quinta-feira, 1 de março de 2018

UM ESTRANGEIRO - "VERSÃO DO DIRETOR"


DE ONDE SURGIU ESSA MALUQUICE (MAKING OF)
Essa é uma história meio louca. Um dia, assim do nada, pensei na história do cara que começa a falar outra língua. Não tinha nada em mente, só achei graça da maluquice. Contei a um sobrinho a parte que tinha imaginado. Minha cunhada, ouvindo a conversa, riu e perguntou de onde eu tirava essas ideias, que isso era coisa de drogadicto e que eu deveria ter fumado “um cigarrinho do capeta”. Achei graça, falei que talvez fosse falta de leite com Toddy, etc.

À noite, fomos a um restaurante para comemorar o aniversário de um conhecido. Calhou de ficar perto do filho desse sujeito, menino com uns 18 anos. Comentei com ele sobre essa maluquice e ele ficou empolgadíssimo, querendo saber o final. Disse-lhe que não tinha final e que não sabia nada da história, que mandaria para ele quando soubesse.

Em termos práticos, estava mais interessado em escrever outra das "lamúrias" jotabélicas, sobre o quanto é mais interessante conversar com meus filhos e outros jovens como eles, traçando altos papos sobre cultura, música (rock), livros e lugares para onde viajaram recentemente (ao contrário de mim, que cago de medo, meus filhos gostam de viajar e conhecer outros países). Muito melhor que ficar escutando gente que só gosta de contar vantagem (muitas vezes inexistente), só fala de futebol, come carne mal passada e ouve música sertaneja (gente muito próxima, diga-se; ainda bem que essas características concentram-se apenas em duas ou três pessoas). O problema é que sou velho, sou pai, não posso sair com a turma nerd que eu curto. Então, sou como um ET que desceu na Terra.

Aí resolvi juntar tudo, fazendo referência a outra crônica que escrevi, aquela do Odorêncio, como se o narrador fosse o filho que mandou jogar as memórias do pai no lixo. A referência ao "príncipe russo" é real e foi-me contada pelo próprio, meu pai.

Depois disso, tive de resolver uma série de questões que a história levantou. Por exemplo, o “estrangeiro” descobriria ou não em que língua estava falando? Como ele iria fazer? Qual língua deveria ser a escolhida?

Nesse caso, o ideal é que não fosse do grupo das manjadas (inglês, francês, etc.). Por outro lado, se escolhesse russo, o Google Tradutor retornaria em alfabeto cirílico, que seria mole de identificar. Línguas asiáticas ficariam muito estranhas. Já no árabe e hebraico, se não me engano, a leitura se faz da direita para a esquerda. Aí pensei em uma língua periférica da Europa, e optei por polonês. E por aí vai.

Resumindo: a história é uma colcha de retalhos onde se misturam realidade um pouco alterada com ficção pura. Mas não sou tão hardcore como o personagem. Primeiro, porque eu minto muito bem quando estou em uma festa. Deixo o povo falar, puxo assunto, presto atenção, rio das piadas e falo mal de mim mesmo, o que é um sucesso infalível, pois ajo com o maior cinismo e cara dura . Por isso, a maioria me considera o “legal”, o “gentil”, o “atencioso”, o “simpático”. (ainda bem que nenhuma dessas pessoas lê o blog!).

Quando eu era mais jovem, era o rei das velhinhas e velhinhos. Não havia um ou uma que não me elogiasse, tal a atenção que dava a eles. O que ninguém desconfiava é que o piloto automático estava sempre ligado, comandando as expressões faciais e as interjeições (aprovação, espanto, raiva, etc.). Hoje, sou um deles, pois está cada vez mais difícil encontrar gente mais velha que eu (pelo menos em festas). Quem me vê, acredita que estou me divertindo muito. Na verdade estou mesmo, mas não da forma que todo mundo imagina (perdi agora 1,3 leitores, provavelmente, e o motivo é que esse blog está cada vez mais parecido com consultório de psicologia e confessionário de igreja: só tem confissão constrangedora).


Outro ponto digno de nota é que eu e minha mulher temos uma cumplicidade incrível. Além de ser o amor da minha vida, é hoje minha melhor amiga. Conversamos muito e estamos sempre juntos. E mesmo que o resultado obtido tenha qualidade literária semelhante à de panfletos de igreja evangélica, me diverti pra caramba enquanto o escrevia. Por isso, resolvi unir as três partes mais a explicação em um único post. É isso.


