentes e uma criança de dois a cinco anos de idade. Por mais que fique comovido com esse gesto encharcado de carinho e amor pelos filhos, não posso deixar de comentar os dois equívocos que cometeu de uma só vez.
Quando meu pai resolveu comprar esse terreno que estava abandonado desde 1960 ou 1961 (eu estava com dez anos quando caiu aquela chuva de triste memória), ele já tinha arranjado um emprego de químico em uma fábrica de cimento na região metropolitana de BH e devia estar com a situação financeira finalmente controlada. Bem ao seu estilo de não comentar nada ou quase nada sobre sua vida pessoal, seus sonhos e frustrações, decidiu investir sua grana sem falar nada comigo e com meu irmão (mesmo que fossemos apenas dois adolescentes). Creio que eu pouco ligaria se ele tivesse comprado o terreno e o registrado em seu nome. O erro foi, como disse, passar a escritura no nome dos filhos. Enquanto escrevo isso, bateu uma dúvida: teria ele tomado essa decisão para se proteger de algum antigo e esquecido credor? Nunca tinha pensado nisso, mas não deixa de ser uma hipótese a considerar.
Não sei a reação que tive quando soubemos da novidade . Mas uma coisa fica clara para mim: se sua ideia real era de nos proporcionar algum motivo de orgulho diante dos primos endinheirados (e aqui preciso lembrar que - para mim! - orgulho pressupõe comparação com algo ou alguém), o efeito seria o mesmo de exibir orgulhosamente um calhambeque com o motor queimando óleo para o proprietário de um carro esportivo importado. Que orgulho insensato seria esse? Por isso, nunca senti orgulho por ter me transformado em dono de um terço daquele terreno que passei a odiar, talvez pelo trauma da mega chuva apanhada anos antes, talvez por discordar radicalmente da compra de um terreno inútil.
Mais alguns anos se passaram e eu continuava abominando e jamais me sentindo um dos donos daquela coisa. Foi quando meu pai tomou mais uma porrada da Vida, um nocaute definitivo, indefensável. Ou, como meu amigo virtual Ozy diria, um xeque-mate. A fábrica onde trabalhava mudou todo o sistema de produção (alguma coisa de "seco" para "úmido" ou o inverso disso), processos que meu pai desconhecia. Creio que sem perceber, começou a ser avaliado para ocupar uma função de chefia. Entretanto, por achar que estavam desconfiando dele por algum motivo e graças a seu temperamento irascível e gênio bilioso, mandou o colega que o avaliava à puta que pariu. Nota zero em relações interpessoais. Pela desatualização profissional e pela inadequação emocional para assumir um cargo gerencial, foi demitido quando tinha mais de sessenta anos e, para piorar, pouco tempo de contribuição no INSS.
Nessa época eu era recém-casado, meu irmão também já se casara e minha irmã ainda era menor de idade. Um dia, super constrangido, procurou-me e perguntou se eu me incomodaria se ele vendesse o Purgatório. Apesar de cheio de pena dele, devo tê-lo deixado emocionalmente um pouco pior, pois além de dizer que concordava integralmente, deixei claro que nunca tinha me sentido dono daquele terreno. Para quem tentou um dia dar algum motivo de orgulho para os filhos, não deve ter sido essa descoberta um momento de alegria. E paro por aqui. O que aconteceu depois disso eu prefiro não comentar (até por já ter contado em algum post antigo). Não aconteceu nada de pecaminoso ou condenável e que deva ser escondido, apenas faz com que eu novamente morra de pena de meu pai ao revolver essas lembranças.
O Tempo Passa, O Tempo Voa
Eu comecei esta série de lembranças melancólicas de infância dizendo estar começando a escrever "sem a mínima inspiração, movido apenas por um fato só conhecido recentemente sobre um terreno que deixou algumas marcas no final da minha infância". Disse ainda não saber o que dizer nem onde pretendia chegar.
Para quem estava sem a mínima inspiração, acho que escrevi demais, talvez até bem mais do que devia. E o detonador dessa catarse foi um comentário que uma das irmãs de minha mãe fez há algum tempo. Alguém teria dito a ela que o terreno que eu chamei de "Purgatório" teria se transformado em um condomínio de luxo. Fiquei pasmo com a notícia. Aquele capim pegando fogo transformado em condomínio? De luxo? Há quem diga que "quem compra terra não erra". Mas, como imaginar que aquele lugar no meio do "pasto", do nada, se transformaria tanto?
Um investidor americano disse uma vez que gostava de comprar terras, "pois há muito tempo pararam de fabricar". Então deve ter lógica esse tipo de investimento, algo como comprar ações para só vendê-las trinta anos depois. Claro, se a empresa ainda existir.
Com o auxílio do bisbilhoteiro Google Maps, resolvi dar uma conferida no tal condomínio (bem no estilo “O mundo visto de cima”), usando como ponto de partida a lagoinha dos Calaboca. Como eu confio mais no Google que no "ouvi dizer" de minha tia, cheguei à conclusão de que esse condomínio não existe. Pelo menos no lugar onde imagino estar localizado o “Purgatório”.
O que consegui ver foi uma região totalmente urbanizada e bem diferente do deserto da minha infância, mas ocupada por construções simples, nada luxuosas. Uma rua que tem o nome de minha tia-avó, mãe do sobrinho buona gente que passou a perna em minha avó parece confirmar que eu não estou (muito) enganado. Mas isso agora deixou de ter importância para mim.
Eu realmente não sabia aonde chegar nem o que dizer, mas depois de garimpar e revolver todas essas lembranças, o que realmente ficou claro para mim foi nunca ter retribuído adequadamente a meu pai todo o carinho e amor por ele demonstrado.
Obrigado, Pai, pelas histórias de sua infância contadas para nós à noite; obrigado por ter fumado todo tipo de cigarro vagabundo só para melhorar nossa coleção sem que precisássemos pegar os maços colecionáveis do chão; obrigado pela disposição, energia e tempo gasto para construir uma piscina-que-não-tinha-cara-de-piscina; obrigado pelo fabuloso carrinho de rodas de madeira.
Obrigado também pela tentativa de nos fazer sentir orgulho por ser donos de uma propriedade rural; obrigado por tudo o que fez e tentou fazer por nós. Mas, sobretudo, obrigado por todo o amor que nos dedicou ao longo da vida. Sabe, Seu Amynthas?, você acabou sendo um pai nota dez!
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