sábado, 31 de março de 2018

LEMBRANDO SEU NECA



Uma das amigas de minha mulher me incluiu em um grupo fechado do Facebook que reúne um pessoal fissurado em fotos antigas. Não causa, portanto, nenhum espanto que o nome de um grupo com 18.516 membros seja  "Fotos Antigas de Belo Horizonte".

Uma das fotos postadas recentemente mostra o Viaduto de Santa Tereza ainda em construção. Claro que eu me empolguei com essa imagem de um "senhor" prestes a completar 90 anos, pois o viaduto foi inaugurado em 1929. Mas por que essa foto mexeu tanto comigo? Bom, além de ser o principal acesso ao bairro onde moro, de ter sido citado por Carlos Drummond de Andrade e Fernando Sabino em suas obras e ser um dos cartões postais mais manjados de BH, está o fato de meu sogro ter trabalhado em sua construção. Por isso, resolvi postar os poucos casos que me lembro de tê-lo ouvido contar sobre isso.

"Seu Neca" ou apenas "Neca" nasceu em 1910 e era o mais velho de dez irmãos, filhos de um português severo e patriarcal. A mãe era filha de espanhóis. Meu sogro deve ter sido louro na juventude, pois era um pouco avermelhado e tinha os olhos absurdamente azuis. Possuía traços fisionômicos muito bonitos e bem definidos, herdados pela maioria dos nove filhos que teve. Mas voltemos a seu pai "d'além mar".

O velho português exigia que todos os filhos estivessem à mesa na hora do almoço.Com os pais sentados nas cabeceiras, assentavam-se por ordem de idade. Quando um filho mais despreocupado atrasava-se um pouco, era repreendido pelo pai: "Não tens relógio? Dar-te-ei um!" Tendo trabalhado como um mouro (para ficar conectado à Península Ibérica), deixou um imóvel para cada um dos nove filhos (uma das duas filhas morreu na juventude). A escolha também foi feita respeitando-se a ordem de nascimento.

Muito bem. Quando o Viaduto de Santa Tereza começou a ser construído, Seu Neca devia ter dezessete ou dezoito anos e empregou-se como motorista na empresa construtora. Provavelmente deve ter sido seu primeiro emprego. Segundo me contou, para o transporte do concreto a ser lançado na obra eram utilizados dois caminhões. A usina ficava em uma das margens do Arrudas, ribeirão que seria transposto pelo viaduto. E meu sogro era o motorista dos dois veículos. Como a distância era curta, enquanto um caminhão estava sendo carregado com a massa de concreto, ele conduzia o outro até o local onde seria descarregado. E ficava nesse vai e vem o dia todo.

O curioso nessa história é que o cimento utilizado na construção era importado e vinha em barricas de madeira, cada uma pesando 60 quilos. Outra curiosidade que contou, sujeita a confirmação in loco, é a divergência entre o estabelecido no projeto estrutural e o que foi realmente executado. Segundo ele, o cálculo estrutural foi realizado "pelo escritório do Dr. Emílio Baumgart" que, por qualquer motivo, atrasou a entrega dos projetos de alguns detalhes construtivos. Assim, quando os desenhos chegaram, descobriu-se que  o viaduto deveria ter duas juntas de dilatação. Mas a obra estava andando muito bem, bem até demais, pois um dos locais previstos para a construção da junta já estava concretado e pronto. Assim, o viaduto ficou só com uma junta de dilatação, .

Tão logo os arcos ficaram prontos era usual fazer apostas para ver quem os escalava e atravessava mais rápido. O perdedor pagava a cerveja. A queda dos trechos mais altos (14 metros de altura em relação ao pavimento) certamente seria fatal, mas graças à pouca idade, bom preparo físico, muita impulsividade e falta de juízo, Seu Neca teria ganhado muitas apostas, sempre convertidas em cerveja. Imagino ter sido ele e seus colegas os precursores dessa maluquice, depois repetida pelo Drummond, Fernando Sabino e outros doidos mansos.

Meu sogro morreu em 1980 e o viaduto - um dos cartões postais mais manjados de BH - continua servindo de cenário para retratos de noivas, filmagens, fotos artísticas e, claro, como meio de acesso ao bairro boêmio onde moro.















quarta-feira, 28 de março de 2018

REINCIDÊNCIA

Li no site da BBC Brasil uma reportagem sobre uma "prisão de luxo" que existe na Noruega, conhecida como "a cadeia mais humanizada do mundo". Obviamente, só é tratada dessa forma por pessoas que desconhecem as modestas instalações preparadas para hospedar o Serginho Cabral durante sua estada em Benfica. Pena que ele não pôde usufruir de suas comodidades por muito tempo!

A matéria traz esta informação: “A taxa de reincidência criminal na Noruega era, em 2016, de 20%, a mais baixa do mundo. Em outros países, como o Reino Unido, chegava a 46%, e nos EUA 76% das pessoas que deixavam a prisão voltavam nos cinco anos seguintes”.

É nessas horas que eu me ufano do meu país! Mesmo que não tenha sido citado na reportagem, tenho certeza que a “taxa de reincidência criminal” no Brasil é próxima de zero. Verdade! Afinal, para ter “reincidência”, é preciso primeiro que a “incidência” seja punida, coisa mais improvável do mundo nesta nossa Terra de Santa Cruz.

