quinta-feira, 21 de setembro de 2023

HERBERT E PAWEL

Este texto segue a mania que eu tenho de reunir posts publicados separadamente, só para restaurar a forma e tamanho original que o texto raiz possuía antes de ser picado em pedaços. Por isso, caro leitor, gentil leitora, se já leram os textos isoladamente podem procurar alguma coisa mais interessante para fazer (e sempre haverá!).


Tive a honra de conhecer, conviver e ter como colegas na empresa onde mais gostei de trabalhar dois engenheiros que tiveram suas vidas de alguma forma transformadas pela Segunda Guerra Mundial. Herbert e Pawel. Na verdade, o nome “real” do Herbert era Herberto, já o do Pawel era Pawel mesmo - ou “Dr. Pawel”, como todos respeitosamente o tratavam.
 
 
HERBERTO (OU HERBERT)
Quem usava esse nome horroroso era um sujeito muito alto, muito magro, ali na casa dos 50 anos ou pouco mais. Era o chefe competentíssimo da seção de projetos da empresa onde trabalhei. Com ele trabalhavam cinco desenhistas e projetistas. Curiosamente, antes de começar a trabalhar na área de engenharia foi motorista de caminhão, atividade que lhe rendeu a admiração dos motoristas da empresa, pela habilidade de manobrar e estacionar sua Chevrolet C14 sem olhar para trás, só no espelho retrovisor.
 
Sua grande experiência com projetos e cálculo estrutural foi adquirida primeiro como desenhista, depois como projetista e finalmente como calculista de um escritório de engenharia. Mas tudo isso sem ser engenheiro, pois se graduou já velho em engenharia. E o motivo, segundo ele, foi para dar exemplo a um filho que não queria nada com os estudos. Para provar que não havia idade para fazer um curso de terceiro grau, prestou vestibular, foi aprovado e formou-se em engenharia mecânica.
 
Esse conhecimento deve ter sido útil para projetar e calcular todo tipo de traquitana necessária durante a execução das obras contratadas pela empresa. Também deve ter servido quando comprou um caminhão velho e começou a transformá-lo em motorhome. E o primeiro passo foi cortar e alongar o chassi do caminhão para ficar de acordo com o projeto que desenvolveu para materializar o sonho de sair acampando com a família por aí.
 
A origem do nome idiota que usava estava no período da Segunda Guerra. Era brasileiro, filho de alemães naturalizados. O pai, Hubert, veio para o Brasil ainda criança, o mesmo acontecendo com sua mãe.
 
Hubert e esposa devem ter-se conhecido e casado na colônia alemã da cidade. Tiveram dois filhos: Herbert e Frida. Apesar de brasileiros natos ou naturalizados e fluentes em português com zero sotaque, nada mais natural que pais e filhos conversassem em alemão dentro de casa e talvez até com alguns amigos.
 
Mas a guerra começou, o Brasil entrou na briga e de repente ficou perigoso ser alemão. Por isso, uma das primeiras providências foi aportuguesar os nomes próprios. Hubert ganhou um “O” transformando-se em Huberto. O mesmo aconteceu com meu colega, que passou a chamar-se Herberto, um nome desgraçado de feio, só melhor que o nome do pai.
 
A outra providência foi passar a só falar em português, até mesmo dentro de casa (sabem como é, as paredes podem ter ouvidos). Assim, quando a guerra acabou tinham perdido o costume e o prazer de falar no idioma dos antepassados.
 
Curiosamente, quando a empresa onde trabalhávamos trouxe para o Brasil dois alemães para auxiliar na elaboração da proposta para construção da usina nuclear Angra III, meu colega Herberto pôde expressar-se no idioma há muito abandonado ao conversar com os gringos. E esta é a parte pitoresca desta história: os alemães lhe disseram que ele falava sem nenhum sotaque, mas com expressões e vocabulário muito antigos, algo assim como alguém usando palavras em desuso tipo “Vosmecê” ou “Vossa mercê”. 
 
