sexta-feira, 22 de setembro de 2023

BANHO DE LUA


Um amigo me enviou uma reportagem sobre chuveiro elétrico antigo. Comecei a responder, mas resolvi resgatar mais um pedaço de memória. Até porque, à medida que a idade avança, minha memória vai mesmo ficando aos pedaços (duh!).

Eu, meus pais, meu irmão e depois minha irmã, morávamos na casa de minha avó, pois meu pai era um sujeito falido. A casa de minha avó era bem humilde e pequena para os nove filhos que moravam lá, mais meu avô (separado), genro e netos. Então, ocupávamos um quarto de um dos barracões (edículas) que foram sendo construídos para abrigar toda essa cambada.

Naquela época, era mais fácil tomar um “banho de lua” que de chuveiro. Isso porque água no bairro era uma coisa rara, que vinha só de vez em quando. Creio que isso era um drama comum a boa parte da cidade. Lembro-me de ter ido inúmeras vezes com minha mãe e tias buscar água em uma casa em ruínas, literalmente uma tapera, que ficava um quarteirão acima. Nessa casa de imenso, arborizado e abandonado quintal, moravam duas famílias. Minha irmã tem uma lembrança muito vívida dessa época, que transcrevo a seguir, tal como recebi:

Dessa época eu me lembro bem, participei ativamente das "buscadas de água" com minha latinha de leite, na casa do Seu Durvalino (ou Dorvalino?) e da D. Maria (?). Tinha um certo receio de ir lá porque além de cachorros, uma vez vi um ganso correr atrás de uma moça e fiquei com muito medo. Tinha também um morador esquisito lá, grandão (pelo menos pra mim), manco e acho que meio perturbado; uma vez o vi através de um buraco numa parede e concluí que ele morava ali naquele lugar lúgubre e cavernoso, ou seja, deverasmente assustador. Essas cenas seguramente tiveram influências marcantes nos meus pesadelos. Lembro-me de outros moradores de lá, uma mulher escura, cega, com um montão de filhos (nove) e o marido era um louro vermelho que parecia um alemão. Ela saía sempre com uma criança no colo, uns maiorzinhos agarrados em sua saia e um dos mais velhos fazendo às vezes de condutor. A filha mais velha se chamava Lila e um desses mais velhos, talvez o segundo filho, tinha um nome que eu achava muito interessante "Morice" (não era do francês Maurice e nem "Morrice", era Morice mesmo). Coitada, acho que ela saía para pedir auxílio.

A casa, embora em ruínas, sugeria ter sido muito boa, pois tinha dois andares. Como o reboco tinha sido todo perdido, era conhecida como “a casa de tijolos”. Talvez, no início do século XX, tivesse sido a chácara de algum sujeito abastado. Mas o boato mais interessante é que teria sido a moradia de uma amante de um governador qualquer (isso serve para constatar que mesmo que o tempo passe, algumas coisas nunca mudam). Por conta disso, seria servida pela mesma água que abastecia o palácio. Se é verdade, não sei. Detalhe: morávamos no Carlos Prates, longe pra caramba do bairro Funcionários (onde fica o palácio).

O que sei é que a vizinhança inteira buscava água ali. Usava-se de tudo para buscar o preciosíssimo líquido: baldes, latões de banha, garrafões de vidro, panelas de variados tamanhos, chaleiras, o diabo a quatro. E havia fila, sempre.

Provavelmente, se confirmado o boato da amante, essa água nem devia ser computada pelo DEMAE (ou outro órgão mais antigo). Além disso, as casas não tinham hidrômetro e sim registro de pena d'água.

A pena d'água é um limitador de vazão, pois estabelece um limite máximo de entrada de água na residência. Agora, pensem bem, se quase sempre na rede pública só existia ar, como fazer para abastecer uma caixa d’água? Dureza, né? Um dia, meu avô resolveu o problema: como o tal registro ficava enterrado ou quase isso, ele simplesmente o retirou, fez uma ligação direta. Assim, quando chegava água no bairro, o reservatório da casa (na verdade, um simples tambor de 200 litros) era cheio plenamente. Mutreta, sim, mas a conta era fixa, pois não havia medição. Então...

Pois bem, além de nunca ter água na torneira, o aquecimento era feito pelo sistema fogão de lenha – serpentina. Por isso, o chuveiro era apenas uma ducha simples, já que a água viria (nunca veio) aquecida pelo calor do fogão. É até pleonasmo dizer que esse chuveiro era absolutamente inútil. Então, os banhos da minha infância eram banhos de bacia (em bacia mesmo ou em uma banheira de ferro esmaltado), os conhecidos banhos “tchecos” ou “checos” (checo, checo, checo).

Assim, não sei se pelo crônico vazio da caixa d’água ou se pela idade da tubulação de ferro, o fato é que, mesmo nas raras ocasiões em que havia água na caixa, eu nunca soube o que era tomar um banho quente de chuveiro – até meu pai tomar uma providência (não, ele não bebia cachaça): mandou fazer um artefato que ficava dependurado no chuveiro inútil. Encontrei na internet a foto abaixo, que diz tudo. A diferença é que a lata que usávamos era quadrada e tinha uma torneirinha antes da ducha.

