Eu li este conto quando era adolescente. Lembrava-me apenas da ironia sobre o esperanto (spoiler). Reencontrá-lo agora é uma das melhores coisas que me aconteceu nos últimos meses ou até mesmo anos. É um texto enorme para o padrão "duas páginas" que adotei para o blog, pois tem sete páginas. Mas é tão bom, tão divertido e induz a tantas reflexões que seu "tamanho não é documento". Só lamento que o Blogson tenha voltado à época de seu nascimento, quando duas visualizações diárias eram motivo de comemoração e alegria, pois eu adoraria que este texto fosse lido, relido, copiado, exportado e transmitido para amigos, parentes, esposas, maridos e demais pessoas. Só posso dizer:
Obrigado, Monteiro Lobato, por toda a obra que criou. Você era genial!
Era no paraíso e
Deus estava contente. Tinha criado a luz, as estrelas, o ar, a água e por fim
criou a Vida, semeando-a sob milhares de formas por cima da terra fresquinha e
nua. E esfervilhou de viventes o orbe, aqui bactéria e mastodonte, ali musgo e
baobá, além craca e baleia — a suma variedade de aspectos dentro da perfeita
unidade de plano.
E Deus, que achara
aquilo bom, deliberou consolidar sua obra de vida per secula seculorum com
o invento da Fome e do Amor, dois apetites tremendos engastados no âmago das
criaturas à guisa de moto-contínuo da Perpetuação. E cofiando a imensa barba
branca, velha como o Tempo, lançou a palavra mágica que tudo move e tudo
explica:
— Comei-vos uns
aos outros e nos intervalos amai!
Em seguida
elaborou para regência da animalidade o Código da Sabedoria Ingênita.
Não deu esse nome
ao Código, visto como, no começo, não existindo homem, não existiam nomes.
— Não existindo
homens?...
Sim, o homem não
estava nos planos do Criador. Esta revelação mirífica, que ainda há de roer
pelos alicerces as caducas verdades oficiais (e talvez me conquiste o prêmio
Nobel), está ansiosinha por me fugir da pena. Que fuja, que se espoje no
espírito do leitor. Adeus, filha!...
Não era escrito
esse Código. Lei escrita vale por pura invenção humana — donde a rapidez com
que envelhecem os códigos humanos e as humanas leis. Escrever é fixar e fixar é
matar. Perpétuo movimento, a vida é infixa. Entretanto, se o não escreveu, foi
além Jeová: impregnou com ele cada uma das criaturas recém-formadas, de modo
que ao nascer já viessem ricas da sabedoria infusa e agissem automaticamente de
acordo com os imutáveis preceitos da lei natural.
Este saber sem
aprender receberia do homem o nome de Intuição, assim como o Código Ingênito
receberia o nome de Instinto. Os futuros homens se caracterizariam pelo vezo de
dar nome às coisas, gozando-se da fama de sábios os que com maior entono e mais
pomposamente as nomeassem. Grande doutor, o que tomasse o pulso a um doente,
lhe espiasse a língua e gravibundo dissesse, tirando do nariz os óculos de
ouro: polinevrite metabólica; e, grande mestre, o que apontasse o
dedo para um grupo de estrelas e declarasse com voz firme: constelação
do Centauro. Doença e estrelas, com ou sem nome, seguiriam o seu curso
prefixo — mas nada de louvores ao médico que apenas dissesse: doença, ou ao
mestre que humilde murmurasse: astros. Paga ou louvor não os teria
o ignorante, isto é, o homem que não sabe nomes. Viva o nome!
Assim, inoculou
Deus em todos os seres a sabedoria da vida e pô-los no orbe como notas
cromáticas do pot-pourri sinfônico de cuja audição integral
somente os seus ouvidos gozariam o privilégio.
E Deus achou que
estava ótimo.
Grandes coisas
tinha feito. A gravitação dos mundos era jogo de movimentos que mais tarde
derrubaria o queixo a Newton — mas não passava de mecânica pura.
A concepção do
éter, da luz, do calor, assombrosas invenções eram — mas mecânica fria.
O bonito fora a
criação da Vida, porque, obra de arte das mais autênticas, só ela dava medida
completa dos imensos recursos do alto engenho de Deus.
Quanta afinação no
tumulto aparente! A bactéria às voltas com o mastodonte, o musgo em simbiose
com o baobá, a craca aparasitada à baleia...