Para terminar, um caso divertido. Tentarei ser claro e sucinto na última lembrança do Herberto: provavelmente no início da década de 1970 a empresa onde trabalhei ganhou a licitação para construir as obras civis de uma hidrelétrica, serviço de responsa e bastante técnico. O Herberto foi designado chefe da seção técnica da obra, setor encarregado de descascar os pepinos surgidos durante a construção.
 
O maior desafio foi projetar e construir a forma (molde) do “tubo de sucção”, um conduto dentro da barragem que leva a água represada até a turbina para fazê-la girar.
 
Para encurtar a conversa, o Herberto projetou e calculou os esforços que a forma de madeira sofreria ao ser lançado o concreto sobre ela. Era um monstrengo que precisou ser dividido em quatro partes cada uma delas do tamanho da carroceria de um caminhão. Tive a oportunidade de ver as fotos  (lindas!)  dessas peças.
 
Antes, entretanto, para não vacilar e provocar algum erro grave durante a execução da obra, O Herberto mandou os carpinteiros construir um modelo em escala reduzida, estudou a melhor forma de fixar as partes entre si, etc.
 
Precisei me deter um pouco nessas particularidades, só para falar que o “buraco” que seria deixado dentro do corpo da barragem era o “ó do borogodó”, pois tinha a forma de um cachimbo e a seção originalmente retangular ia se modificando até tornar-se circular. E a forma de madeira tinha de “entregar” esse formato. As fotos mostram uma obra de arte em toda a sua rudeza, feita com centenas de tiras de madeira semelhantes a ripas de telhado lixadas e cobertas por massa plástica (se não me engano), pregadas em vários “anéis” robustos de madeira (o nome é cambota) cada um com um formato diferente do outro, justamente para criar a forma prevista no projeto da barragem.
 
Resumindo, um trabalho filha da puta de complexo que exigiu memória de cálculo e desenhos auxiliares, tudo preparado e detalhado pelo fodíssimo Herberto (que ainda nem era engenheiro!). E foi aí que aconteceu o episódio que me fez rir muito.
 
Os fiscais da empresa contratante chegaram à obra para ver o “cachimbo”. Parece que o engenheiro chefe da construtora era meio calhorda e disposto a gozar com o pinto dos outros, pois começou a conversar com os fiscais como se fosse ele o responsável pelos estudos técnicos e projetos construtivos. Isso na frente do Herberto, que permaneceu calado.
 
Quando o engenheiro pediu para que ele trouxesse os esboços e a memória de cálculo para mostrar para os fiscais, o Herberto nem pestanejou. Foi até sua sala, queimou todos os estudos e desenhos que tinha feito e voltou dizendo que infelizmente tinha jogado fora o estudo, justamente por não ser mais necessário.
 
 
PAWEL
Dr. Pawel era uma espécie de “outsider” dentro do grupo de engenheiros que trabalhava no setor denominado “Seção Técnica”. Tinha uma sala só para ele, com prancheta e mesa de escritório. Não participava das atividades normais do setor, pois parecia atender apenas as demandas do diretor técnico.
 
Era extremamente respeitoso e chamava a todos os engenheiros de “doutor”, ao contrário da esculhambação com que nos tratávamos, com apelidos idiotas e até com variantes “criativas” dos sobrenomes. O Luis Felipe, por exemplo, era chamado de Pintão, para se diferenciar do filho “Pintinho” que também trabalhava na empresa, ainda como estagiário. Bem melhor e até mais elogioso que o tratamento que eu recebia de um gerente quando queria falar comigo:
“Ô Pênis, dá um pulinho aqui na minha sala”. Pois é...
 
Dr. Pawel tinha um horário rígido de trabalho, que cumpria rigorosamente, sem condescendência nenhuma a excesso ou falta de alguns minutos. Ao meio dia em ponto saía para almoçar, às 17h30 largava o que estava fazendo, encerrava o expediente e foda-se o mundo. Um dia, incomodado pelas horas extras a que nós estávamos acostumados a fazer com frequência, disse ao Herberto:
- Você não está sendo pago para trabalhar essas horas!
 
