sábado, 31 de dezembro de 2022

TEMPO DE AGRADECER

Dias 31 de dezembro e primeiro de janeiro são datas que se destacam no calendário justamente porque marcam o fim um período de 365 dias e o início de nova contagem. Por não ser agricultor que precisa planejar os ciclos de plantio e posterior colheita de legumes, frutas e verduras essas datas têm pouca utilidade para mim. Para muita gente, entretanto, o início de um novo ciclo é muito importante e tem muitas (in)utilidades. Astrólogos, videntes, cartomantes e assemelhados, por exemplo, deitam e rolam.

Uma dessas inutilidades é planejar o que se pretende (deixar de) cumprir no novo ano. Mas pode ter uma função mais amistosa, mais carinhosa, que é agradecer. No meu caso, agradecer a todas as pessoas que acessaram o blog desde junho de 2014 e, em especial, às que se interessaram em clicar o botão “Seguir”, transformando-se imediatamente em minhas amigas e amigos virtuais.
 
Há amigos e amigas virtuais que nunca se preocuparam com esse “burocrático” botão, mas que, mesmo assim, foram das mais amistosas, gentis e divertidas pessoas a acessar o blog, caso da titular do extinto “Elemento Jota” e de “Lord Wilmore”, de paradeiro ignorado, mas sempre bem lembrado.
 
E há aqueles que por isso ou por aquilo resolveram abandonar a canoa furada do blog, caso da "Super Girl", do "Rocket" e do sempre participativo “Ozymandias Realista”, segundo amigo virtual do blog(!). Não importa. As lembranças que tenho de todos são as melhores e as mais sinceras possíveis. E esse é o motivo deste registro: fazer o que talvez seja meu último agradecimento por todos os momentos de diversão, euforia, perplexidade, irritação, alegria ou surpresa pelos comentários lidos aqui no blog, momentos que conseguiram diminuir um pouco a “solidão ampliada”.

Por tudo isso e a todos que ajudaram a manter vivo este blog mambembe e mal acabado eu desejo e torço para que 2023 seja um ano que traga principalmente felicidade e alegrias, especialmente para os atuais quatorze amigos e amigas virtuais do Blogson Crusoe, relacionados a seguir na ordem em que foram "detectados no radar” do blog. Obrigado a todas e todos, obrigado de coração.
 
A Marreta do Azarão
Scant S/A
PHKiws
GRF
Laryssa Bispo
Marina Araujo
Maju Marquezan
Fábio Carraro
Conrad SeisEnHofer
Mariana Guarnieri França
Mariana
EcT
John Ramalho
Fabiano Caldeira

 

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

ESPERANDO A CHEGADA DO ANO NOVO

 
Como sabem as leitoras e leitores mais frequentes desta bagaça, eu me formei em engenharia (depois de cinco anos de malandragem e irresponsabilidade) no jurássico ano de 1974. Naquela época o CREA ainda era “Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura”. Hoje a Arquitetura abandonou esse barco, preferindo navegar por conta própria. Não importa.
 
Ainda recém-formado, tive a oportunidade de conhecer um engenheiro já velhinho cujo número de registro era 23. Para se ter uma ideia da diferença de idade e de tempo de formado, meu registro é 13.000 e alguma coisa.
 
Hoje minha mulher pediu-me para levar um presentinho de Natal para uma senhora que foi sua professora primária (pois é...). Ao chegar ao portão do prédio onde mora essa nossa amiga, comecei a rir sozinho na rua (coisa de gente doida ou senil). E o fato causador foi a placa com identificação da responsável técnica de uma obra que está sendo executada perto da casa dessa senhora. O CREA da engenheira tem o número 155 mil e fumaça! É mole?
 
Aí não teve jeito: na hora, pensei na musiquinha da Globo que diz “Marcas do que se foi...”.

O engenheiro de número 23 há muito tempo deve estar “dormindo profundamente” e eu, com meu CREA 13.000 já posso começar a pensar em “arrumar minha cama”, torcendo para que a engenheira número 155.000 tenha sido mais responsável que eu. "O tempo passa, o tempo voa..."

MAIS UMA TEORIA INSTANTÂNEA

 
Não sei se esta é uma característica comum a todos os idosos, mas desde que comecei a envelhecer de forma mais acelerada tenho tido um interesse meio mórbido em saber quem morreu neste ou em outro ano qualquer. Talvez eu esteja apenas seguindo o verso da música que diz “cá pra nós, antes ele do que eu”.
 
