Um dia, um compacto simples chamou minha
atenção: quatro sujeitos de cabelos longos (uns dois dedos também) meio
despenteados dividiam o espaço da capa com as duas músicas disco. Na contracapa, além do retrato e nome de cada músico, havia um "currículo", uma descrição da função de cada um no
conjunto (naquela época, “banda” era coisa de desfile militar ou procissão). Aí
resolvi ouvir o disco. Logo nos primeiros segundos, aconteceu a revelação,
o “milagre do Mar Vermelho”, o divisor de águas, uma verdadeira epifania. A
música era incrivelmente boa!
Coloquei o outro lado e era ainda
melhor. Depois de ter ouvido cada lado umas cinco vezes, minha mãe
apareceu e pediu para eu parar, para não estragar o disco. Mas o “mal” já
estava feito. Naquele momento, sem nenhuma influência externa, sem conversar
com ninguém, eu havia me tornado definitivamente um beatlemaníaco. Antes que eu
me esqueça, as músicas eram “I Want
To Hold Your Hand” e “She Loves You”.
Depois disso, muitas músicas serviram para marcar esse ou aquele evento, pessoas ou instante, mas nada que se comparasse ao primeiro contato com os Beatles. Aliás, na esteira do Fab Four, músicas de uma penca de conjuntos americanos, ingleses e até brasileiros foram ouvidas nas rádios. Havia de tudo, desde os ótimos Rolling Stones e Animals até os falsos músicos do Herman’s Hermits e The Monkees.
Por volta de 1967, ouviram-se nas rádios desse lado do mundo os primeiros sons do “Flower Power” americano (“If you’re going to San Francisco, be sure to wear somme flowers in your hair”). The Mammas and the Pappas fizeram enorme sucesso com duas músicas que eu não aguento mais ouvir (“California Dreamin” e “Monday Monday”). E, como era de se esperar, havia também o rock brega de grupos do naipe de Mungo Jerry.
Não sei se deu para notar que eu só falei de rock até agora. Mas, pudera, esse estilo é a matéria prima da trilha sonora da minha vida. Gostar de samba, choro, bossa nova foi resultado de uma ação consciente para me enturmar com gente tipo papo-cabeça, bicho grilo, por aí. E eu realmente gosto desses estilos de música, como também gosto daqueles bolerões das antigas e de tango (alguns). Mas no duro, no duro, sempre tive predileção pelo rock e suas várias sub-espécies. Até mesmo pelo rock brasileiro – o problema é que tirando uns dois ou três artistas, o resto era terrivelmente brega. Que tal ouvir um grupo de nome “Analfabitles"? Pois é, isso existiu por aqui (creio que em São Paulo). E a Jovem Guarda? Ninguém diz, mas aquilo era um nicho (quase disse lixo) ocupado por artistas muito bregas (eu falo, porque me lembro!).
Tá bom, peguei pesado, mas o público da turma do Roberto Carlos era majoritariamente das classes C, D, e por aí. Gente bem informada, bem instruída gostava (ou fingia gostar) mesmo é de MPB. Embora eu estudasse e fosse certinho, tinha um pé na periferia. Então, gostava da Jovem Guarda e de MPB, mas os batimentos do meu coração eram puro rock (inglês, por favor!).
Em 1969, através da leitura do jornaleco Pasquim e das dicas de um colega de cursinho, fui apresentado ao Jimi Hendrix e fiquei aguardando passar em BH o filme do Festival de Woodstock (“three days of peace and music”), o que só aconteceu em 1970. Lembro-me de ter assistido a primeira sessão do primeiro dia em que passou no Cine Tamoio, sentado nas primeiras fileiras do cinema. Era quase como estar lá no festival. Depois disso, devo ter assistido a esse filme mais umas duas vezes. Tirando umas três, bem chatinhas, as músicas do álbum triplo lançado na esteira do filme, acabaram também parte da minha trilha sonora.
Em 1969 / 1970 encontrei o Amor da minha vida, a pessoa mais importante para mim, que continua e sempre será o Amor da minha vida. A música tema que evoca essa pessoa absolutamente incrível é "Dindi", do Tom Jobim. Música linda para uma lyndíssima mulher.
Mas 1970 não foi um ano bom para o rock – os Beatles se separaram, morreram Jimi Hendrix (meu ídolo) e Janis Joplin. Por conta disso, comecei a tentar ouvir os ídolos dos meus ídolos e acabei chegando ao blues. Mas aí, já estava “ficando maiorzinho” e aquela sopa de ficar só vagabundando foi se acabando devagarinho. Descobri também o pessoal do Clube da Esquina, alguns fortemente influenciados pela música dos Beatles (Beto Guedes e Lô Borges). Isso foi ótimo, mas só tem uma música desse pessoal que evoca um momento meio mágico.
Um dia – era domingo e todos ainda dormiam. Como acordava sempre cedo e não conseguia ficar deitado depois de acordar, levantei-me e abri a porta da cozinha. O dia estava ensolarado sem estar quente e o céu estava limpo de nuvens. Estava com uma sensação muito boa de paz, de tranquilidade. Fui para o barracão (edícula) que fica no fundo do lote, onde ficavam os discos e o som. Peguei o “Clube da Esquina n° 2”, do Milton Nascimento, e coloquei a música “Nascente” (que é do Flavio Venturini) para tocar. Deitei-me na rede e fiquei ali, em absoluta paz e em total ressonância com o universo. Foi, realmente, um momento mágico. Não me lembro de quando isso aconteceu. Talvez os filhos mais novos nem tivessem ainda nascido. Assim, sem que eu me desse conta, as novas músicas que ia ouvindo, embora ótimas, foram deixando de funcionar como marcadores.
Dia desses eu li que os ritmos mais tocados hoje no Brasil são o funk e a música sertaneja. Não tenho nenhuma identificação com esse tipo de música. Para mim, essa preferência é meio paradoxal. Pensem bem: segundo o Censo de 2010, só 16% da população brasileira é considerada rural. Que sentido tem gostar de música "sertaneja"? Para mim, a explicação é que a música "sertaneja" (ou "breganeja") de hoje só finge ser o que não é de verdade. E "funk", então, nem precisa discutir. Boa parte do que ouço não é música, pois o som parte de uma programação eletrônica simples. As letras são de péssima inspiração, muitas vezes cantadas por gente de voz esganiçada.
Tá bom, eu sou velho e (cada vez mais) gagá. Justamente por isso, hoje, além de continuar ouvindo Beatles e alguns artistas atuais (Seu Jorge, por exemplo), fico fascinado é pela música americana das décadas de 1920, 1930 e 1940, os chamados "Standards”. E tem coisa boa demais! Por exemplo, "Stardust" ("Poeira de Estrelas"), gravada (entre muitos outros) pelo Willie Nelson, só na gaita e violão, o que deixou a música delicadíssima, boa para ouvir deitado em uma rede em uma manhã de domingo. Essas músicas antigas, de certa forma, funcionam como um fechamento de ciclo, um “revival” dos fox-trots que ouvi na infância.
E o rock, que surgiu em meados da década de 1950, daqui a algum tempo será apenas mais uma das curiosidades surgidas no terceiro planeta que orbita uma dos bilhões de estrelas que existem na Via Láctea, ela própria uma dos bilhões de galáxias que existem no Universo. Poeira de estrelas, portanto. Assim como eu.
(escrito em 23/06/2014)
Bárbaro esse texto e de quebra ainda me lembrou uma música que eu gosto desde menina “Five Hundred Miles- Peter, Paul and Mary”! Valeu!
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