terça-feira, 14 de maio de 2024

UM MARKETING INFERNAL!

  
Em sua crônica “Eu e Bebu na Hora Neutra da Madrugada” meu ídolo Rubem Braga escreveu que “Muitos homens, e até senhoras, já receberam a visita do Diabo, e conversaram com ele de um modo elegante e paradoxal. Centenas de escritores sem assunto inventaram uma palestra com o Diabo. Quanto a mim, o caso é diferente".
 
Ora, caramba, se até ele – mesmo dizendo que não – resolveu escrever uma crônica sobre o diabo, por que eu, que não sou escritor, mas eternamente sem assunto não poderia?
 
E há um motivo prático para isso: depois de ler que políticos filiados ao PL - Partido dos Lorpas – se desculparam com os eleitores por terem assistido ao show da "satanista" Madonna, eu cheguei à conclusão de que o Diabo precisa urgentemente modernizar o inferno e atualizar as condenações e penas aplicadas a seus atuais e futuros inquilinos.
 
Estava refletindo sobre isso quando ele surgiu à minha frente, Não sei como apareceu e talvez nem seja importante saber. O que sei é que de repente estávamos conversando na antessala do dentista, onde fui para tratar de mais um dente quebrado por torresmo.
 
Ele não parecia ser o que era. Tinha uma cara de idade indefinida, estava bem vestido, discretamente vestido, nada de vermelho, nada muito colorido, tampouco muito preto ou muito branco. Cumprimentou-me educadamente, e começamos a conversar.
 
Começou queixando-se de que tem muito pouco prestígio atualmente, sendo até motivo de risos e piadas, culpa dos idiotas e dos ignorantes que creem em falsos guias espirituais, mais interessados no próprio enriquecimento.
 
- Sabe, Jotabê, esse povo me quebra, pois transforma em milagre uma simples dor de cabeça.
 
Fiquei incomodado por saber quem eu era e.perguntei como sabia meu apelido.
 
- Ora, Jotabê, eu sei tudo, eu sou a imagem espelhada “dEle”.
- Se sabe tudo, porque não age para recuperar o prestígio antigo?, retruquei.
- Tem razão. Acho que preciso de alguém para me ajudar a modernizar o inferno. E pago bem, pois tenho muitas aplicações em alguns infernos fiscais.
- Infernos fiscais?
- Na verdade, são paraísos fiscais, mas não pega bem sair dizendo que aplico criptamoedas em paraísos fiscais, entendeu?
 
Espantado com a existência de uma versão infernal das criptomoedas disse-lhe que seria fundamental contratar uma consultoria de planejamento estratégico e marketing, dessas com capacidade para limpar a barra de políticos enrolados com a justiça, e de um bom escritório de arquitetura.
 
- Explique isso melhor.
- Em minha opinião, a empresa de consultoria preocupar-se-ia em atualizar e modernizar um formato de negócio surgido há mais de mais de quatro mil anos, já desgastado e de pouco apelo emocional.
- Ainda não me convenceu.
- Veja bem, as mudanças propostas deveriam contemplar a revisão da lista de condenações e as penas correspondentes. Além disso, deveria ser criado um novo projeto gráfico e visual, com propostas de modernização do vestuário e adereços, e até a criação de uma visita guiada pelo Céu e pelos diversos setores do complexo satânico, uma espécie de safári infernal, um passeio guiado como se fosse um safári africano, em que você passa no meio dos leões, mas sem poder chegar perto deles. Seria bom criar também uma campanha publicitária eficiente, pois “a propaganda é a alma do negócio”, como diz quem entende do assunto. Uma ideia boa seria abandonar a cor vermelha, pois isso evitaria que o diabo e seus auxiliares fossem chamados de comunistas.
 
Ele pareceu empolgar-se com as sugestões e perguntou:
 
- Como seria essa revisão de penas e condenações?
- Bem, para isso acontecer você precisaria fazer uma reunião de cúpula com seu "Espelho". Hoje, graças às redes sociais, a maldade mudou de dimensão e de estilo, hoje não se trata apenas de matar ou roubar, hoje o maior mal, o maior dano é provocado pela mentira maldosa, pela mentira que mata, pela mentira que diminui e nega as ações positivas dos governos.
 