Se alguém se interessar em ler tudo, o link é este:






terça-feira, 27 de março de 2018

HISTÓRIA CULTURAL DAS FAKE NEWS - JOSÉ FRANCISCO BOTELHO

Yuval Noah Harari escreveu em seu livro Sapiens que “Nossa linguagem singular evoluiu como um meio de partilhar informações sobre o mundo. Mas as informações mais importantes que precisavam ser comunicadas eram sobre humanos, e não sobre leões ou bisões. Nossa linguagem evoluiu como uma forma de fofoca. De acordo com essa teoria, o Homo sapiens é antes de mais nada um animal social. A cooperação social é essencial para a sobrevivência e a reprodução. Não é suficiente que homens e mulheres conheçam o paradeiro de leões e bisões. É muito mais importante para eles saber quem em seu bando odeia quem, quem está dormindo com quem, quem é honesto e quem é trapaceiro”.

Matutando sobre essa teoria fascinante e deliciosamente “incorreta”, ocorreu-me que essa fofoca primordial poderia estar também na gênese das “fake news” que envenenam as redes sociais hoje em dia. Como não tenho cérebro nem saco para tentar fazer evoluir esse pensamento, resolvi transcrever um artigo interessantíssimo publicado na edição 2575 da revista VEJA. O autor é José Francisco Botelho. Apesar de ter o mesmo sobrenome que eu (a título de curiosidade, meu avô materno chamava-se Francisco José Botelho), posso garantir que não temos nenhum parentesco, pois nem eu nem nenhum dos meus parentes seríamos capazes de escrever de forma tão elegante e agradável (perdoem-me, Botelhos de Minas Gerais!). Olhaí.


HISTÓRIA CULTURAL DAS FAKE NEWS

As notícias falsas sempre existiram, mas jamais foram tão velozes

"O RUMOR é a mais veloz das pragas malignas", escreveu Virgílio, no Livro IV da Eneida. "Horrendo monstro de pés rápidos, desconhece o sono, rasga a noite e aterroriza cidades inteiras com sua mistura indiferente de mentiras e verdades." Não precisamos recorrer à mitologia para constatar que a propagação de notícias falsas é um costume tão antigo quanto a palavra escrita – e talvez coetâneo de toda comunicação humana. Platão, na República, apregoou a disseminação de "nobres falsidades" como necessário cimento social para sua utopia de déspotas filosóficos.
Em 1522, o grande e desbocado poeta Pietro Aretino tentou tumultuar as eleições papais publicando infâmias imaginárias – e devidamente metrificadas – sobre os candidatos; na Inglaterra e na França do século XVIII, caluniadores profissionais distribuíam misturas bem dosadas de notícias reais com ficções comprometedoras, em temíveis panfletos que vindicavam desavenças pessoais ou inimizades políticas. Ou seja: as fake news – expressão vaga, que adoto com relutância – não surgiram com as redes sociais. Por outro lado, um breve lance de olhos ao cotidiano virtual é suficiente para demonstrar que as novas tecnologias alteraram a forma (ou a rapidez) com que essa antiga praga nasce, apodrece e germina:
"O que é a verdade?", indagou Pilatos a Jesus Cristo; mas não teremos espaço para responder ao legado da Judeia. Fiquemos, então, com o seguinte truísmo: com todas as ferramentas de pesquisa hoje disponíveis, é relativamente fácil, mesmo ao mais distraído consumidor de rumores, detectar informações suspeitas ou infundadas. Ainda assim, a mentira – ou sua irmã mais perniciosa, a meia-verdade – tende a prosperar. Em março, a revista Science divulgou uma pesquisa assustadora sobre a propagação de notícias inexatas na internet. Após analisar 3 milhões de compartilhamentos no Twitter entre 2006 e 2017, um grupo de cientistas do Instituto de Tecnologia de Massachusetts concluiu que informações adulteradas têm probabilidade de disseminação 70% maior que as notícias simplesmente factuais. A acreditarmos na pesquisa, basta que uma notícia seja falsa para que tenha mais possibilidade de triunfo. É como se o "horrendo monstro de pés ligeiros" fosse uma sereia cuja sedução aumenta conforme o tom do falsete.
Os mesmos mecanismos que permitem a multiplicação quase instantânea da falsidade podem servir para desbancá-la e desmascará-Ia, com idêntica rapidez – mas isso não resolve o problema, pois quem hoje é paladino da verdade pode ser o propagador de notícias falsas da semana que vem. Para derrotar o monstro, é preciso admitir que ele existe – e que está no meio de nós. Não somos inocentes; todos gostamos, às vezes, de uma pitada confortável de imprecisão, de uma cálida meia-verdade que nos afague as crenças. Dessa volúpia inata à espécie, só nos salva o ascetismo mental: resistir à rumorosa sereia é lutar contra a própria natureza humana. Uma luta sem quartel – e  que, por definição, não acabará jamais.


segunda-feira, 26 de março de 2018

VOCÊ SABE O QUE É CAVIAR?


Duas notícias recentes me incomodaram muito, mas muito mesmo. Eu sei que dizem respeito a contas orçamentárias diferentes e foram provocadas por dois poderes diferentes. A saber, Executivo e Judiciário. Mas que incomodam, incomodam. Bora lá.

Primeira: “Paralisação de juízes (...) por auxílio-moradia divide o Judiciário”.

Segunda: “Supercomputador mais rápido do Brasil é desligado por falta de dinheiro para conta de luz. E isso pode causar danos irreversíveis ao Santos Dumont, que custou R$ 60 milhões”.