Pois bem, depois da notícia da morte do ator Pedro Paulo Rangel, resolvi fazer um levantamento rápido dos famosos falecidos em 2022, um “who’s who da finitude atingida”.  Descobri que a Wikipédia tem uma relação mês a mês de quem “partiu para nunca mais”. Fui passando os olhos na lista e anotando os nomes de quem me trazia algum tipo de lembrança, por menor que fosse. E o resultado foi uma lista com setenta pessoas. Vários desses nomes são de estrangeiros famosos. Dessa lista tirei as seguintes informações:
 
- o tempo de vida médio desse grupo foi de 80,8 anos;
- 17 pessoas morreram com mais de 90 anos, 21 estavam na faixa de 81 a 90 anos, 24 estavam na faixa de 71 a 80 anos e 8 com menos de 70 anos.
- não me preocupei com a “causa mortis”. Em vez disso, resolvi descobrir quantos famosos morreram na faixa entre cinco anos a mais ou a menos que minha idade atual (72 anos). E o número de falecimentos é de apenas 18, ou 25% do total levantado.
 
E esse resultado fez surgir mais uma teoria miojo em minha cabeça (para quem não sabe, teoria miojo é aquela formulada em apenas três minutos e o resultado obtido é sempre uma merda):
 
Na verdade, a "teoria" é só a ratificação de um pensamento recorrente em minha cabeça. A reação mais previsível seria ficar mais atento e preocupado com o número de falecimentos de pessoas na faixa etária próxima à minha. No entanto, mesmo que eu fique mais focado nessa faixa, ela não é tão significativa se comparada com o total do levantamento feito (mesmo que sem nenhum rigor científico).
 
Tentando extrapolar essa conclusão para outras áreas do cotidiano, uma reflexão possível é a confirmação ou percepção de que as pessoas só prestam atenção, só se sensibilizam com as informações que validam, que vão ao encontro de suas preocupações (ou preconceitos), mesmo que a Realidade seja muito maior e mais abrangente. E que quanto mais ficamos focados nos nossos mundinhos, menos capazes somos de entender e até aceitar a diversidade à nossa volta.
(Jotabê esguicha psicologia aplicada, mesmo que seja de fabricação caseira).
 
E agora, para terminar, a relação dos falecidos em 2022 (vai falar que não estava interessado em saber!):
 
Richard Leakey - arqueólogo
Viktor Saneyev - atleta olímpico
Milton Gonçaves - ator
Pedro Paulo Rangel - ator
Ray Liotta - ator
Rubens Caribé - ator
Sidney Poitier - ator
William Hurt - ator (O Beijo da Mulher Aranha)
James Caan - ator (O Poderoso Chefão)
Robbie Coltrane - ator da série Harry Potter
Isaac Bardavid - ator e dublador
Jean Louis Trintignant - ator francês
Djenane Machado - atriz
Françoise Forton - atriz
Irene Papas - atriz
Maria Fernanda - atriz
Maria Lúcia Dahl - atriz
Marilu Bueno - atriz
Kirtie Alley - atriz americana multi premiada
Olívia Newton-John - atriz e cantora
Cláudia Jimenez - atriz e comediante
Ilka Soares - atriz e modelo
Monica Vitti - atriz italiana
Taylor Hawkins - baterista da banda Foo Fighters
Eder Jofre - boxeador
Cesar Costa Filho – cantor e compositor
Paulo Diniz - cantor
Ruy Maurity - cantor
Marcos Pitter - cantor brega
Leno - cantor da dupla Leno e Lilian (Jovem Guarda)
Rolando Boldrim - cantor e apresentador
Erasmo Carlos - cantor e compositor
Nico Fidenco - cantor italiano
Elza Soares - cantora
Gal Costa - cantora
Paulinha Abelha - cantora
Cláudio Hummes - cardeal
Arnaldo Jabor - cineasta
Jean Luc-Godard - cineasta
Peter Bogdanovich - cineasta
Gilberto Chateaubriand - colecionador de arte
Sérgio Paulo Rouanet - diplomata
Olavo Monteiro De Carvalho - empresário
Gil Cesar Moreira De Abreu - engenheiro chefe da construção do Mineirão
Ligia Fagundes Telles - escritora
Nelida Piñon - escritora
Ivana Trump - ex Donald Trump
Luiz Antonio Fleury - ex-governador de São Paulo
Luiz Galvão - fundador dos Novos Baianos
Newton Cruz – general
Olavo De Carvalho - guru e astrólogo
Batoré - humorista
Jô Soares - humorista
Elifas Andreato - ilustrador (muito foda!)
Isabel Salgado - jogadora de vôlei
Alberico De Souza Cruz - jornalista
Danuzza Leão - jornalista
Silvio Lancellotti - jornalista e gastrônomo
Dalmo Dalari - jurista
Edino Krieger - maestro
Henrique Morelembaum - maestro
Paulo Jobim - músico (e filho de Tom Jobim)
Jerry Lee Lewis - músico dos primórdios do rock and roll
Gary Brooker - músico fundador da banda Procol Harum
Vangelis - músico grego
Thiago De Mello - poeta
Mikhail Gorbatchev - político russo responsável pelo fim da União Soviética
Michael Lang - produtor do Festival de Woodstock
Tilden Santiago - professor universitário e político
Marilene Galvão - uma das Irmãs Galvão