Vida em vida, vida
devorando vida, vida sobrepondo-se à vida, vida criando vida... O perpétuo
ressoar dos uivos de cólera, berros de dor, guinchos de alegria, gemidos de
gozo sonorizando o perpétuo agitar-se das formas — voo de ave, arranque de
tigre, coleio de serpe, rabanar de peixe, tocaiar de sáurio...
Tão pitoresca saiu
a ópera VIDA que o Sumo Esteta a elegeu para recreio de sua Eterna
Displicência. E, debruçado na amplidão, as longas barbas dispersas ao vento, o
contemplativo Jeová antecipou a figura do sábio que no fundo dos laboratórios
cisma sobre o microscópio.
Ora, pois, certo
dia de estuporante mormaço, um casal de chimpanzés dormitava beatificamente no
esgalho de enorme embaúba. Digeriam as bananas comidas e prelibavam, risonhos,
as bananas da manhã seguinte.
Eram chimpanzés
como os demais, sábios de sabedoria inculcada pelo Eterno, e bem-comportadinhas
notas da ópera paradisíaca.
Mas Éolo suspirou
no seu antro e um forte pé de vento deu, que vascolejou com frenesi a árvore e
fez o chimpanzé macho, perdido o equilíbrio, precipitar-se de ponta-cabeça ao
chão.
Seria aquilo um
tombo como qualquer outro, sem consequências funestas, se a malícia da serpente
não houvesse colocado ao pé da embaúba uma grande laje, na qual se chocou o
crânio do infeliz desarvorado.
Perdeu os sentidos
o macaco; e a macaca, presa de grande aflição, pulou incontinenti a socorrê-lo.
Rondou-lhe em torno aos guinchos, soprou-lhe nos olhos, amimou-o, beliscou-lhe
as carnes insensíveis e, por fim, convencida de que estava bem morto, deu de
ombros, já com a ideia na escolha de quem lhe consolasse a viuvez.
Mas não morrera o
raio do chimpanzé. Minutos depois entreabria os olhos, piscava sete vezes e
levava as mãos à fronte, significando que lhe doía.
Neste comenos
funga no juncal próximo um tigre. Desde o Paraíso que os tigres “adoram” os
macacos, como desde o Paraíso que os macacos arrenegam dos tigres. Em virtude
de tal divergência, a fungadela felina valeu por frasco de amoníaco nas ventas
do contuso. Pôs-se de pé, inda tonto e, ajudado da companheira, marinhou
embaúba acima, rumo ao galho de pouso, onde, a bom recato, pudesse distrair a
dor de cabeça com a linda cena que é um tigre faminto à caça de bicho que não
seja chimpanzé.
Desde essa
desastrada queda nunca mais funcionou normalmente o cérebro do pobre macaco.
Doíam-lhe os miolos, e ele queixava-se de vágados e de estranho mal-estar.
É que sofrera
seriíssima lesão.
Digo isto porque
sou homem e sei dar nomes aos bois; homem ignorante, porém, não vou mais longe,
nem ponho nome grego à lesão. Afirmo apenas que era lesão, certo de que me
entendem os meus incontáveis colegas em ignorância nomenclativa.
Lesão grave, gravíssima,
e de resultados imprevisíveis à própria presciência de Jeová.
A Bíblia já tratou
do assunto; de modo simbólico, entretanto, fugindo de tomar a Queda ao pé da
letra. Moisés, redator do Gênesis, tinha veleidades poéticas — mas não previra
Darwin, nem a força do prêmio Nobel como áureo pai de grandes descobertas. Moisés
poetizou... Fez um Adão, uma Eva, uma serpente e um pomo, que certos exegetas
declaram ser a maçã, e outros, a banana. Compôs assim uma peça com a mestria
consciente de Edgar Poe ao carpinteirar O corvo, mas sem deixar,
como Poe, um estudo da psicologia da composição, onde demonstrasse que fez
aquilo por a + b e com bem estudada pontaria. E foi pena!
Quanto papel, tinta e sangue tal esclarecimento não pouparia à humanidade,
sempre rixenta na interpretação dos textos bíblicos!