Há um ditado que ensina que: “Pra farinha pouca, meu pirão primeiro”. No caso do corte de despesas e manutenção do auxílio-mordomia, ou melhor, auxílio-moradia (foi sem querer!), acho que dá para dizer: “Pra gastança pouca, meu caviar primeiro”.

terça-feira, 20 de março de 2018

FACE A FACE

Às vezes eu penso que o Facebook é uma arena, um octógono de MMA, onde se encontram os piores sentimentos, a agressividade mais descontrolada, intolerância e preconceito em estado puro, sem diluição, tantas as barbaridades e comentários que pessoas aparentemente "normais" são capazes de fazer. Isso, claro, sem contar as constantes agressões à língua portuguesa.

Tudo isso, dependendo do assunto ou destempero dos comentários que leio me assusta, amedronta ou enfurece. Fico me perguntando por que continuo a manter meu perfil nessa rede infestada de trogloditas radicais, mas ainda não descobri a resposta. Talvez, no fundo, eu seja igual a eles, aos "amigos de facebook" que azedam meu fígado. Talvez seja isso. E aí me lembro da história do Oscar Wilde, tão adequada a releituras e adaptações aos dias atuais.

Os 2,3 leitores desta bagaça estão carecas de saber (espero que só no sentido figurado) que “O Retrato de Dorian Gray” é a história de um jovem e seu retrato “mágico”. Ultra sinteticamente falando, quanto mais devassidão, perversão e crimes o jovem cometia, mais seu retrato pintado ia refletindo isso, ficando cada vez mais grotesca a imagem, embora ele continuasse com seu rosto angelical. Essa história tem-me feito pensar em uma analogia ou semelhança com a internet e, mais particularmente, com o Facebook.

Pensem bem: na vida real, nossos amigos, conhecidos e parentes são geralmente amistosos, contidos, educados (nem todos, nem todos!). Entretanto, basta criar e acessar seu perfil no Facebook ou outra mídia, para a coisa mudar. Alguns se revelam extremamente passionais e radicais, outros demonstram ser egocêntricos e fúteis e há até aqueles que exibem uma estupidez ou ingenuidade excessiva, surpreendente, visceral.

Ou seja, no dia-a-dia, no mundo real, todo mundo comporta-se de forma mais ou menos civilizada, amistosa, com um mínimo de elegância e autocontrole. Enquanto isso, seus comentários e posts compartilhados no Facebook e outras redes parecem revelar sua verdadeira face, "retratos" que assustam e desapontam quem os vê.

De tudo isso fica uma constatação: se quiser saber mais da maldade humana, crie um perfil em alguma rede social (e adicione muitos "amigos").

Eu escrevi este texto para postar no Facebook, mesmo que tudo isso já tenha sido dito antes na mídia, com muito mais profundidade e elegância. E eu me pergunto: não estarei sendo apenas e gratuitamente agressivo como as pessoas que critico? E mais: alguém está interessado nisso?


domingo, 18 de março de 2018

AH, OS IDEAIS!...

Ao acordar hoje, olhei para a televisão (que está sempre ligada) e li esta frase que foi dita no final de um documentário. Infelizmente, não sei o autor. O título idiota do post é meu, mas a frase - que não é minha - é fantástica.


quinta-feira, 15 de março de 2018

O MARMOREIO DA CORRUPÇÃO

Só para puxar assunto: você sabe o que é marmoreio? Não? Eu também não sabia, mas vamos chegar lá.

O meu desejo é só fazer posts de humor, engraçados, leves, que possam divertir os malucos que acessam o blog. Mesmo que eu tente, é bom registrar que “humor” é um artigo escasso no Blogson. Ainda mais quando eu fico puto com alguma notícia surreal divulgada na mídia. A última fala do superfaturamento no preço dos pães preparados por presidiários. Aí meu fígado azeda.

Segundo a Wikipédia, “O marmoreio é definido como a acumulação de gordura intramuscular na carne bovina e suína”. A carne marmorizada é assim chamada “por lembrar o desenho da pedra de mármore”. Dito de outra forma, “O marmoreio é a quantidade de gordura entremeada nas fibras da carne, e que pode ser vista na superfície dos cortes”. Segundo os entendidos, “O grau de marmorização influencia na suculência e a lubrificação das fibras, tornando a carne mais macia e saborosa”.

Bom, embora o Blogson também seja cultura, chega desse papo de carne, pois eu gosto mesmo é de churrasco “carvão”, com zero gordura. Além do mais, o que eu quero dizer é que a expressão "marmoreio" me faz pensar no Brasil, mas de um modo diferente, onde a “gordura” corresponde à bandalheira impune encontrada em todos os níveis da sociedade.

Depois da divulgação dos detalhes da “Operação Pão Nosso”, eu percebi que o “tecido social” do país está tão “marmorizado” pela corrupção, que começo a perder a esperança de que um dia essa gordura nefasta possa ser eliminada. Foi aí que resolvi fazer um "mapa" do Brasil que traduza minha perplexidade e desalento. Olhaí.





quarta-feira, 14 de março de 2018

FRASES - ROBERTO CAMPOS


EXTRAÍDO DO WHATSAPP:

Morto em 2001, o economista e diplomata Roberto Campos estaria hoje com 100 anos. Relembre algumas de suas melhores frases sobre quanto o Estado estorva a vida de empresas e cidadãos, publicadas pelo Estadão:

O bem que o Estado pode fazer é limitado; o mal, infinito. O que ele pode nos dar é sempre menos do que nos pode tirar.