Atualização: depois da publicação deste post o portal G1 fez uma reportagem ou levantamento com “As mortes que marcaram 2022 no Brasil e no mundo”. Aí ficou de colher para ver o retrato do pessoal. Para quem se interessar, o link é este:

 

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

OLHAÍ, FABIANO

 
Ao longo da existência do Blogson fui atendendo pedidos e sugestões de meus amigos virtuais. Nem preciso dizer que atendi a todos na maior alegria, pois cada pedido ou sugestão gerava nova postagem, o que, cá pra nós, é uma ótima oportunidade para driblar a falta de inspiração. Assim, minha lista de “tarefas executadas” incluiu textos com o CEP do Marreta, do Ozymandias e do GRF.
 
Pois bem, meu mais recente amigo virtual Fabiano Caldeira é um fabuloso ilustrador e desenhista, tão bom que acho um absurdo se seu talento não for aproveitado por agências de publicidade ou editoras de livros. E como ele gosta de quadrinhos e desenhos, resolvi apresentar a ele alguns posts antigos em abordei esse assunto.
 
Olhaí, Fabiano (claro, se quiser e nem precisa comentar nada):
 
https://blogsoncrusoe.blogspot.com/2020/07/anti-herois.html

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

GEMININIÑAS - 15

 
A mãe da Lelê e da Lulu tem um senso de humor incrível, escreve bem pra danar e tem a vantagem de já mandar o texto mastigado, faltando apenas formatá-lo. Olhaí:
 
 
Aqui em casa está rolando um papo sério sobre namoro e casamento. E estou até agora tentando saber a opinião da Lulu sobre o tema.
 
Cena 1:
- Papai, você é esposo da mamãe. E a mamãe é minha esposa.
- Não, Lulu. A mamãe não é sua esposa não.
- Ela é nossa, né?
 
Cena 2:
- Mamãe, a Minnie namora com o Mickey porque eles são ratinhos.
- Mas quem te disse que eles namoram, Lu? Será que eles não são só amigos?
- Mamãe, eles namoram, uai.
- E o que é namorar, Lulu?
- Não sei (sorriso)
 
Cena 2 um pouco depois:
- Mamãe, eu quero ser casada com você.
- Uai, Lulu...
 
Ela, notando que eu não ia concordar:
 
- Mas é só quando eu crescer, tá?
- Lulu, eu sou sua mamãe. Mãe e filha não se casam e já sou casada com o papai.
- Ah, então... você é casada com o papai e eu sou casada com a Lelê.
 
Dia desses dias no carro, voltando da escola:
 
- Mamãezinhaaaa, mamãezinha!
- O que foi, Luluzinha?
- Você é minha mamãezinha!
- Sou mesmo! E adoro ser sua mamãezinha. O Papai do Céu trouxe vocês para vida da mamãe para enchê-la de amor, alegria, emoções, transformações, desafios...
- Carinho... (Lulu completou)
- Isso mesmo, Lu, carinho também!
- Mamãe, mas Papai do Céu não vai querer devolver a gente não, né?
- Claro que não. Agora vocês são minhas filhinhas.
 
 
Agora, essas duas para mim são o máximo da inteligência emocional. A Lulu tem um temperamento explosivo, então tem uns rompantes de raiva. Um dia estava em crise de choro, não lembro mais por que, mas em determinado momento, falou:
 
- Mamãe, me ajuda a me acalmar.
 
E em outro dia, ela estava chorando (também não lembro o motivo) e eu falei:
 
- Lu, agora mamãe tem que pentear seu cabelo para você ir para a escola. 
- Mamãe, espera eu me acalmar primeiro.
 
