sexta-feira, 17 de junho de 2016

VOSSA SENHORIA

A primeira construtora onde trabalhei era uma empresa excelente. Bem organizada, moderna e extremamente ética, não participava em nenhuma hipótese de acordos, arranjos, mutretas, mensalinhos, mensalões e todo tipo de sacanagem que existe na área da construção civil. Talvez por isso, nunca conseguiu deixar de ser uma empresa de porte apenas médio.

Mas, apesar de adotar práticas modernas de gestão, tinha uma esquisitice: todos os engenheiros e estudantes de engenharia eram indistintamente tratados por “doutor”, enquanto os demais profissionais de nível universitário (psicólogos, administradores, contadores e economistas) tinham de se contentar em ser chamados de “senhor”.

Lembrei-me disso hoje, enquanto assistia na Globo News os debates da Comissão do Senado que trata do impeachment da Dilma. Em alguns momentos os ânimos se exaltam tanto que os senadores lembram mais crianças brigando e fazendo birra no jardim de infância. E tome réplica, tréplica, “questão de ordem” e “pela ordem”.  Aliás, nem sei qual a diferença sutil entre questão de ordem” e “pela ordem”. Para mim, "Questão de Ordem" é só uma música da fase tropicalista do Gilberto Gil.

Mas o mais bacana é o uso abusivo e obrigatório do tratamento “Vossa Excelência”, quando alguém dirige-se a um senador (ou deputado). E isso vale até quando um político dirige-se protocolarmente a outro - mesmo quando a educação, respeito e polidez já foram para o ralo há muito tempo. Imagino que se a temperatura subir mais um pouco, ainda poderei ter a sorte de ouvir uma frase assim: -“Vossa Excelência é corno!” ou -“Vossa Excelência é um filho da puta!"

Isso me faz lembrar um poema do Fernando Pessoa, onde ele diz:
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?


Quando uma testemunha é inquirida, uma mágica acontece: o tratamento dado a essa pessoa é “Vossa Senhoria”, mesmo que ela eventualmente possa ser mais brilhante e inteligente que todos eles somados. Se o Stephen Hawking - considerado a mente mais poderosa da atualidade - fosse a uma dessas reuniões, fatalmente seria tratado por “Vossa Senhoria” por um daqueles manés que posam de fodões.

Acho essa "liturgia" uma falsa e anacrônica etiqueta. O pior é que embute a falácia de que os "excelentes" estão acima do resto dos mortais, seus eleitores. E mais: esses "príncipes" podem chegar até a pensar que se são eles que legislam, que fazem leis, estão então acima delas, pois o criador é maior que a criatura. Tudo bem, reconheço que isso é só um delírio meu (a seco), mas que me deixa perplexo, deixa.


A distância que separava na antiga construtora o “Doutor” do "Senhor” é a mesma que separa no Congresso “Sua Excelência” de “Sua Senhoria”, Ou seja, nenhuma, exceto pela presunção e pretensão de ser, parecer ou querer ser melhor que o resto da população. O político pode ser corrupto, pode ser mau-caráter, pode ser mafioso, criminoso, analfabeto, réu em algum processo ou qualquer outra coisa, mas é sempre “Excelência”. Por isso, acho que as “Senhorias”, em coro, deveriam exclamar -“Vossa Excelência” é a puta que pariu!

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