Comportamento de europeu da velha guarda. Dr. Pawel tinha um filho gente finíssima que trabalhava na mesma empresa. Victor (“Victar”) para ele e Vitão para nós. Um dia o Vitão me contou o caso mais surreal que já ouvi.
 
Seu pai, russo, lutou na Segunda Guerra, foi ferido, capturado pelos alemães e levado para um campo de prisioneiros.  Em determinado momento algum tipo de epidemia atingiu o campo, levando os médicos alemães a uma solução radical (eles eram “bons” nisso!): os aprisionados foram divididos em dois grupos: os franzinos e/ou muito debilitados iam para um lado (para morrer, se fosse o caso) e os que tinham boa chance de cura ou utilidade para os alemães eram levados para a enfermaria e tratados.
 
Segundo o Vitão, o pai corpulento e forte foi escolhido para ficar na “tchurma da enfermaria”. Um médico alemão o medicou, tratou e salvou sua vida. Após o fim da guerra, provavelmente cada um foi para o seu canto. O Pawel talvez por odiar o comunismo, veio para o Brasil, passando pela Áustria, onde nasceu seu filho Victor.
 
Chegando ao Brasil, acabou vindo morar em Belo Horizonte, no bairro Santo Antonio, na Rua Leopoldina. Quis o destino que o médico alemão também viesse dar as caras em terras brasileiras, indo morar em Belo Horizonte, bairro Santo Antonio na rua... (adivinha qual?) Essa mesma, na Rua Leopoldina!!!!
 
- Puta que pariu, Vitão! Que maravilha! Essa é a verdadeira coincidência cósmica! Seu pai e o alemão devem bater altos papos, heim?
- Claro que não!
- Porra, por que não? O cara salvou seu pai!
- E daí? Meu pai é russo e ele é alemão!
Aí eu desisti de entender os gringos
 
O relacionamento do Vitão com o pai era muito engraçado. O pai ficava puto quando falava em russo para o filho, que respondia em português. Eu criticava:
- Pô, Vitor, eu adoraria saber falar em mais de uma língua!
- Para quê? Eu sou brasileiro!
- Mas você sabe falar russo?
- Claro que sei, mas não gosto.
Que devia ter dito a ele? Jumento!
 
As últimas lembranças que tenho do Dr. Pawel são palavras e casos que disse (uma delas provocando anos depois uma inimizade total com um colega esquizofrênico que inclusive me chamou para brigar no braço. Mas esse caso eu prefiro não detalhar).
 
A outra coisa foi a informação de que os livros técnicos russos eram abundantes e baratíssimos, pois eram impressos em papel vagabundo, tipo de jornal. E para encerrar, um provérbio russo que o “Orozimbo” batalhou para aprender a falar:
 
- “No meio de lobos uive como lobo”.
Em russo seria algo parecido com isto: 
- “Sredi volkov vyt' po-volch'i”.
Mas eu não posso confirmar, pois meu nome não é Victor e o Dr. Pawel está dormindo profundamente há muito tempo.
 

 

8 comentários:

  1. Sim! Como eu disse na introdução eu tenho a mania ou obsessão de postar na íntegra os textos que por esse ou aquele motivo resolvi publicar aos pedaços. É o caso desta publicação.

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  2. Hoje sim, mas oscilando como um pêndulo. Ontem eu pesei em escrever um texto "choroso", cheio de fotos, mas não tive tempo. Aí o astral melhorou e o texto perdeu o sentido, pois soaria falso.

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  3. Desencane! Eu nunca pensei que o "aqui" se referisse ao Blogson. Eu quis apenas deixar claro que não me sinto à vontade de escrever piadas (meu passatempo predileto) ou textos com ironia se estiver deprimido. E vice-versa. Fique tranquilo!

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  4. Mudando de assunto, tenho a impressão de que nunca mais verei o cachorrinho bonitinho, pois a casinha e as vasilhas de água e ração que eram visíveis da rua sumiram. Talvez o vigia que o acolheu possa ter levado para casa.