Ela percebeu que eu choro (muitas vezes) quando leio o livro “A Árvore Generosa”. Daí, quando vou ler, ela olha mais para a minha cara do que para o livro.
 

Frases tchutchucas:

- Mamãe, eu vou cuidar de você para toda vida! (Lulu)
-
 Papai, põe as luzes na janela, pro Papai Noel achar nossa casa. (Bia e Cacá)

domingo, 25 de dezembro de 2022

E ENTÃO É NATAL?

 
E então é Natal... Que merda, heim?
 
Não gostou do que eu disse? Mas não estou falando do simbolismo e da origem religiosa do Natal, merecedora do meu máximo respeito. A crítica é endereçada à sua vertente secular, mundana. Captou? Não? Então, por favor, não atire ainda a primeira pedra (nem a segunda!), que eu vou tentar explicar o motivo.
 
Quando eu estava na primeira infância só havia duas crianças com quem eu e meu irmão podíamos brincar, que eram nossos primos ricos (muito ricos). Durante a maior parte do ano os encontros semanais eram só motivo de alegria. Entretanto, com a chegada do Natal tudo se modificava. Especificamente no dia 25 de dezembro eles iam à casa de nossa avó (onde morávamos) e era aquela exibição dos brinquedos mais maravilhosos, mais espetaculares, mais inatingíveis para nós. Era uma profusão de brinquedos a pilha, com controle remoto, bicicletas, patinetes, espingardas de chumbinho, mesinha de sinuca, de totó, brinquedos italianos importados de fazer cair o queixo e de encher os olhos – de tristeza, pois a indigência dos poucos presentes que ganhávamos era gritante, especialmente se comparada com a opulência e magnificência dos presentes dos primos.
 
O tempo passou, eu cresci, passei a não ligar para o Natal -  nem para sua origem religiosa nem para essa quintessência do consumismo desenfreado. Depois de me formar na faculdade, passei a ganhar muito bem (pelo menos, na visão de quem nunca tinha tido nada). Logo depois me casei e um ano depois nasceu nosso primeiro filho, às 11h30 do dia 25 de dezembro.
 
A partir daí o Natal adquiriu novo significado para mim, pois acabara de ganhar um dos quatro melhores presentes que já ganhei em toda a minha vida. Nessa época as festas na casa de minha sogra eram ruidosas, alegres e cheias de gente – parentes, amigos de parentes, amigos, parentes de amigos, amigos de filhos, amigas de filhas. Era uma balbúrdia feliz e acolhedora.
 
Pouco mais de um ano depois, nasceram nosso segundo filho e alguns sobrinhos. O Natal passou a ser definitivamente dividido em duas partes, o antes e o depois da entrega dos presentes, amontoados debaixo da árvore da casa de minha sogra. Nessa época minha mulher chegou ao paroxismo de comprar presentes para setenta pessoas diferentes.
 
E logo houve mais uma mudança no Natal, imperceptível  a princípio. Uma de minhas cunhadas engravidou e tornou-se a mãe solo de um menino que tinha um sorriso meio triste. Despreocupados com isso, inundávamos nossos filhos com todo tipo de presente que podíamos imaginar – carrinhos dirigíveis, bicicletas, skates, brinquedos a pilha, ferrorama, robô Arhur, carrinhos de controle remoto, castelo de Grayskull, todo tipo de brinquedos Lego e Comandos em Ação, etc.
 
Sem que eu percebesse, nossos filhos mais velhos provocavam nesse sobrinho os mesmos sentimentos que meus primos tinham provocado em mim. Às vezes tentávamos amenizar isso dando um presente mais caropara ele, mas a diferença era gritante.
 
Depois disso passei a me perguntar que tipo de sentimento o Natal produzia nas crianças. Fodam-se os adultos, mais interessados na ceia farta do dia 24 e nos tonéis de cerveja emborcados alegremente. O que passou a me martirizar foi imaginar o que se passava na cabeça das crianças pobres ao ver na manhã do dia 25 os filhos de gente mais abonada exibindo suas bicicletas novinhas, seus patins, suas bonecas “Amiguinha”. E esse sentimento detonou definitivamente o Natal para mim.
 