Nossa Constituição é uma mistura de dicionário de utopias e regulamentação minuciosa do efêmero.

Uma vez criada a entidade burocrática, ela, como a matéria de Lavoisier, jamais se destrói, apenas se transforma.

Continuamos a ser colônia, um país não de cidadãos, mas de súditos, passivamente submetidos às “autoridades” – a grande diferença, no fundo, é que antigamente a “autoridade” era Lisboa. Hoje, é Brasília.

Todo mundo sabe que o dinheiro do governo é gasto para sustentar universidades ruins e grátis, para classes médias que podem pagar. Nada melhor. Garante comícios das UNEs da vida, ótima preparação para futuros políticos analfabetos.

O doce exercício de xingar os americanos em nome do nacionalismo nos exime de pesquisar as causas do subdesenvolvimento e permite a qualquer imbecil arrancar aplausos em comícios.

Sou chamado a responder rotineiramente a duas perguntas. A primeira é “haverá saída para o Brasil?”. A segunda é “o que fazer?”. Respondo àquela dizendo que há três saídas: o aeroporto do Galeão, o de Cumbica e o liberalismo. A resposta à segunda pergunta é aprendermos de recentes experiências alheias.

O PT é um partido de trabalhadores que não trabalham, estudantes que não estudam e intelectuais que não pensam.

Nossas esquerdas não gostam dos pobres. Gostam mesmo é dos funcionários públicos. São estes que, gozando de estabilidade, fazem greves, votam no Lula, pagam contribuição para a CUT. Os pobres não fazem nada disso. São uns chatos.

É divertidíssima a esquizofrenia de nossos artistas e intelectuais de esquerda: admiram o socialismo de Fidel Castro, mas adoram também três coisas que só o capitalismo sabe dar – bons cachês em moeda forte, ausência de censura e consumismo burguês. São os filhos de Marx numa transa adúltera com a Coca-Cola.

Fui um bom profeta. Pelo menos, melhor que Marx. Ele previra o colapso do capitalismo; eu previ o contrário, o fracasso do socialismo.

Segundo Marx, para acabar com os males do mundo, bastava distribuir. Foi fatal. Os socialistas nunca mais entenderam a escassez.

sábado, 10 de março de 2018

SILHUETA


Não faz muito tempo os parentes de minha mulher resolveram fazer um encontro de confraternização, de reavivamento de laços familiares. Umas trinta pessoas, entre primos e primas, maridos e esposas estiveram reunidos em um salão de festas. Por serem pessoas super simpáticas, o (re)encontro foi ótimo. Fizeram até uma espécie de "amigo oculto" fora de época, ou melhor, um "parente oculto". Presentes foram trocados, muitos retratos tirados, ótimos bate-papos e, claro, tira-gostos e cerveja gelada (só faltou leite com Toddy, mas tudo OK).

Muito bem. A mim coube um presente delicadíssimo e totalmente inesperado, dado pela esposa de um dos primos de minha mulher: uma silhueta confeccionada com uma espécie de arame usado por dentistas ou coisa parecida e feita por um de seus tios, ortodontista aposentado. Para passar o tempo, resolveu construir verdadeiras esculturas bidimensionais, usando seus ferrinhos de dentista, alicates, motor e toda tralha que me deixa arrepiado só de pensar (tenho trauma!). E o resultado são obras lindíssimas e super expressivas que dá de presente aos amigos. Aí resolvi escanear a peça e divulgar aqui no velho Blogson. Olhaí.


segunda-feira, 5 de março de 2018

VISÃO DO PARAÍSO

Às vezes tenho vontade de me deitar em uma rede em uma varanda à beira-mar e ficar  em silêncio, apenas ouvindo bossa nova e sucessos americanos das décadas de 1920, 30 e 40. E nunca mais me levantar. Essa é minha visão do paraíso.

Não terei sede, não sentirei fome nem desejo de nada, apenas a vontade de ali permanecer para sempre.

Aos poucos minha pele irá adquirindo uma cor pálida e aspecto granulado, semelhante aos grãos de areia sobre mim depositados, trazidos pelos ventos do litoral.

E eu começarei lentamente a me desintegrar, a me transformar em moléculas, em átomos, em partículas sub-atômicas, em poeira cósmica, ouvindo Stardust.




quinta-feira, 1 de março de 2018

UM ESTRANGEIRO - "VERSÃO DO DIRETOR"


DE ONDE SURGIU ESSA MALUQUICE (MAKING OF)
Essa é uma história meio louca. Um dia, assim do nada, pensei na história do cara que começa a falar outra língua. Não tinha nada em mente, só achei graça da maluquice. Contei a um sobrinho a parte que tinha imaginado. Minha cunhada, ouvindo a conversa, riu e perguntou de onde eu tirava essas ideias, que isso era coisa de drogadicto e que eu deveria ter fumado “um cigarrinho do capeta”. Achei graça, falei que talvez fosse falta de leite com Toddy, etc.

À noite, fomos a um restaurante para comemorar o aniversário de um conhecido. Calhou de ficar perto do filho desse sujeito, menino com uns 18 anos. Comentei com ele sobre essa maluquice e ele ficou empolgadíssimo, querendo saber o final. Disse-lhe que não tinha final e que não sabia nada da história, que mandaria para ele quando soubesse.