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  5. O cachrrinho certamente não era um cão vadio, era um animalzinho que provavelmente encontrou um portão aberto e nunca mais conseguiu voltar. Daí suas reações inesperadas e curiosas. Eu também espero que ele fique definitivamente bem e de banho tomado, pois já estava com o pelo da cor de doce leite. Achei que gostaria de saber, por isso comentei.

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  6. Fabiano, preciso te dizer que está equivocado em muitas coisas que disse. Para começar, nunca fui durão, sou de trato suave e delicado, pois fui criado para ser assim. Aquele ditado de quem nunca comeu melado se aplica a mim, pois fui tão cerceado, podado que ao tentar me libertar devo ter passado do ponto, como no caso dos palavrões, que hoje uso de forma abusiva (mesmo que sem conotação sexual). Puta que pariu! e Caralho! são expressões que uso até perto de minhas netas e noras. Foda, fodido são outros exemplos de linguagem vulgar que às vezes nem percebo estar usando. Você nunca me causou bloqueio criativo, pois nunca ninguém conseguiu isso. O que tem acontecido é que pareço estar em um saara, um deserto de atacama de criatividade e falta de assunto. Isso nunca foi cupa sua ou de ninguém. Apenas sinto estar com a mente vazia, incapaz de pensar alguma coisa relevante ou engraçada. É como se eu tivesse esgotado minha cota de "ter o que dizer". Quanto ao remanejamento dos posts antigos para hoje é apenas uma tentativa de seduzir e conquistar novos leitores que esbarraram no blog (caso de uma médica a quem tive a cara de pau de indicar o blog. Ela acessou, gostou do que leu e disse que voltará outras vezes. Será?) Mas tem sido muito divertido reler posts antigos porque me surpreendo com coisas que escrevi e penso comigo que até que mandei bem. Esse tipo de post bacana, engraçado, lírico ou "inteligente" é que eu tenho remanejado para hoje. Apenas por um TOC pessoal deixo anotado a data original de quando foi escrito. Fico feliz de saber que você conhece muitos, mas apenas sugiro que não releia se perceber já tê-los lido. Acredite, estou me divertindo muito em fazer isso, pois compensa a falta atual do que dizer. Espero ter sido claro. E como disse antes, relaxe, fique tranquilo, você não me fez nada de ruim, não me inibiu nem me magoou. Lembrando uma piada (sincera) que fiz há mais tempo, eu não sou um macho alfa (nem beta), O máximo que eu sou é um macho zeta. Não sou nem nunca fui um "macho das antigas". Tenho um filho extremamente gozador que um dia me disse "Pai, se você demorasse mais cinco minutos para nascer você seria viado". O que eu fiz foi rir com ele.

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    1. Ah, tá bom! Então ficamos assim: eu sou durão, mas do tipo cabeça dura e teimoso, jamais do tipo que dá tapa na mesa, que quer ganhar no grito. Meus cunhados são todos machões, brigões, beberrões, etc. Quando comecei a namorar minha mulher um deles me estranhou tanto que disse para ela que eu era viado. Volto a dizer, sou super anti social, mas risonho, gentil, simpático, afável e todos os primos de minha mulher gostam de mim, falam bem de mim, etc. Mas eles não sabem que há um ogro interno, um ogro que caga mole para as pessoas, que é insensível, que tem zero solidariedade, que não move uma palha para ajudar ninguém. Esse cara sou eu. Durão? Acho que não. Dissimulado? SIIIIMMM!!!!

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    2. E digo mais: se eu fosse do tipo Robert de Niro eu teria seduzido todas as mulheres que já desejei. Porque esse sempre foi meu sonho: ser o cara que todo mundo quer ter como amigo (no caso dos homens) ou como amante (no caso das mulheres). Se você me conhecesse provavelmente me adoraria, pois eu tento seduzir quem se aproxima de mim (não necessariamente no sentido sexual, entenda bem). A minha carência afetiva me leva a ser assim (mas o ogro está sempre à espreita).

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