Hoje eu chego quase a odiar o Natal, justamente por essa sensação de injustiça e desigualdade que a data carrega. E não me preocupo com os adultos, pois eu sei e concordo com a frase "a cada um de acordo com o seu merecimento", mas como explicar isso a uma criança? O que eu tenho pena mesmo é das crianças mais pobres com seu olhar pidão, brincando com seus carrinhos de 1,99 enquanto olham o desfile de brinquedos que nunca poderão ganhar. E sinto que estou voltando no tempo, pois com a merreca que ganho hoje como aposentado não tenho mais condição de comprar presentes minimamente decentes para as netinhas e para nossos filhos. E tudo isso me deixa triste, profundamente triste.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

PRESENTE DE GREGO PARA OS GREGOS

 
Deus na mídia, ou melhor, Deu na mídia:
 
“Expulso da Igreja do Peru, Padre Kelmon será bispo de grupo religioso grego”
 
Essa notícia me faz pensar que, pelo jeito, os gregos parecem não perceber estar recebendo um presente “reverso”.
 
Reverso sim, pois a origem da expressão “presente de grego” está associada a um mitológico cavalo de madeira deixado “de presente” para os inimigos troianos.
 
Curiosamente, o padre santo foi mais ou menos isso nas últimas eleições, uma espécie de cavalo de troia para os desvarios do mensaleiro (e CAC!) Roberto Jefferson.
 
Mas eu, se fosse o Kinder, abandonaria a ortodoxia religiosa, abriria uma igreja evangélica preferencialmente neopentecostal e me prepararia para enricar. Sugiro até um nome: Igreja Multinacional das Promissórias de Cristo
 

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

SONHEI QUE TINHA GENTE LÁ FORA

 
Depois de acordar para aplicar insulina em minha mulher, estava eu pronto para deitar novamente e dormir o sono dos injustos e ter os pesadelos dos desgraçados. Entretanto, por hábito ou por vício resolvi dar uma espiada no blog de um amigo virtual, pois tive a má ideia de fazer um comentário irônico sobre um post ali publicado. Má ideia por não resistir a comentar o que me incomoda e pior ideia por não conseguir usar toda a ironia e sarcasmo que gostaria de ser capaz de usar.
 
E tudo começou por ter chamado de “escória” os idiotas acampados em frente aos quartéis, sempre pedindo, sempre esperando uma reação dos militares a uma situação que consideram injusta e, mais ainda, cheia de "ilegalidades". Ainda bem que esse amigo virtual não é um dos desocupados acampados, pois eu ficaria extremamente decepcionado se fizesse isso!
 
Eu conheço algumas pessoas (não muitas, graças a Deus!) que se dispuseram a exibir sua falta total de bom senso, sua intolerância e desprezo pelas leis e pela legalidade. Uma senhora que conheço – viúva, de voz estridente e desagradável (não só a voz) – gasta uma grana todo santo dia (ela é muito piedosa) para cumprir seu plantão da insensatez: chama um uber pela manhã, chama outro para voltar à tarde para casa. Não sei o que come nem aonde. Sei apenas que não tem filhos (o que é uma sorte para as crianças que não gerou) e que talvez ache que prestar-se a esse ridículo diário é a missão de sua vida - ou do tempo que lhe resta.
 
Eu sei que boa parte das pessoas que se reúne nesses lugares é composta de idosos (que não têm blog, pois se tivessem não estariam perdendo tempo à espera de um milagre), gente bem estabelecida, abonada, com a vida ganha (ou perdida, segundo as más línguas), pessoas religiosas, piedosas, que nunca falam mal da vida de ninguém que não conheçam e que não se importam com regimes autoritários – desde que mantenham o país livre do bicho papão do comunismo ateu, desejo esse que deve ter permanecido em suas mentes desde as últimas lavagens cerebrais promovidas principalmente nas décadas de 1960 e1970.
 
Sim, eu sei que chamar de “escória” foi uma reação irrefletida, pois “Escória é um termo pejorativo usado para se referir a camada socialmente desfavorecida da sociedade. Em suma, consiste nas pessoas consideradas desprezíveis, inferiores e irrelevantes dentro de um grupo social”, pois tudo o que nunca aconteceu a essa gente foi pertencer às camadas socialmente desfavorecidas da sociedade.
 
Talvez fosse mais razoável ter usado a palavra “súcia”, que o dicionário define como “reunião de indivíduos de má índole ou de má fama”. Acreditar que possuem má índole aqueles que desejam e pregam o desrespeito a todo um processo realizado dentro da legalidade é bastante razoável, mas é injusto considerá-los de “má fama”. Seria o mesmo que chamá-los de “choldra”, que o sempre inconveniente dicionário define como um “Bando de pessoas consideradas desprezíveis ou de mau caráter”.
 
