sábado, 31 de março de 2018

LEMBRANDO SEU NECA



Uma das amigas de minha mulher me incluiu em um grupo fechado do Facebook que reúne um pessoal fissurado em fotos antigas. Não causa, portanto, nenhum espanto que o nome de um grupo com 18.516 membros seja  "Fotos Antigas de Belo Horizonte".

Uma das fotos postadas recentemente mostra o Viaduto de Santa Tereza ainda em construção. Claro que eu me empolguei com essa imagem de um "senhor" prestes a completar 90 anos, pois o viaduto foi inaugurado em 1929. Mas por que essa foto mexeu tanto comigo? Bom, além de ser o principal acesso ao bairro onde moro, de ter sido citado por Carlos Drummond de Andrade e Fernando Sabino em suas obras e ser um dos cartões postais mais manjados de BH, está o fato de meu sogro ter trabalhado em sua construção. Por isso, resolvi postar os poucos casos que me lembro de tê-lo ouvido contar sobre isso.

"Seu Neca" ou apenas "Neca" nasceu em 1910 e era o mais velho de dez irmãos, filhos de um português severo e patriarcal. A mãe era filha de espanhóis. Meu sogro deve ter sido louro na juventude, pois era um pouco avermelhado e tinha os olhos absurdamente azuis. Possuía traços fisionômicos muito bonitos e bem definidos, herdados pela maioria dos nove filhos que teve. Mas voltemos a seu pai "d'além mar".

O velho português exigia que todos os filhos estivessem à mesa na hora do almoço.Com os pais sentados nas cabeceiras, assentavam-se por ordem de idade. Quando um filho mais despreocupado atrasava-se um pouco, era repreendido pelo pai: "Não tens relógio? Dar-te-ei um!" Tendo trabalhado como um mouro (para ficar conectado à Península Ibérica), deixou um imóvel para cada um dos nove filhos (uma das duas filhas morreu na juventude). A escolha também foi feita respeitando-se a ordem de nascimento.

Muito bem. Quando o Viaduto de Santa Tereza começou a ser construído, Seu Neca devia ter dezessete ou dezoito anos e empregou-se como motorista na empresa construtora. Provavelmente deve ter sido seu primeiro emprego. Segundo me contou, para o transporte do concreto a ser lançado na obra eram utilizados dois caminhões. A usina ficava em uma das margens do Arrudas, ribeirão que seria transposto pelo viaduto. E meu sogro era o motorista dos dois veículos. Como a distância era curta, enquanto um caminhão estava sendo carregado com a massa de concreto, ele conduzia o outro até o local onde seria descarregado. E ficava nesse vai e vem o dia todo.

O curioso nessa história é que o cimento utilizado na construção era importado e vinha em barricas de madeira, cada uma pesando 60 quilos. Outra curiosidade que contou, sujeita a confirmação in loco, é a divergência entre o estabelecido no projeto estrutural e o que foi realmente executado. Segundo ele, o cálculo estrutural foi realizado "pelo escritório do Dr. Emílio Baumgart" que, por qualquer motivo, atrasou a entrega dos projetos de alguns detalhes construtivos. Assim, quando os desenhos chegaram, descobriu-se que  o viaduto deveria ter duas juntas de dilatação. Mas a obra estava andando muito bem, bem até demais, pois um dos locais previstos para a construção da junta já estava concretado e pronto. Assim, o viaduto ficou só com uma junta de dilatação, .

Tão logo os arcos ficaram prontos era usual fazer apostas para ver quem os escalava e atravessava mais rápido. O perdedor pagava a cerveja. A queda dos trechos mais altos (14 metros de altura em relação ao pavimento) certamente seria fatal, mas graças à pouca idade, bom preparo físico, muita impulsividade e falta de juízo, Seu Neca teria ganhado muitas apostas, sempre convertidas em cerveja. Imagino ter sido ele e seus colegas os precursores dessa maluquice, depois repetida pelo Drummond, Fernando Sabino e outros doidos mansos.

Meu sogro morreu em 1980 e o viaduto - um dos cartões postais mais manjados de BH - continua servindo de cenário para retratos de noivas, filmagens, fotos artísticas e, claro, como meio de acesso ao bairro boêmio onde moro.















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