Em termos práticos, estava mais interessado em escrever outra das "lamúrias" jotabélicas, sobre o quanto é mais interessante conversar com meus filhos e outros jovens como eles, traçando altos papos sobre cultura, música (rock), livros e lugares para onde viajaram recentemente (ao contrário de mim, que cago de medo, meus filhos gostam de viajar e conhecer outros países). Muito melhor que ficar escutando gente que só gosta de contar vantagem (muitas vezes inexistente), só fala de futebol, come carne mal passada e ouve música sertaneja (gente muito próxima, diga-se; ainda bem que essas características concentram-se apenas em duas ou três pessoas). O problema é que sou velho, sou pai, não posso sair com a turma nerd que eu curto. Então, sou como um ET que desceu na Terra.

Aí resolvi juntar tudo, fazendo referência a outra crônica que escrevi, aquela do Odorêncio, como se o narrador fosse o filho que mandou jogar as memórias do pai no lixo. A referência ao "príncipe russo" é real e foi-me contada pelo próprio, meu pai.

Depois disso, tive de resolver uma série de questões que a história levantou. Por exemplo, o “estrangeiro” descobriria ou não em que língua estava falando? Como ele iria fazer? Qual língua deveria ser a escolhida?

Nesse caso, o ideal é que não fosse do grupo das manjadas (inglês, francês, etc.). Por outro lado, se escolhesse russo, o Google Tradutor retornaria em alfabeto cirílico, que seria mole de identificar. Línguas asiáticas ficariam muito estranhas. Já no árabe e hebraico, se não me engano, a leitura se faz da direita para a esquerda. Aí pensei em uma língua periférica da Europa, e optei por polonês. E por aí vai.

Resumindo: a história é uma colcha de retalhos onde se misturam realidade um pouco alterada com ficção pura. Mas não sou tão hardcore como o personagem. Primeiro, porque eu minto muito bem quando estou em uma festa. Deixo o povo falar, puxo assunto, presto atenção, rio das piadas e falo mal de mim mesmo, o que é um sucesso infalível, pois ajo com o maior cinismo e cara dura . Por isso, a maioria me considera o “legal”, o “gentil”, o “atencioso”, o “simpático”. (ainda bem que nenhuma dessas pessoas lê o blog!).

Quando eu era mais jovem, era o rei das velhinhas e velhinhos. Não havia um ou uma que não me elogiasse, tal a atenção que dava a eles. O que ninguém desconfiava é que o piloto automático estava sempre ligado, comandando as expressões faciais e as interjeições (aprovação, espanto, raiva, etc.). Hoje, sou um deles, pois está cada vez mais difícil encontrar gente mais velha que eu (pelo menos em festas). Quem me vê, acredita que estou me divertindo muito. Na verdade estou mesmo, mas não da forma que todo mundo imagina (perdi agora 1,3 leitores, provavelmente, e o motivo é que esse blog está cada vez mais parecido com consultório de psicologia e confessionário de igreja: só tem confissão constrangedora).


Outro ponto digno de nota é que eu e minha mulher temos uma cumplicidade incrível. Além de ser o amor da minha vida, é hoje minha melhor amiga. Conversamos muito e estamos sempre juntos. E mesmo que o resultado obtido tenha qualidade literária semelhante à de panfletos de igreja evangélica, me diverti pra caramba enquanto o escrevia. Por isso, resolvi unir as três partes mais a explicação em um único post. É isso.


PRIMEIRA PARTE
Até hoje eu ainda não sei se estou acordado ou no meio de um pesadelo que teima em não acabar. Todos os dias eu me deito esperando que “amanhã” eu acorde como antes de tudo ter acontecido. A casa agora está mais silenciosa, como se ninguém quisesse me incomodar ou perturbar meu sono. Mas eu estou acordado! Ou, pelo menos, acredito estar.

Minha mulher não mais exibe sua antiga e despreocupada tagarelice. Quando nossos olhares se cruzam, percebo que além da permanente preocupação, exibe uma expressão discretamente ressentida, como se intimamente acreditasse que a culpa de tudo fosse minha. Nunca tentei lhe dizer, mas hoje percebo que ela pode ter razão. Quando alguém telefona, eu a vejo conversar em voz baixa, contida, como se não quisesse que eu ouvisse o que está dizendo, provavelmente alguma coisa a meu respeito, o que sempre me deixa constrangido.

Ninguém sabe o que aconteceu; há algumas explicações sensatas e plausíveis, mas nenhuma conclusiva - pelo menos -, não ainda Tudo o que posso fazer é deixar um relato detalhado desses momentos para que um leitor, no futuro, teça suas teorias e explicações. A mim, basta o registro dos fatos, tal como me lembro de terem acontecido.

Na véspera daqueles acontecimentos, estava entretido em registrar minhas lamúrias, tal como vinha fazendo já havia algum tempo. Sentia-me meio deprimido, com pensamentos negativos recorrentes e uma sensação estranha de solidão. Por isso, sentei-me à frente do computador e comecei. Lenta, quase cautelosamente, meus dedos indicadores começaram a pressionar as teclas do computador. Não sabia ainda o que iria digitar, apenas sabia sobre o que desejava escrever. Na tela do Word lia-se uma frase incompleta: “Às vezes me sinto como se fosse um marciano”.