O abastecimento diário de água só ocorreu na minha adolescência. O fogão a lenha foi demolido, as serpentinas foram retiradas e, para alegria de todos, foi instalado um chuveiro elétrico, provavelmente um Lorenzetti. E fim.


(escrito em 06/10/2014)

* * * *

RE BANHO
O título do texto acima remete a um rock antiquérrimo que fez muito sucesso no Brasil, cantado por Celly Campello. O sucesso foi tanto que alguém fez uma paródia para essa música. Quem me ensinou foi um amigo que faleceu de forma trágica.
Como uma homenagem a ele (e para que a letra não se perca) aí vão a letra original (na verdade, uma versão do original italiano) e a paródia:

Tomo um banho de lua,
Fico branca como a neve
Se o luar é meu amigo,
Censurar ninguém se atreve
É tão bom sonhar contigo,
Oh! Luar tão cândido

Sob um banho de lua,
Numa noite de esplendor
Sinto a força da magia,
Da magia do amor
É tão bom sonhar contigo,
Oh ! Luar tão cândido

Tim, tim, tim, raio de lua,
Tim, tim, tim,
Baixando vem ao mundo
Oh lua, a cândida lua vem
Não tomo banho de água fria
Porque me dá muita alergia
Água quente também não
Que faz mal ao coração
Se eu me molho eu encurto
Ah, eu sou um gajo enxuto

Faz um mês tomei um banho
Me molhei mesmo de fato
Foi o meu segundo banho!
Acabo virando pato
Se eu me molho eu encurto
Ah, eu sou um gajo enxuto

Blim, blim, blão,
Água e sabão não é nada “bão”
Prefiro uma cachaça da boa
Pura ou com limão


6 comentários:

  1. Olá, amigo.
    Cheguei ao seu blog fazendo uma busca no Google por "se eu me molho eu encurto" + "eu sou um gajo enxuto". Muito legal sua crônica, por sinal. Conheci essa letra cantada por um amigo de pré-adolescência, quando eu morava em Florianópolis por volta de 1957/58. Ele cantava com sotaque português. Agora, vou ver se consigo algum áudio com essa mesma letra que você postou (para que não se perdesse, e não se perdeu!). Quem será que gravou essa paródia?
    Grande abraço,
    Edgar Nascimento, 71 anos em setembro/2019.

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  2. Obrigado pela visita e pelo comentário! Eu sugeriria o Raul Solnado, comediante português que veio algumas vezes ao Brasil, por dois motivos: certamente foi um comediante quem gravou. E, em segundo lugar, por não me lembrar de outro comediante português. Infelizmente, quem me ensinou essa letra foi um amigo já falecido (há muitos anos!). Há outras coisas legais no blog que talvez te divirtam. Abraço.

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  3. De fato foi Raul Sonado em junho/1961, quem lançou esta paródia, após Celly Campello, lançar no Brasil a versão de Fred Jorge, em dezembro/1960 de "Tintarella di luna".

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  4. Bacana que você tenha confirmado minha suposição. Gostaria que o Edgar Nascimento (que fez o primeiro comentário) lesse isso. Por acaso sabe onde ouvir essa paródia? Só para ilustrar (eu gosto de contar casos): o amigo que me ensinou essa letra foi noivo de minha cunhada. Lá pelo ano de 1971, por aí, enquanto eu espancava o violão, ele cantava essa letra aprendida com o marido de sua irmã. Seu cunhado tinha o LP. Minha cunhada terminou o noivado com ele, passaram -se os anos e fiquei sabendo que tinha morrido de forma estúpida. Morava em um bairro próximo de mata e encontrou um gambá morto perto de casa. Teve a ideia de gerico de colocar fogo no bicho. Juntou alguma lenha, folhas, sei lá mais o que, colocou o gambá no meio, jogou álcool e tacou fogo. Sem perceber, o álcool tinha caído em sua roupa também. Resultado: a ropua começou também a pegar fogo e ele, não sei se por aspirar o ar muito quente ou se pelas próprias queimaduras no peito, acabou no CTI, com os pulmões seriamente atingidos. Morreu dias depois, provavelmente de insuficiência respiratória.

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  5. Tá vendo? Se eu não colocasse a data em que o texto surgiu, você provavelmente ficaria mais encantado ainda com a coincidência "cósmica", mesmo sem eventualmente achar graça no texto. Há uma curiosidade que vale a pena registrar: graças ao título "isca", este post "pescou" mais de mil visualizações desde que foi publicado e é o terceiro mais visto em toda a história do Blogson.

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  6. Pode ser como você disse, mas eu estou apenas seguindo (mais ou menos) a ordem cronológica das publicações originais. Já tenho uns três textos movidos para os próximos dias.

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MARCADORES DE UMA ÉPOCA - 4