sexta-feira, 10 de junho de 2016

AS FILHAS DE JULIETA (E FRANCISCO) - 03

Em 30/07/1929 nasceu tia Dalva. Era genuinamente simpática e risonha. Dito isso, percebo que os irmãos e irmãs de minha mãe sempre foram bem humorados. Levavam uma vida dura, mas tinham uma "pobreza abençoada", conforme disse meu tio mais novo. Não eram necessariamente engraçados ou piadistas, apenas bem humorados, risonhos, solares.


Tia Dalva trabalhou a vida toda em um cartório de registro de notas. Não sei em qual função, só sei que escrevia à mão em livrões de capa dura, que às vezes levava para casa, talvez para dar conta do trabalho. Não sei como é hoje, mas o que ela fazia era uma coisa meio pré-histórica. Nem imagino quantas canetas tinteiro deve ter sucateado nessa atividade. Supondo trinta anos de serviço, onze meses por ano, vinte dias por mês, cinco horas por dia (já dei um refresco para os pit-stop), terão sido mais de trinta mil horas escrevinhando! Se não teve tendinite, só por milagre!

Quando eu tinha uns sete anos, Tia Dalva começou a namorar o Osíris, o amor de sua vida. Esse "tio" era irmão de uma colega de trabalho, que o apresentou. Boa aparência, cabelos muito crespos já sinalizando a futura calvície, olhos azuis, voz de locutor, elegante e cara de comedor, o que realmente era. Tinha um QE (quociente emocional) altíssimo, pois qualquer pessoa que se aproximasse dele não demorava a virar seu amigo e fã - ou presa. Com essas características, é óbvio que Tia Dalva logo se derreteria por ele.

E ele tinha a manha do envolvimento e da empatia, pois bem no início do namoro levou para mim e para meu irmão dois álbuns da "Dama e o Vagabundo" e uma porrada de pacotes de figurinha.  De cara, já ganhou nossa simpatia e de minha mãe. Todos os dias em que ia à casa de minha avó trazia mais figurinhas. E os álbuns foram sendo preenchidos até chegar ao maior impasse, insolúvel até hoje: a única figurinha que faltou para meu irmão completar a coleção está colada no meu álbum e a que falta para mim está colada no dele. O motivo de usar o presente dos verbos é o fato de ter guardado até hoje esse presente recebido em 1958 (sua data de lançamento, segundo a internet). Olhaí a capa do álbum:


O casamento de Tia Dalva foi um dos dois em que houve uma "recepção" em casa. O outro foi o de minha tia mais nova. Não sei qual foi a primeira a se casar, só sei que a casa ficava cheia de gente e com algumas primas de minha mãe particularmente inconvenientes. Lembro-me também da confecção de docinhos em um dos casamentos, alguns deles delicadamente colocados em uma conchinha. O detalhe suburbano dessa decoração é que as conchas foram confeccionadas com as tampinhas de alumínio que vinham nas garrafas de leite. Depois de limpas e higienizadas, foram laboriosamente moldadas com uma colher de sopa e frisadas com algum coisa pontuda para dar aquele aspecto ranhurado que algumas conchas verdadeiras apresentam. Muito "chique"!



Quando meus tios se casaram, estavam completamente sem dinheiro. Por isso, a lua de mel foi passada em Lagoa Santa, na casa de campo da sogra de minha Tia Ci, um casarão às margens da lagoa. Aí já viu, né? Lagoa tem peixe, peixe se pesca com vara, etc. O Osíris comentou comigo que nunca esteve tão duro como na época do casamento. Por isso, sem dinheiro para passear nem nada, eles pescavam de manhã, à tarde e à noite. Tenho quase certeza de que minha tia nunca foi tão feliz como nessa época (eu sei que fiz um comentário meio acanalhado, mas o objetivo era esse mesmo).

Já casada, Tia Dalva foi morar em um barracão (edícula) providencialmente construído na lateral da casa de minha avó. Não demorou muito para comprarem uma televisão - preto e branco, seletor de canais com quatro opções de canal (em BH só existia a TV Itacolomi, dos Diários Associados) e, se não me engano, móvel com pés palito. Show!

Naquela época, por volta de 1960, só pessoas mais abonadas ou que pretendiam parecer ser é que possuíam televisor. Essa situação criou a figura do televizinho, ironia com o pessoal que ia às casas de moradores próximos, só para ver aquela maravilha.   Como esse luxo não existia ainda na casa de minha avó, virei freguês de meus tios, televizinho, telesobrinho

Meu tio "torto" aparentava gostar muito de mim. Aliás, não sei o motivo disso, pois meus tios sempre demonstraram gostar muito de mim. Quando seu filho mais novo nasceu eu tinha uns onze anos e fui chamado para ser "padrinho de consagração". Quando esse primo já era adolescente, fui convidado a ser seu padrinho de crisma, Quando se casou, olha lá o Jotabê de padrinho, um caso explícito de "tri-padrinhagem". Além disso, fui também chamado para dançar a valsa de quinze anos com sua irmã, mais velha que ele. Nada mais natural portanto que Tia Dalva e Osíris tenham sido nossos padrinhos de casamento. 