PRIMEIRA PARTE
Até hoje eu ainda não sei se estou acordado ou no meio de um pesadelo que teima em não acabar. Todos os dias eu me deito esperando que “amanhã” eu acorde como antes de tudo ter acontecido. A casa agora está mais silenciosa, como se ninguém quisesse me incomodar ou perturbar meu sono. Mas eu estou acordado! Ou, pelo menos, acredito estar.

Minha mulher não mais exibe sua antiga e despreocupada tagarelice. Quando nossos olhares se cruzam, percebo que além da permanente preocupação, exibe uma expressão discretamente ressentida, como se intimamente acreditasse que a culpa de tudo fosse minha. Nunca tentei lhe dizer, mas hoje percebo que ela pode ter razão. Quando alguém telefona, eu a vejo conversar em voz baixa, contida, como se não quisesse que eu ouvisse o que está dizendo, provavelmente alguma coisa a meu respeito, o que sempre me deixa constrangido.

Ninguém sabe o que aconteceu; há algumas explicações sensatas e plausíveis, mas nenhuma conclusiva - pelo menos -, não ainda Tudo o que posso fazer é deixar um relato detalhado desses momentos para que um leitor, no futuro, teça suas teorias e explicações. A mim, basta o registro dos fatos, tal como me lembro de terem acontecido.

Na véspera daqueles acontecimentos, estava entretido em registrar minhas lamúrias, tal como vinha fazendo já havia algum tempo. Sentia-me meio deprimido, com pensamentos negativos recorrentes e uma sensação estranha de solidão. Por isso, sentei-me à frente do computador e comecei. Lenta, quase cautelosamente, meus dedos indicadores começaram a pressionar as teclas do computador. Não sabia ainda o que iria digitar, apenas sabia sobre o que desejava escrever. Na tela do Word lia-se uma frase incompleta: “Às vezes me sinto como se fosse um marciano”.

Pensativo, fiquei olhando o monitor, observando o cursor que pulsava no final da palavra “marciano”, como se o sinal intermitente fosse um convite para continuar ou uma expectativa da próxima ação, fazendo-me lembrar do comportamento do nosso Scooby, que ficava balançando ritmadamente a cauda enquanto olhava fixamente para mim, sem saber se teria ou não a atenção que procurava. Velho Scooby!

Achei essa comparação muito bizarra e me lembrei de que meu pai também datilografava seus textos esquisitos usando apenas dois dedos. Visualizei o velho batucando uma Remington cor de cobre comprada em um leilão. Tenho notado que, mesmo que o criticasse na época, estou cada vez mais parecido com ele. Continuei.

Às vezes me sinto como se fosse um marciano que por uma infelicidade qualquer foi degredado para a Terra, pois, cada vez mais, tenho sentido um não pertencimento à comunidade onde vivo.

(Hoje eu sei que isso não é culpa de ninguém, é apenas um misto de solidão existencial, de recusa de alguns padrões sociais estabelecidos ou, sei lá, até mesmo de frescura.)

Creio que isso surgiu ainda na infância, quando era rejeitado ou sofria bullying de vizinhos e colegas de escola. Talvez por uma invencível timidez, tinha dificuldade em criar laços de amizade mais consistentes, duradouros. Esse pode ser o motivo de ter tido vários “melhores amigos” ao longo da vida. Quando qualquer um se afastava geograficamente ou pelo surgimento de interesses não comuns, a amizade se rompia definitivamente, como aconteceu com o noivo de uma conhecida. Depois de me casar e essa moça terminar o noivado, meu amigo resolveu mexer com drogas. A partir daí, eu não suportava quando ia nos visitar. Sentava-se no chão, tentava passar a imagem de descolado, de doidão, mas eu só queria saber de minha mulher e de nosso filho. Não tinha mais saco para papos cabeça.

(Creio que herdei a timidez de meu pai. Um dia, contou-me ter sido chamado na juventude de “príncipe russo” por algumas moças, que teriam confundido sua timidez paralisante com esnobismo e altivez)

Essa sensação de deslocamento foi acentuada progressivamente, depois que resolvi beber menos e mais espaçadamente. Percebi ou tive a sensação de que meus conhecidos e parentes olhavam-me cada vez mais com estranhamento e alguma ironia, como se eu fosse um desmancha-prazeres e estivesse traindo suas certezas, estragando sua diversão, pelo simples fato de permanecer sóbrio em um ambiente de gente bêbada. Pudera!, afinal, como conviver com alguém que não fuma, não bebe, não gosta de picanha mal passada, não assiste nem entende de futebol e, pecado maior, não gosta de jogar conversa fora sentado em um barzinho da moda ou com os cotovelos lustrando o balcão de um botequim copo sujo? Só um estrangeiro teria um comportamento tão fora da curva!