Vem daí que é o
Gênesis uma peça de fina psicologia, e por igual penetrante nas cabeças duras e
nas dos Pascais, permeabilíssimas; o que escasseia ao Gênesis é acordo com a
verdade dos fatos. Essa verdade, mais preciosa que o diamante Cullinan, eu a
achei sob o montão de cascalho das hipóteses e sem nenhum alarde aqui a estampo
de graça. Já é ser generoso! Tenho nas unhas a verdade das verdades e não
requeiro do Congresso um prêmio de cinquenta contos! Contento-me com um
apenas...
A partir da Queda,
o nosso macaco entrou a mudar de gênio. Sua cabeça perdeu o frescor da antiga
despreocupação e deu de elaborar uns mostrengozinhos, informes, aos quais, com
alguma licença, caberia o nome de ideias.
Vacilava, ele que
nunca vacilara e sempre agira com os soberbos impulsos do automatismo. Entre
duas bananas pateteava na escolha tomado de incompreensíveis indecisões — e por
vezes perdeu ambas, iludido por monos de bote pronto que não vacilavam nem
escolhiam.
Para galgar de um
ramo a outro calculava agora não só a distância como a força do salto — e
errava, ele que antes da lesão nunca errara pulo.
Até em suas
relações sentimentais com a velha companheira o chimpanzé variou. Ganho de
malsãs curiosidades, examinava as outras macacas do bando, comparava-as à sua e
cometia o pecado de desejar a macaca do próximo.
Como também
claudicasse na escolha das frutas, comeu diversas impróprias à alimentação
símia, daí provindo as primeiras perturbações gastrointestinais observadas na
higidez do Paraíso — enterites, colites, disenteria ou o que seja.
Quando iam águias
pelo céu, punha-se a contemplar os seus harmoniosos voos, com vagos anseios nas
tripas e muito desejo na alma de ser águia. Era a inveja a nascer, má cuscuta
que vicejaria luxuriantemente na execrável descendência desse mono. Invejou as
aves que dormiam em ninho fofo e os animais que moravam em boas tocas de pedra.
Abandonou o viver em árvore, prescrito para os da sua laia pelo Código
Ingênito, e deu de andar sobre a terra de pé sobre as patas traseiras, com as
dianteiras — futuras mãos — ocupadas em construir ninho, como os via fazer às
perdizes, ou toca, como as tem o tatu.
E sempre nervoso e
inquieto, e descontente com a ordem das coisas estabelecida no Éden, imaginava
mudanças e “melhoramentos”. E variava e tresvariava, e malucava, arrastando
consigo a pobre companheira que, sem nada compreender de tudo aquilo, em tudo o
imitava passivamente, dócil e meiga.
Aconteceu o que
tinha de acontecer. A admirável disciplina reinante no Éden viu-se logo
perturbada pelo estranho proceder do macaco, advindo daí murmurações e por fim
queixas a Jeová. E tais e tantas foram as queixas, que o Sumo, zangado com a
nota desafinadora da sua música divina, ordenou ao anjo Gabriel que pusesse no
olho da rua o sustenido anárquico.
Até esse ponto vai
certo Moisés. Onde começa a fazer poesia é daí por diante. De fato, Jeová
ordenou a expulsão do rebelde e são Gabriel deu para executá-la os primeiros
passos. A curiosidade, porém, que dizem feminina mas aqui se vê que é divina,
fez o Criador reconsiderar.
— Suspende,
Gabriel! Estou curioso de ver até que extremos irá o desarranjo mental do meu
macaco.
Era Gabriel
o Sarrazani daquele jardim zoológico e, graças ao convívio com
o Eterno, adquirira alguma coisa da divina presciência. Assim foi que objetou:
— Vossa Eternidade
me perdoe, mas se lá deixamos o trapalhão aquilo vira em “humanidade”...
— Sei disso —
retorquiu o Soberano Senhor de todas as coisas. — A lesão do cérebro do meu
macaco põe-no à margem da minha Lei Natural e fá-lo-á discrepar da harmonia
estabelecida. Nascerá nele uma doença, que seus descendentes, cheios de
orgulho, chamarão inteligência — e que, ai deles! lhes será funestíssima. Esse
mal, oriundo da Queda, transmitir-se-á de pais a filhos — e crescerá sempre, e
terrivelmente influirá sobre a terra, modificando-lhe a superfície de maneira
muito curiosa. E, deslumbrados por ela, os homens ter-se-ão na conta de
criaturas privilegiadas, entes à parte no universo, e olharão com desprezo para
o restante da animalidade. E será assim até que um senhor Darwin surja e prove
a verdadeira origem do Homo sapiens...