Pensativo, fiquei olhando o monitor, observando o cursor que pulsava no final da palavra “marciano”, como se o sinal intermitente fosse um convite para continuar ou uma expectativa da próxima ação, fazendo-me lembrar do comportamento do nosso Scooby, que ficava balançando ritmadamente a cauda enquanto olhava fixamente para mim, sem saber se teria ou não a atenção que procurava. Velho Scooby!

Achei essa comparação muito bizarra e me lembrei de que meu pai também datilografava seus textos esquisitos usando apenas dois dedos. Visualizei o velho batucando uma Remington cor de cobre comprada em um leilão. Tenho notado que, mesmo que o criticasse na época, estou cada vez mais parecido com ele. Continuei.

Às vezes me sinto como se fosse um marciano que por uma infelicidade qualquer foi degredado para a Terra, pois, cada vez mais, tenho sentido um não pertencimento à comunidade onde vivo.

(Hoje eu sei que isso não é culpa de ninguém, é apenas um misto de solidão existencial, de recusa de alguns padrões sociais estabelecidos ou, sei lá, até mesmo de frescura.)

Creio que isso surgiu ainda na infância, quando era rejeitado ou sofria bullying de vizinhos e colegas de escola. Talvez por uma invencível timidez, tinha dificuldade em criar laços de amizade mais consistentes, duradouros. Esse pode ser o motivo de ter tido vários “melhores amigos” ao longo da vida. Quando qualquer um se afastava geograficamente ou pelo surgimento de interesses não comuns, a amizade se rompia definitivamente, como aconteceu com o noivo de uma conhecida. Depois de me casar e essa moça terminar o noivado, meu amigo resolveu mexer com drogas. A partir daí, eu não suportava quando ia nos visitar. Sentava-se no chão, tentava passar a imagem de descolado, de doidão, mas eu só queria saber de minha mulher e de nosso filho. Não tinha mais saco para papos cabeça.

(Creio que herdei a timidez de meu pai. Um dia, contou-me ter sido chamado na juventude de “príncipe russo” por algumas moças, que teriam confundido sua timidez paralisante com esnobismo e altivez)

Essa sensação de deslocamento foi acentuada progressivamente, depois que resolvi beber menos e mais espaçadamente. Percebi ou tive a sensação de que meus conhecidos e parentes olhavam-me cada vez mais com estranhamento e alguma ironia, como se eu fosse um desmancha-prazeres e estivesse traindo suas certezas, estragando sua diversão, pelo simples fato de permanecer sóbrio em um ambiente de gente bêbada. Pudera!, afinal, como conviver com alguém que não fuma, não bebe, não gosta de picanha mal passada, não assiste nem entende de futebol e, pecado maior, não gosta de jogar conversa fora sentado em um barzinho da moda ou com os cotovelos lustrando o balcão de um botequim copo sujo? Só um estrangeiro teria um comportamento tão fora da curva!

(O maior susto que já tomei foi ouvir de um senhor que ele e meu pai, colegas de serviço, cansaram de fazer serenatas na época em que, por necessidade, meu pai começou a trabalhar no interior, vindo para casa só nos fins de semana. Será possível que o velho Odorêncio tinha tantas cartas escondidas na manga? Talvez fosse mais estrangeiro que eu. Afinal, tinha sido um “príncipe russo”!. O que conteria aquela papelada que guardava em uma caixa de camisa? Seus textos sempre foram tão estranhos e indigestos que, quando morreu, mandei jogar tudo fora sem pensar duas vezes. Deveria ter lido aquelas folhas datilografadas! Talvez esse assunto das serenatas, tão escondido, tivesse sido ali narrado. Mas, ele era tão irascível, de tão difícil convivência!)

Hoje, aborrece-me conversar com pessoas de minha faixa etária, pois não tenho nenhum interesse em comentar sobre futebol, incomodam-me os relatos de conquistas financeiras, a permanente certeza de terem sempre razão, as pílulas douradas que nada mais são que placebos. Ninguém lê nada que não seja futebol, ninguém se interessa por alguma cultura. Prefiro conversar com gente jovem de mente aberta, particularmente com meus filhos, tão cultos e engraçados como inteligentes e equilibrados. Mas é aí que a solidão mais se manifesta, pois, por mais que eu queira, não pertenço a esse grupo, a essa turma, sou como um estrangeiro que não fala a língua do país onde está. A diferença de idade é a verdadeira barreira, talvez a principal causa do “choque de gerações”.

Estava empolgado com as palavras que fluíam sem muito esforço quando minha mulher me chamou. Lembrou-me que eu precisava tomar banho e me aprontar para o baile de formatura de um sobrinho, pois seria aquela festa...

Sem alternativa, desliguei o computador e fui me arrumar. Comentei com ela que estava pensando em ir de taxi, pois queria comemorar a formatura em alto estilo: pretendia tomar o último porre de minha vida. Ela me olhou com ironia e um pouco de incredulidade, mas nada disse. E fomos nos divertir, sem nunca sonhar com a mudança radical que logo aconteceria em nossas vidas.


SEGUNDA PARTE
Naquele dia, demorei-me um pouco mais na cama, pois estava sentindo os efeitos da bebedeira da noite anterior. Abri um dos olhos e tentei enxergar que horas eram. Não tinha nada especial para fazer, mas a manhã já ia longe.