(O maior susto que já tomei foi ouvir de um senhor que ele e meu pai, colegas de serviço, cansaram de fazer serenatas na época em que, por necessidade, meu pai começou a trabalhar no interior, vindo para casa só nos fins de semana. Será possível que o velho Odorêncio tinha tantas cartas escondidas na manga? Talvez fosse mais estrangeiro que eu. Afinal, tinha sido um “príncipe russo”!. O que conteria aquela papelada que guardava em uma caixa de camisa? Seus textos sempre foram tão estranhos e indigestos que, quando morreu, mandei jogar tudo fora sem pensar duas vezes. Deveria ter lido aquelas folhas datilografadas! Talvez esse assunto das serenatas, tão escondido, tivesse sido ali narrado. Mas, ele era tão irascível, de tão difícil convivência!)

Hoje, aborrece-me conversar com pessoas de minha faixa etária, pois não tenho nenhum interesse em comentar sobre futebol, incomodam-me os relatos de conquistas financeiras, a permanente certeza de terem sempre razão, as pílulas douradas que nada mais são que placebos. Ninguém lê nada que não seja futebol, ninguém se interessa por alguma cultura. Prefiro conversar com gente jovem de mente aberta, particularmente com meus filhos, tão cultos e engraçados como inteligentes e equilibrados. Mas é aí que a solidão mais se manifesta, pois, por mais que eu queira, não pertenço a esse grupo, a essa turma, sou como um estrangeiro que não fala a língua do país onde está. A diferença de idade é a verdadeira barreira, talvez a principal causa do “choque de gerações”.

Estava empolgado com as palavras que fluíam sem muito esforço quando minha mulher me chamou. Lembrou-me que eu precisava tomar banho e me aprontar para o baile de formatura de um sobrinho, pois seria aquela festa...

Sem alternativa, desliguei o computador e fui me arrumar. Comentei com ela que estava pensando em ir de taxi, pois queria comemorar a formatura em alto estilo: pretendia tomar o último porre de minha vida. Ela me olhou com ironia e um pouco de incredulidade, mas nada disse. E fomos nos divertir, sem nunca sonhar com a mudança radical que logo aconteceria em nossas vidas.


SEGUNDA PARTE
Naquele dia, demorei-me um pouco mais na cama, pois estava sentindo os efeitos da bebedeira da noite anterior. Abri um dos olhos e tentei enxergar que horas eram. Não tinha nada especial para fazer, mas a manhã já ia longe.

Seguindo a rotina recomendada pelo cardiologista, sentei-me na beira da cama por alguns minutos – “para equilibrar a circulação sanguínea”, segundo ele. Calcei os chinelos e fui ao banheiro. Olhei-me no espelho e me assustei com meu reflexo. “Que cara amarrotada!”, pensei. “Você não devia ter bebido tanto assim!”. Olhando-me no espelho, em voz alta, repeti com fingida severidade:

- Nie powinien był tak pijany!

Espantei-me com o resmungo que saiu de minha boca, lavei o rosto, pigarreei, bebi um gole de água e repeti:

- Nie powinien był tak pijany!

Assustado, percebi que tinha empalidecido um pouco. “Que está acontecendo comigo?”, pensei, repetindo em voz alta:

-Co się ze mną dzieje?

Comecei a entrar em pânico e saí do banheiro chamando por minha mulher:

- Miłość!

Não era “Amor!” o que eu acabara de gritar. Aliás, eu não entendia nada do que saia de minha boca. Encontramo-nos no meio da casa, segurei-a pelos braços, completamente aterrorizado e lhe disse:

- Nie wiem, co się ze mną dzieje!
- Pára com isso, não vê que eu estou ocupada? Só pensa em brincar!

Tentei dizer que não estava brincando com ela:
- Nie gram z wami!

Corri até o escritório, peguei uma folha de papel e escrevi: “Leve-me ao hospital, pelo amor de Deus!”. No papel, em letras trêmulas estava escrito:
Zabierz mnie do szpitala, na litość boską!”

Com o coração latejando no pescoço e com os olhos arregalados, tentei de novo escrever: “Devo estar tendo um AVC, chame os meninos, chame um taxi!”
Mas na folha estava escrito “Muszę być udar zadzwonić chłopców, wezwać taksówkę!”