— ?!
— Sim. Eles nomear-se-ão Homo
sapiens apesar do teu sorriso, Gabriel, e ter-se-ão como feitos por
mim de um barro especial e à minha imagem e semelhança.
— ?!!
— Os demais
chimpanzés permanecerão como eu os criei; só o ramo agora a iniciar-se com a
prole do lesado é que se destina a sofrer a diferenciação mórbida, cuja
resultante será cair o governo da terra nas unhas de um bicho que não previ.
— ?!!!
— Essa
inteligência se caracterizará pela ânsia de ver-me através das coisas, e para
que bem a compreendas, Gabriel, te direi que será como asas sem ave, luz sem
sol, dedos sem pés...
Gabriel não
compreendeu coisa nenhuma da longa definição de Jeová — e como sucederia o
mesmo com os meus leitores, interrompo-a nos dedos sem pés. Até aí ainda a
percepção é possível; mas no ponto em que Jeová lhe assinalou a essência
última, nem Einstein pescaria um x...
Vendo o ar
aparvalhado de Gabriel, o Criador pulou da metagênese abaixo e falou
fisicamente.
— Essa
inteligência apurará aos extremos a crueldade, a astúcia e a estupidez. Por
meio da astúcia se farão eles engenhosos, porque o engenho não passa da astúcia
aplicada à mecânica. E à força de engenho submeterão todos os outros animais, e
edificarão cidades, e esfuracarão montanhas, e rasgarão istmos, destruirão
florestas, captarão fluidos ambientes, domesticarão as ondas hertzianas,
descobrirão os raios cósmicos, devassarão o fundo dos mares, roerão as
entranhas da terra...
Gabriel
estremeceu. Apavorou-o a força futura da inteligência nascente; mas Jeová
sorriu, e quando Jeová sorria Gabriel serenava.
— Nada receies.
Essa inteligência terá alguns atributos da minha, como o carvão os tem do
diamante, mas estará para a minha como o carvão está para o diamante. A
fraqueza dela provirá da sua jaça de origem. Inteligência sem memória,
inteligência de chimpanzé, o homem esquecerá sempre. Esquecerá o que ensinei
aos seus precursores peludos e esquecerá de colher a boa lição da experiência
nova.
“Seu engenho
criará engenhosíssimas armas de alto poder destrutivo — e empolgados pelo ódio se
estraçalharão uns aos outros em nome de pátrias, por meio de lutas tremendas a
que chamarão guerras, vestidos macacalmente, ao som de músicas, tambores e
cornetas — esquecidos de que não criei nem ódio, nem corneta, nem pátria.
“E transporão
mares, e perfurarão montes, e voarão pelo espaço, e rodarão sobre trilhos na
vertigem louca de vencer as distâncias e chegar depressa — esquecidos de que eu
não criei a pressa nem o trilho.
“E viverão em
guerra aberta com os animais, escravizando-os e matando-os pelo puro prazer de
matar — esquecidos de que eu não criei o prazer de matar por matar.
“E inventarão
alfabetos e línguas numerosas, e disputarão sem tréguas sobre gramática, e
quanto mais gramáticas possuírem menos se entenderão. E se entenderão de tal modo
imperfeito que aclamarão o messias do entendimento geral um doutor
Zamenhoff...”
— Já sei! Um que
proporá a supressão das línguas.
— Não! Apenas o
criador de mais uma. E eles elaborarão ciências e excogitarão toda a mecânica
das coisas, adivinhando o átomo e o planeta invisível, e saberão tudo — menos o
segredo da vida.
“E um Pascal,
muito cotado entre eles, dará murros na cabeça, na tortura de compreender
os xx supremos — e os homens admirarão grandemente esses
murros.
“E criarão artes
numerosas, e terão sumos artistas e jamais alcançarão a única arte que
implantei no Éden — a arte de ser biologicamente feliz.
“E organizarão o
parasitismo na própria espécie, e enfeitar-se-ão de vícios e virtudes
igualmente antinaturais. E inventarão o Orgulho, a Avareza, a Má-Fé, a
Hipocrisia, a Gula, a Luxúria, o Patriotismo, o Sentimentalismo, o
Filantropismo, a Colocação dos Pronomes — esquecidos de que eu não criei nada
disso e só o que eu criei é.