Seguindo a rotina recomendada pelo cardiologista, sentei-me na beira da cama por alguns minutos – “para equilibrar a circulação sanguínea”, segundo ele. Calcei os chinelos e fui ao banheiro. Olhei-me no espelho e me assustei com meu reflexo. “Que cara amarrotada!”, pensei. “Você não devia ter bebido tanto assim!”. Olhando-me no espelho, em voz alta, repeti com fingida severidade:

- Nie powinien był tak pijany!

Espantei-me com o resmungo que saiu de minha boca, lavei o rosto, pigarreei, bebi um gole de água e repeti:

- Nie powinien był tak pijany!

Assustado, percebi que tinha empalidecido um pouco. “Que está acontecendo comigo?”, pensei, repetindo em voz alta:

-Co się ze mną dzieje?

Comecei a entrar em pânico e saí do banheiro chamando por minha mulher:

- Miłość!

Não era “Amor!” o que eu acabara de gritar. Aliás, eu não entendia nada do que saia de minha boca. Encontramo-nos no meio da casa, segurei-a pelos braços, completamente aterrorizado e lhe disse:

- Nie wiem, co się ze mną dzieje!
- Pára com isso, não vê que eu estou ocupada? Só pensa em brincar!

Tentei dizer que não estava brincando com ela:
- Nie gram z wami!

Corri até o escritório, peguei uma folha de papel e escrevi: “Leve-me ao hospital, pelo amor de Deus!”. No papel, em letras trêmulas estava escrito:
Zabierz mnie do szpitala, na litość boską!”

Com o coração latejando no pescoço e com os olhos arregalados, tentei de novo escrever: “Devo estar tendo um AVC, chame os meninos, chame um taxi!”
Mas na folha estava escrito “Muszę być udar zadzwonić chłopców, wezwać taksówkę!”

Minha mulher deu-se conta da gravidade da situação, chamou o SAMU, trocou rapidamente de roupa e pegou a carteira do convênio médico. Só quando chegamos ao hospital é que se lembrou de ligar para nossos filhos. E eu estava ali, ainda de pijama.

Fui atendido por cardiologista, neurologista, fonoaudiólogo e clínico geral, fui examinado, apalpado, revirado, medicado, fiz raio-X, ressonância magnética, tomografia, eletroencefalograma, exame de sangue, fiquei em observação, tomei soro na veia e tudo o mais que foi imaginado pela equipe médica. Sem sacanagem, só faltaram examinar minha próstata!

Como os resultados não indicaram nenhuma anormalidade, um geriatra aventou a possibilidade de estar tendo um surto de demência transitória. Mais alguns testes e nada. Resolveram que deveria voltar para casa, ficar em repouso e procurar a ajuda de um psicólogo.

A notícia se espalhou pela família e arredores. Recebi a visita de primos, sobrinhos, vizinhos, amigos, ex-colegas e dos filhos, que diariamente passavam por aqui, sempre com a esperança de que tudo tivesse voltado ao normal. Alguns falavam comigo em tom mais alto de voz, como se eu estivesse surdo. Os mais inoportunos pediam que eu falasse palavrões, o que acabei fazendo com prazer, pois mandava todo mundo tomar no cu com um sorriso de vingança na boca. Chamei de “corno”, “viado” e “puta” todos aqueles idiotas, falei que suas mães estavam na zona, fiz “discurso” e disse àqueles manés e piranhas todo tipo de safadezas e putarias que essa língua desconhecida me permitia dizer. Cheguei até a pensar em cobrar ingresso, de tanta aporrinhação e encheção de saco, mas me diverti pra caramba.

Os mais preocupados resolveram levar-me para fazer “tratamentos” alternativos. Como sou católico, a igreja do meu bairro foi minha primeira parada. Alguém até sugeriu que eu falava línguas estranhas. Fui abençoado e aspergido com água benta. Nada.

Um vizinho, pastor evangélico afirmando ter certeza que eu estava possuído por Satanás, rebocou-me até sua igreja, onde, segurando minha cabeça entre as mãos, começou a gritar:

- Sai, Satanás, eu te ordeno que saias, eu determino que abandones o corpo e a mente desse filho de Deus!

Sacudiu-me tanto que quase o mandei à puta que pariu. E só não fiz isso porque sabia que aquela maluquice aumentaria ainda mais.

Outros me disseram que eu estava com encosto e fui levado a centro espírita e terreiro de umbanda, cada vez mais puto, sempre rebocado por algum bem-intencionado. Tomei passes, banhos, bebi líquidos estranhos (energizados), tudo com resultado obviamente nulo.

Procuramos uma psicóloga conceituada e amiga da família que, depois de alguns testes e na impossibilidade de estabelecer um diálogo normal comigo, sugeriu que eu poderia estar sendo vítima de um surto psicótico, desencadeado talvez pelo porre homérico que tinha tomado ou por um quadro de depressão. Esclareceu que uma crise como essa pode ocorrer “em pessoas de personalidade sensível, que sempre foram tímidas e quietas”. Nesse caso, sugeria que eu consultasse um psiquiatra para iniciar um tratamento medicamentoso com antipsicóticos. 