Minha mulher deu-se conta da gravidade da situação, chamou o SAMU, trocou rapidamente de roupa e pegou a carteira do convênio médico. Só quando chegamos ao hospital é que se lembrou de ligar para nossos filhos. E eu estava ali, ainda de pijama.

Fui atendido por cardiologista, neurologista, fonoaudiólogo e clínico geral, fui examinado, apalpado, revirado, medicado, fiz raio-X, ressonância magnética, tomografia, eletroencefalograma, exame de sangue, fiquei em observação, tomei soro na veia e tudo o mais que foi imaginado pela equipe médica. Sem sacanagem, só faltaram examinar minha próstata!

Como os resultados não indicaram nenhuma anormalidade, um geriatra aventou a possibilidade de estar tendo um surto de demência transitória. Mais alguns testes e nada. Resolveram que deveria voltar para casa, ficar em repouso e procurar a ajuda de um psicólogo.

A notícia se espalhou pela família e arredores. Recebi a visita de primos, sobrinhos, vizinhos, amigos, ex-colegas e dos filhos, que diariamente passavam por aqui, sempre com a esperança de que tudo tivesse voltado ao normal. Alguns falavam comigo em tom mais alto de voz, como se eu estivesse surdo. Os mais inoportunos pediam que eu falasse palavrões, o que acabei fazendo com prazer, pois mandava todo mundo tomar no cu com um sorriso de vingança na boca. Chamei de “corno”, “viado” e “puta” todos aqueles idiotas, falei que suas mães estavam na zona, fiz “discurso” e disse àqueles manés e piranhas todo tipo de safadezas e putarias que essa língua desconhecida me permitia dizer. Cheguei até a pensar em cobrar ingresso, de tanta aporrinhação e encheção de saco, mas me diverti pra caramba.

Os mais preocupados resolveram levar-me para fazer “tratamentos” alternativos. Como sou católico, a igreja do meu bairro foi minha primeira parada. Alguém até sugeriu que eu falava línguas estranhas. Fui abençoado e aspergido com água benta. Nada.

Um vizinho, pastor evangélico afirmando ter certeza que eu estava possuído por Satanás, rebocou-me até sua igreja, onde, segurando minha cabeça entre as mãos, começou a gritar:

- Sai, Satanás, eu te ordeno que saias, eu determino que abandones o corpo e a mente desse filho de Deus!

Sacudiu-me tanto que quase o mandei à puta que pariu. E só não fiz isso porque sabia que aquela maluquice aumentaria ainda mais.

Outros me disseram que eu estava com encosto e fui levado a centro espírita e terreiro de umbanda, cada vez mais puto, sempre rebocado por algum bem-intencionado. Tomei passes, banhos, bebi líquidos estranhos (energizados), tudo com resultado obviamente nulo.

Procuramos uma psicóloga conceituada e amiga da família que, depois de alguns testes e na impossibilidade de estabelecer um diálogo normal comigo, sugeriu que eu poderia estar sendo vítima de um surto psicótico, desencadeado talvez pelo porre homérico que tinha tomado ou por um quadro de depressão. Esclareceu que uma crise como essa pode ocorrer “em pessoas de personalidade sensível, que sempre foram tímidas e quietas”. Nesse caso, sugeria que eu consultasse um psiquiatra para iniciar um tratamento medicamentoso com antipsicóticos. 


TERCEIRA PARTE
Embora minha mulher tivesse ficado visivelmente apavorada com as palavras da amiga, fiquei na minha, pois me auto-encaixei no perfil de “pessoa sensível e tímida”, mesmo que minha timidez tivesse sido deixada no meio do caminho há muito tempo. Mas a definição era pertinente. Terminou a consulta dando uma boa sugestão: eu demonstrava entender o que era falado e conseguia ler jornais, revistas, livros escritos em português, sinal que continuava pensando nessa língua. Ao verbalizar ou escrever o que tentava dizer é que a algaravia e as garatujas não identificadas se manifestavam. Nesse caso, talvez fosse bom que eu e minha mulher aprendêssemos Libras, a língua dos sinais; eu, para me comunicar e ela, para me compreender. Aceitamos a sugestão, começamos a aprender e tivemos alguns resultados promissores, mesmo que paliativos. Isso também serviu para nos aproximar mais, para que prestássemos mais atenção um no outro. E ainda não tínhamos ido a um psiquiatra.

Mas a solução do enigma (ou sua definitiva falta) quem acabou descobrindo fui eu mesmo. Tive a ideia de escolher uma única palavra bem básica e escrevê-la num pedaço de papel, Pensei em “mulher”, mas o sinônimo poderia ser “fêmea”, como gostam de dizer algumas pessoas que conheço.