“E em virtude de
tais e tais macacalidades, a inteligência do homem não conseguirá nunca
resolver nenhum dos problemas elementares da vida, em contraste com os outros
seres, que os terão a todos solvidos de maneira felicíssima.
“Não saberá comer;
e ao lado das minhas abelhas, de tão sábio regime alimentar — sábio porque por
mim prescrito —, o homem morrerá de fome ou indigestão, ou definhará achacoso
em consequência de erros ou vícios dietéticos.
“Não saberá morar
— e ao lado das minhas aranhas, tão felizes na casa que lhes ensinei, habitarão
ascorosas espeluncas sem luz, ou palácios.
“Não resolverá o
problema da vida em sociedade, e experimentará mil soluções, errando em todas.
E revoluções tremendas agitarão de espaço em espaço os homens no desespero de
destruir o parasitismo criado pela inteligência — e as novas formas de
equilíbrio surgidas afirmar-se-ão com os mesmos vícios das velhas formas
destruídas. E o homem olhará com inveja para os meus animaizinhos gregários,
que são felizes porque seguem a minha lei sapientíssima.
“E não solverá o
problema do governo; e mais formas de governo invente, mais sofrerá sob elas
— esquecido de que não criei governo. E criará o Estado, monstro de
maxilas leoninas, por meio do qual a minoria astuta parasitará cruelmente a
maioria estúpida. E a fim de manter nédio e forte esse monstro, os sábios
escreverão livros, os matemáticos organizarão estatísticas, os generais armarão
exércitos, os juízes erguerão cadafalsos, os estadistas estabelecerão
fronteiras, os pedagogos atiçarão patriotismos, os reis deflagrarão guerras
tremendas e os poetas cantarão os heróis da chacina — para que jamais a guerra
cesse de ser uma permanente.
“Queres ver ao
vivo, Gabriel, o que vai ser a chimpanzeização do mundo? Corre essa cortina do
futuro e espia por um momento a humanidade.”
Gabriel correu a
cortina do futuro e espiou. E viu sobre a crosta da terra uma certa poeira
movediça. Mas, ansioso de detalhes, Gabriel microscopou e distinguiu uma
dolorosa caravana de chimpanzés pelados, em atropelada marcha para o
desconhecido.
Miserável rebanho!
Uns grandes, outros pequenos; estes louros, aqueles negríssimos — nada que
recordasse a perfeição somática dos outros viventes, tão iguaizinhos dentro do
tipo de cada espécie. Que feia variedade! Ao lado do Apolo, o torto, o capenga,
o cambaio, o corcovado, o corcunda, o raquítico, o trôpego, o careteante, o
zanaga, o zarolho, o careca, o manco, o cego, o tonto, o surdo, o espingolado,
o nanico... Caricaturas móveis, com os mais grotescos disparates nas feições,
era impossível apanhar-lhes de pronto o tipo-padrão. E Gabriel evocou
mentalmente a linda coisa que é um desfile de abelhas ou pinguins, no qual não
há um só indivíduo que destoe do padrão comum.
Da manada humana
subia um rumor confuso. Gabriel desencerrou os ouvidos e pôde distinguir sons
para ele inéditos: tosse, espirros, escarradelas, fungos, borborigmos,
ronqueira asmática, gemidos nevrálgicos, ralhos, palavrões de insulto,
blasfêmias, gargalhadas, guinchos de inveja, rilhar de dentes, bufos de cólera,
gritos histéricos...
Depois observou
que à frente das multidões caminhavam seres de escol, semideuses
lantejoulantes, vestidos fantasiosamente, pingentados de cristaizinhos
embutidos em engastes metálicos, com penas de aves na cabeça, cordões e fitas,
crachás e miçangas...
— Quem são?
— Os chefes, os
magnatas, os reis: os condutores de povos. Conduzem-nos... não sabem para onde.