Acho essa predileção bacana e estranha, pois os irmãos de minha mãe "produziram" mais de vinte primos e só eu fui lembrado para atividades "apadrinhatórias", pois fui também chamado para ser padrinho de batismo de uma das filhas de meu tio Omir (nesse caso, tive a companhia de outra prima).


Talvez por sempre tratá-lo com simplicidade e descontração, o Osíris gostava de conversar e contar alguns casos para mim. Eu ouvia e achava graça (um puxa-saco profissional!). Um dia, já adulto, ao elogiar sua capacidade absurda de cativar todo tipo de pessoas, disse que ele tinha uma qualidade especial: bastava meia-hora de papo com um desconhecido qualquer que logo essa pessoa já ficava querendo dar pra ele.  Cagou de rir, mas adorou a frase, vaidoso que era. E era muito.

Talvez por essa descontração, me contava vários casos, inclusive os mais picantes. Foi representante comercial durante muitos anos. Quando começou o namoro com Tia Dalva, uma de suas representações era de uma fábrica de lingerie. Já adolescente, ouvi a história da venda de sutiãs para uma butique. Aparentando estar em dúvida a respeito dos modelos provavelmente exibidos por ele, a proprietária disse que iria experimentar alguns, com a condição de que meu tio a ajudasse. Nunca soube o estado civil dessa senhora, mas é tranquilo que rolou uma venda casada! Ele só não me disse quantas vezes ficou de olho na butique dela, nem se já era casado na época. Há outros casos, tão ou mais apimentados, mas preferi deixá-los onde estão, já quase esquecidos.

Um dia me contou de como comprou a casa que depois transformou em escritório.  O proprietário estava puto com o inquilino e ofereceu o imóvel para meu tio. Imagino que deve ter argumentado não ter dinheiro, que estava caro, esse tipo de coisa, mas o proprietário insistiu e facilitou o pagamento, a ser feito mediante a emissão de três notas promissórias que seriam descontadas em banco, Alguma coisa assim. O que sei é que no resgate da última parcela, meu tio não tinha dinheiro suficiente e comunicou isso ao antigo dono. A solução encontrada pelo ex-proprietário foi emprestar o dinheiro para que o Osíris pagasse a promissória, e depois desse um jeito de pagar a ele. Pelo que entendi, era uma coisa meio de louco, pois ele emprestou para meu tio o dinheiro que deveria receber dele através do banco.

Outro exemplo dessa "sedução" aconteceu com o inquilino, que se recusava a sair do imóvel. Meu tio apenas o avisou que iria conseguir tirá-lo (não sei o que fez), o que realmente aconteceu. Esse inquilino era dono de uma mercearia e ficou tão impressionado com as artes e manhas de meu tio que passou a lhe pedir conselhos de todo tipo.

Tia Dalva parecia ter adoração pelo marido e provavelmente fazia tudo para agradá-lo. Lembro-me de uma "cadeira do papai" que comprou para ele no Dia dos Pais. No Dia das Mães ele retribuiu o carinho, comprando para ela um fogão novo...

Esse tio era extremamente competitivo e odiava perder, em qualquer situação. Quando os pais brincam com os filhos e usam jogos de tabuleiro, é normal deixar que as crianças ganhem, para não desapontá-las. Com o Osíris não tinha essa sopinha: jogando com o filho, ganhava todas, sem se preocupara se o filho ficaria triste. Era inteligentíssimo e espertíssimo, mas se ressentia de "não ter canudo", como me disse uma vez, referindo-se ao fato de não ter instrução universitária. Para ele, isso teria permitido que ele atingisse um sucesso muito maior do que alcançou. Mesmo pensando assim, não conseguiu sensibilizar meu "tri-afilhado", que também não fez faculdade. A diferença entre os dois é o que acontece em uma prova de revezamento: o filho pegou o embalo a partir das conquistas do pai. Com isso, ficou rico.


Até quando teve um infarto esse espírito de competição do Osíris se manifestou. Quando eu e minha mulher fomos visitá-lo, disse-nos que "sessenta por cento ou mais das pessoas que tiveram um infarto de tão grande extensão como fora o seu, morreram". Só faltou querer uma medalha por ter sobrevivido. 



Antes de mudar-se para Lagoa Santa, durante muitos anos meus tios moraram a cinco ou seis quadras de nossa casa. Sempre que nos encontrávamos o Osíris insistia para que eu fosse tomar um café com ele, para conversar. Nunca fui, sempre arranjando alguma desculpa para isso. Um dia, já morando em Lagoa Santa, teve um segundo infarto (se não me engano) e não resistiu. Tive a mesma reação de quando meu avô morreu, pois lamentei não ter convivido mais com ele, meu tio, padrinho e compadre


Tia Dalva ainda viveu um bom tempo até começar a sofrer de Parkinson. Também não fui visitá-la. Morreu, se não me engano, em 2014. No fim da vida era alimentada através de sonda gástrica, não falava nem dava sinais de estar lúcida. Segundo minha irmã, apenas olhava para as pessoas - quando olhava - de modo indiferente, sem reação, como se já estivesse junto de seu rei, ídolo e amado Osíris. 


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