Da mesma forma, “homem” poderia significar “macho” (alguns, nem tanto assim). Pensei em “medo”, mas minha expressão verbal poderia transformar em “receio” ou “pavor”. Pensando dessa forma, acabei por escolher uma das palavras que deve estar no big bang da origem de todas as línguas, mesmo as mais antigas: escrevi no papel a palavra “mãe” e saiu “matka”. Joguei no Google Tradutor e pedi para identificar o idioma. Para minha surpresa, a língua que estava falando e escrevendo era polonês! Mas eu nunca estive na Polônia, nunca saí do Brasil e sou, ou melhor, era monoglota!

Não contei essa descoberta para ninguém. Aí escrevi no meu amigo tradutor Googa (já estou íntimo) a expressão “línguas estranhas”. De posse da tradução, copicolei no Google e saiu isso: “Glossolalia é um fenômeno de psiquiatria e de estudos da linguagem, em geral ligado a situações de fervor religioso, em que o indivíduo crê expressar-se em uma língua por ele desconhecida, por ele tida como de origem divina.” 

Como sou um católico meia-boca, não acreditei na sopinha de ter recebido o sopro do Espírito Santo. Além do mais, se fosse isso mesmo, eu deveria também ser capaz de me expressar em minha própria língua! Continuando a pesquisar, descobri que poderia estar apresentando outro “fenômeno da psiquiatria”, a Xenoglossia, um suposto fenômeno metapsíquico no qual uma pessoa seria capaz de falar idiomas que nunca aprendeu, como, por exemplo, uma pessoa começar a falar alemão fluentemente sem nunca ter aprendido alemão, ser alemão ou conviver com alemães”.

Ao ler a expressão “metapsíquico”, pensei logo em coisas esotéricas, curandeirismo, homeopatia. Além do mais, essa explicação era capenga, pois não previa o fato de alguém também escrever em outra língua.

Para encurtar a história, fomos a um psiquiatra, que diagnosticou que eu estou mesmo em surto psicótico, receitou-me uns remédios tarja preta pesados, daqueles mata-cavalo, que me deixam meio grogue, falando ainda mais enrolado. Mas até agora não voltei a me expressar na “última flor do Lácio”.

O que isso significa, eu não sei. Talvez vivamos em uma Matrix, talvez alguém, por engano, tenha “carregado” em minha mente o arquivo de língua polonesa, danificando ou provocando um conflito com o arquivo original. Mas não me queixo, pois essa situação delirante combina com o que vinha sentindo nos últimos tempos. Esse mistério eu ainda consegui solucionar. Mas não quero entregar o ouro para ninguém, senão algum cretino acabará por me chamar de “polonês”.

Nas festas e aniversários a que somos convidados, quando ouço alguém contando suas vantagens e realizações de Pinóquio, faço logo um comentário em voz alta, quando digo as barbaridades que quiser. O “rei” se assusta, os demais convidados riem e eu me divirto pra caramba. Se a festa tem churrasco e me oferecem picanha com aquela capa de gordura amarela, sangrando tanto que quase dá para ouvir ainda um mugido, mostro um pedaço de carvão que mantenho ao alcance da mão – é assim que eu gosto. Se começam a tocar música sertaneja, levanto-me e saio de perto.

Criei também um blog super-restrito, quase um cripto-blog, ao qual, no momento, só meus filhos tem acesso (pensando bem, nem precisava todo esse cuidado!) e onde este texto ficará alojado. Nele tenho colocado as bobagens que vinha escrevendo, resgatando e-mails e cartas antigas, pois não quero cometer o mesmo erro do velho Odorêncio.

Você, meu caro leitor do futuro, deve estar se perguntando como está lendo este texto em português. Eu poderia encerrar agora com uma frase reflexiva, que te fizesse pensar que “há mais coisas entre o céu e a terra que supõe nossa vã filosofia”, mas penso que devo esclarecer esse último mistério: eu escrevo direto no computador - e sai polonês.Copio e colo no Google Tradutor. Lanço a tradução para português no Word, passo o revisor de ortografia, faço uma revisão geral e – Voilà! – estou com o texto do jeito que quero, na língua que abandonei.

Só sei que não estranharei tanto se permanecer definitivamente assim. Afinal, se sempre me senti um pouco estrangeiro, agora posso dizer que sou mesmo um. E isso não parece tão ruim.


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