TERCEIRA PARTE
Embora minha mulher tivesse ficado visivelmente apavorada com as palavras da amiga, fiquei na minha, pois me auto-encaixei no perfil de “pessoa sensível e tímida”, mesmo que minha timidez tivesse sido deixada no meio do caminho há muito tempo. Mas a definição era pertinente. Terminou a consulta dando uma boa sugestão: eu demonstrava entender o que era falado e conseguia ler jornais, revistas, livros escritos em português, sinal que continuava pensando nessa língua. Ao verbalizar ou escrever o que tentava dizer é que a algaravia e as garatujas não identificadas se manifestavam. Nesse caso, talvez fosse bom que eu e minha mulher aprendêssemos Libras, a língua dos sinais; eu, para me comunicar e ela, para me compreender. Aceitamos a sugestão, começamos a aprender e tivemos alguns resultados promissores, mesmo que paliativos. Isso também serviu para nos aproximar mais, para que prestássemos mais atenção um no outro. E ainda não tínhamos ido a um psiquiatra.

Mas a solução do enigma (ou sua definitiva falta) quem acabou descobrindo fui eu mesmo. Tive a ideia de escolher uma única palavra bem básica e escrevê-la num pedaço de papel, Pensei em “mulher”, mas o sinônimo poderia ser “fêmea”, como gostam de dizer algumas pessoas que conheço.

Da mesma forma, “homem” poderia significar “macho” (alguns, nem tanto assim). Pensei em “medo”, mas minha expressão verbal poderia transformar em “receio” ou “pavor”. Pensando dessa forma, acabei por escolher uma das palavras que deve estar no big bang da origem de todas as línguas, mesmo as mais antigas: escrevi no papel a palavra “mãe” e saiu “matka”. Joguei no Google Tradutor e pedi para identificar o idioma. Para minha surpresa, a língua que estava falando e escrevendo era polonês! Mas eu nunca estive na Polônia, nunca saí do Brasil e sou, ou melhor, era monoglota!

Não contei essa descoberta para ninguém. Aí escrevi no meu amigo tradutor Googa (já estou íntimo) a expressão “línguas estranhas”. De posse da tradução, copicolei no Google e saiu isso: “Glossolalia é um fenômeno de psiquiatria e de estudos da linguagem, em geral ligado a situações de fervor religioso, em que o indivíduo crê expressar-se em uma língua por ele desconhecida, por ele tida como de origem divina.” 

Como sou um católico meia-boca, não acreditei na sopinha de ter recebido o sopro do Espírito Santo. Além do mais, se fosse isso mesmo, eu deveria também ser capaz de me expressar em minha própria língua! Continuando a pesquisar, descobri que poderia estar apresentando outro “fenômeno da psiquiatria”, a Xenoglossia, um suposto fenômeno metapsíquico no qual uma pessoa seria capaz de falar idiomas que nunca aprendeu, como, por exemplo, uma pessoa começar a falar alemão fluentemente sem nunca ter aprendido alemão, ser alemão ou conviver com alemães”.

Ao ler a expressão “metapsíquico”, pensei logo em coisas esotéricas, curandeirismo, homeopatia. Além do mais, essa explicação era capenga, pois não previa o fato de alguém também escrever em outra língua.

Para encurtar a história, fomos a um psiquiatra, que diagnosticou que eu estou mesmo em surto psicótico, receitou-me uns remédios tarja preta pesados, daqueles mata-cavalo, que me deixam meio grogue, falando ainda mais enrolado. Mas até agora não voltei a me expressar na “última flor do Lácio”.

O que isso significa, eu não sei. Talvez vivamos em uma Matrix, talvez alguém, por engano, tenha “carregado” em minha mente o arquivo de língua polonesa, danificando ou provocando um conflito com o arquivo original. Mas não me queixo, pois essa situação delirante combina com o que vinha sentindo nos últimos tempos. Esse mistério eu ainda consegui solucionar. Mas não quero entregar o ouro para ninguém, senão algum cretino acabará por me chamar de “polonês”.

Nas festas e aniversários a que somos convidados, quando ouço alguém contando suas vantagens e realizações de Pinóquio, faço logo um comentário em voz alta, quando digo as barbaridades que quiser. O “rei” se assusta, os demais convidados riem e eu me divirto pra caramba. Se a festa tem churrasco e me oferecem picanha com aquela capa de gordura amarela, sangrando tanto que quase dá para ouvir ainda um mugido, mostro um pedaço de carvão que mantenho ao alcance da mão – é assim que eu gosto. Se começam a tocar música sertaneja, levanto-me e saio de perto.

Criei também um blog super-restrito, quase um cripto-blog, ao qual, no momento, só meus filhos tem acesso (pensando bem, nem precisava todo esse cuidado!) e onde este texto ficará alojado. Nele tenho colocado as bobagens que vinha escrevendo, resgatando e-mails e cartas antigas, pois não quero cometer o mesmo erro do velho Odorêncio.

Você, meu caro leitor do futuro, deve estar se perguntando como está lendo este texto em português. Eu poderia encerrar agora com uma frase reflexiva, que te fizesse pensar que “há mais coisas entre o céu e a terra que supõe nossa vã filosofia”, mas penso que devo esclarecer esse último mistério: eu escrevo direto no computador - e sai polonês.Copio e colo no Google Tradutor. Lanço a tradução para português no Word, passo o revisor de ortografia, faço uma revisão geral e – Voilà! – estou com o texto do jeito que quero, na língua que abandonei.

Só sei que não estranharei tanto se permanecer definitivamente assim. Afinal, se sempre me senti um pouco estrangeiro, agora posso dizer que sou mesmo um. E isso não parece tão ruim.


A COMPLICADA ARTE DE VER - RUBEM ALVES

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