Respirei um pouco e continuei:
 
-Hoje o ódio mudou de dimensão e de forma, a maldade adquiriu formas inexistentes na época em que os Dez Mandamentos foram penosamente gravados em pedra durante 40 dias por Moisés. Hoje, as notícias falsas e as mentiras criminosas espalham-se mais rápido que fogo no capim seco em dias de ventania. Reputações são destruídas e até suicídios são cometidos, graças às famigeradas fake news criadas por canalhas ou psicopatas, gente insensível, sem empatia com a população, mais empenhados em dar vazão a seu ódio e rancor e a defender seus pontos de vista à custa de mentiras, por mais equivocados que sejam.
- E o que você sugeriria para corrigir isso? 
- A lista de condenações utilizadas por Ele precisaria incluir a disseminação de fake-news e o ódio ideológico, mais inextinguível que o fogo do inferno.
 
Como estava empolgado, continuei falando:
- As antigas condenações eram destinadas a gente simples e analfabeta, gente que matava por “dá cá uma palha”. Era um povo rude, mas de coração mais brando que o dos políticos e religiosos ultra-radicais que se abrigam nos esgotos de alguns partidos políticos ou igrejas. Se fossem escritos hoje a lista dos dez mandamentos precisaria ser acrescida de no mínimo mais dois. A vantagem é que poderiam ser impressos e distribuídos aos milhares, aos milhões.
 
Pedi um copo de água à secretária do dentista e continuei, não sem notar que ela estava pálida e com uma mal disfarçada expressão de terror no rosto.
 
- Os enunciados desses novos mandamentos poderiam ser assim:
11 - Não criarás nem divulgarás fake news
12 - Terás humildade para aceitar que não comete crime ou pecado quem tem uma visão ideológica diferente da tua.
 
Nesse ponto o Diabo perguntou sobre o escritório de arquitetura.
 
- Que ele poderia fazer para melhorar nossas instalações?
- Bom, minha formação é de engenheiro relapso, não de arquiteto fodão, mas eu começaria pensando em acabar com os fornos, caldeiras e fogueiras, pois além de gastarem muito combustível fóssil, ainda contribuem para aumentar o aquecimento global. Só aí você já ganharia milhões de pontos com os ambientalistas.
- Boa!
- Além disso, você poderia criar setores de acordo com as penas que seus inquilinos devem cumprir. Aliás, se me permite um comentário, você está sempre em uma posição de inferioridade, pois se Ele condena, cabe a você apenas execução da pena, algo como a relação de um juiz e de um policial.
-Eu sempre reclamei disso com ele, mas Ele nunca aceitou mudar essa situação!
- Pois é, por isso eu acho que você precisa colocar mais cores e mais luz nos seus domínios. E acabar com essa história de cheiro de enxofre - ou ainda vão acabar te chamando de peidorreiro. Assim, o novo habitante já saberia o que o espera. “Ele” pode até ter criado a luz, mas por que você tem que ficar com a escuridão?
- Tem razão! Saindo daqui vou agendar uma reunião para tratar disso com Ele!
- Agora, a grande jogada arquitetônica seria a criação de celas individuais iguais às do corredor da morte das prisões americanas, mas com a projeção de vídeos em todas as paredes e teto das delícias existentes no Paraíso. E as imagens criadas por Inteligência Artificial induziriam o condenado a acreditar que realmente está vendo o Céu e que ali existe tudo o que ele mais amou e desejou na vida e que nunca mais poderá obter ou entrar em contato: poder, riqueza, familiares, pais, filhos, esposas, amantes, belas mulheres (para quem gosta) e homens sarados (idem), carrões, cloroquina, pizzas, cerveja barata mas boa, churrasco, tequila, torresmo, leite com toddy, piscina aquecida, praias paradisíacas, paisagens de perder o fôlego. E ele lá, solitário, sem controle remoto para mudar de canal e sem antidepressivos ou remédios para dormir.
- Rapaz, você é bem criativo, heim?
- Sou nada, eu só deliro um pouco. Esse novo projeto transformaria a dor física em dor psicológica, muito mais insuportável que o desconforto que um foguinho no rabo pode causar.
 
Aí, com uma expressão estranha no rosto, ele me disse:
 
- Estou achando que você é um marqueteiro de nascença, ideal para me ajudar a implantar todas essas modificações. Quer trabalhar para mim?
- Não, obrigado! Espero demorar um pouco mais por aqui. Além do mais, você sabe que hoje eu sou um ateu-católico ou um católico-ateu. Por isso, não acredito em muita coisa que dizem existir por aí.
 
Ele deu um sorrisinho irônico, perguntou se eu gostava de gratinados e saiu, deixando-me sem entender o que quis me dizer.

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