E viu, entremeio à
multidão, homens armados, tangendo o triste rebanho a golpes de espada ou
vergalho. E viu uns homens de toga negra que liam papéis e davam sentenças,
fazendo pendurar de forcas miseráveis criaturas, e a outras cortar a cabeça, e
a outras lançar em ergástulos para o apodrecimento em vida. E viu homens a
cavalo, carnavalescamente vestidos, empenachados de plumas, que arregimentavam
as massas, armavam-nas e atiravam-nas umas contra as outras. E viu que depois
de tremenda carnificina um grupo abandonava o campo em desordem, e outro,
atolado em sangue e em carne gemebunda, cantava o triunfo num delírio orgíaco,
ao som de músicas marciais. E viu que os homens de penacho organizadores das
chacinas eram tidos em elevadíssima conta. Todos os aplaudiam, delirantes, e os
carregavam em charolas de apoteose. E viu que a multidão caminhava sempre
inquieta e em guarda, porque o irmão roubava o irmão, e o filho matava o pai, e
o amigo enganava o amigo, e todos se maldiziam e se caluniavam, e se detestavam
e jamais se compreendiam...
Horrorizado,
Gabriel cerrou a cortina do futuro e disse ao Criador:
— Se vai ser
assim, cortemos pela raiz tanto mal vindouro. Um chimpanzé a menos no Paraíso e
estará evitado o desastre.
— Não! — respondeu
o Criador. — Tenho um rival: o Acaso. Ele criou o homem, provocando a lesão
desse macaco, e quero agora ver até a que extremos se desenvolverá essa
criatura aberrante e alheia aos meus planos.
Gabriel piscou por
uns momentos (catorze vezes ao certo), desnorteado pela expressão “quero ver”
jamais caída dos lábios do Senhor. Haveria porventura algo fechado, ou obscuro,
à presciência divina?
E Gabriel ousou
interpelar Jeová.
— Não sois, então,
Senhor, a Presciência Absoluta?
Jeová franziu os
sobrolhos terríveis e murmurou apenas:
— Eu Sou, e se
Sou, Sou também O que se não interpela.
Gabriel
encolheu-se como fulminado pelo raio e sumiu-se da presença do Eterno com pretexto
de uma vista de olhos pelo Éden.
Linda tarde! O sol
moribundo chapeava debruns de cobre nos gigantescos samambaiuçus, a cuja sombra
dormitavam megatérios de focinhos metidos entre as patorras.
As arqueopterix desajeitadonas
chocavam na areia seus grandes ovos.
Um urso das
cavernas catava as pulgas da companheira com a minuciosa atenção dum
entomologista apaixonado, e de longe vinham urros de estegossauros perseguidos
por mutucões venenosos.
Ao fundo dum vale
de avencas viçosas como bambus, dois labirintodontes amavam-se em silencioso e
pacato idílio, não longe de um leão fulvo que comia a carne fumegante da gazela
caçada.
Aves gorjeavam
amores nos ramos; serpes monstruosas magnetizavam monstruosas rãs; flores
carnívoras abriam a goela das corolas para a apanha de animaizinhos incautos.
Paz. Paz absoluta.
Felicidade absoluta. A Vida comia a Vida e a Vida amava para que não se
extinguisse a Vida — tudo rigorosamente de acordo com a senha divina.
Só Adão, o macaco
lesado, discrepava, piscando os olhinhos vivos, como a ruminar certa ideia.
Gabriel parou
perto dele e deixou-se ficar a observá-lo. Viu que Adão, de olhos ferrados numa
toca de onça, raciocinava: “Ela sai e eu entro, e fecho a porta com
uma pedra, e a casa fica sendo minha...”.
Eva, a macaca
ilesa, permanecia muda ao lado, embevecida no macho pensante. Não o compreendia
— não o compreenderia nunca! —, mas admirava-o, imitava-o e
obedecia-lhe passivamente.
Nisto, a onça
deixou o antro e foi tocaiar uma veadinha.
— Acompanhe-me! —
disse Adão à companheira, e ambos precipitaram - se para a toca da onça, cuja
entrada fecharam por dentro com uma grande pedra roliça. E ficaram donos.
Gabriel, que
acompanhara toda aquela maromba, acendeu um cigarro de papiro, baforou para o
céu três fumaças e murmurou:
— Ele já é
inteligência. Ela não passa de imitação. É lógico: só ele foi lesado no
cérebro; mas vão ver que Eva, a instintiva, ainda acabará fingindo-se lesada...
E o primeiro
difamador da mulher foi jogar sua partida de gamão com o Todo-Poderoso.
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