Por não conhecê-los (graças a Deus!), não posso alardear seu mau caráter, mas uma coisa eu posso fazer, pois é uma opinião minha: por eu ser contra todo tipo de radicalismo e extremismo (especialmente se for costurado com religião) eu considero desprezível esse grupo (escolar) de gente infantilizada, como desprezíveis são seus participantes, pois eu rejeito, desprezo e condeno seu apreço por um improvável golpe e por sua recusa em aceitar a Realidade.
 
Quando um sujeito de centro resolve criticar a extrema esquerda ou a extrema direita, ele corre o risco de ser considerado um alienado. E por eu ser assim, de centro e obviamente alienado, preciso dar um jeito de fechar o Blogson, parar de brincar de blogueiro, evitar fazer comentários em blogs alheios, pois não o fazendo tenho certeza de que já estaria dormindo serena e alienadamente a uma hora dessas.
 

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

VAMOS A LA PLAYA

 
Este texto é a compilação dos três posts publicados sob o título "Pegando um bronze". Resolvi fazê-lo pois acredito ter identificado via Google Maps a prainha onde há 52 anos eu, meu irmão e um amigo tentamos dormir logo após chegar a Guarapari . Há duas hipóteses: uma prainha com apenas 23 metros de largura (imagino que deve ser boa para namorar) e outra, ainda menor, minúscula mesmo. Meu GPS de memória sugere que talvez seja essa menor a que realmente escolhemos para passar a noite, pois a lembrança que eu guardo do lugar é de uma prainha muito pequena e estreita e com acentuada inclinação. No meio do texto podem ser vistas fotos das opções 1 e 2 (estou me sentindo um arqueólogo sentimental!). Em compensação, identifiquei o prédio e estacionamento mencionados nesta história. Essa informação é importante? Claro que não! Olha a visão Google Maps da região na atualidade:


No inimaginável ano de 1970 meu irmão namorava uma menina que eu também conhecia. Nunca confirmei essa história, mas ouvi dizer que embora ela namorasse meu brother, estava mais interessada em mim. Porra, por que ficou escondendo jogo? Eu jamais trairia meu irmão, mas sempre fui a favor do ditado “rei morto, rei posto”. Mas não é sobre essa figura geométrica euclidiana sentimental e platônica que quero falar. Por isso, continuemos.
 
Os pais dessa menina resolveram passar uns dias em Guarapari, em um hotel ou apart-hotel em que tinham feito reserva ou a que tinham direito de se hospedar, não me lembro mais. Arrumaram malas e cuias em uma Vemaguete, puseram as três filhas dentro e se mandaram.
 
Além da namorada de meu irmão, a irmã mais velha também tinha seu boy friend, um cara gente boa pra caramba (eu conhecia a família toda). Por isso, com a viagem já definida, os namorados também resolveram pegar uma praia (pois já estavam pegando as meninas). Aqui um pequeno parêntese: meu irmão sempre me chamou para também fazer o que achava bom. E esse carinho de irmão mais velho eu jamais esquecerei (mesmo que hoje não converse mais com ele). Por isso, perguntou se eu também não quereria pegar um bronze na praia dos mineiros.
 
O “lógico!” talvez não tenha sido instantâneo, pois não tinha grana, não tinha onde ficar e continuava com dor de corno pelo término do namoro com o Amor da minha vida. Mas resolvi encarar. Conhecia uma menina deliciosa (que me pergunto por que nunca tentei uma aproximação, mas acho que a resposta estava na minha indigência, magreza e feiura), que me emprestou dois sacos de dormir (os sleeping bags da música do Gil). Depois disso, partiu Guarapari!
 
A viagem foi feita de trem até Vitória, aonde chegamos com a bunda quadrada por volta das 16 horas (e depois de umas dezoito horas de viagem, sem sacanagem). Durante as próximas duas horas ficamos coçando saco na cidade até pegar um ônibus cheio que nos deixou em Guarapari. Como estávamos varados de fome por não ter almoçado, resolvemos comer alguma coisa primeiro, antes de procurar as meninas (pelo menos naquele momento, creio que nenhum dos dois estava pensando em comer as namoradas. Piada ruim e machista!).
 
Paramos em um botequim copo sujo cuja porta, segundo a lenda, havia dez anos que não fechava (mas creio que não era charme, era ferrugem mesmo). Eu era um caipira que nunca tinha comido um PF; por isso, avisei aos dois companheiros de sofrimento que comeria tudo o que viesse no prato. E comi.
 
Os pratos que chegaram tinham uma forma montanhosa, de tal forma que ao atacar o arroz um pouco de feijão caia na mesa. Se o foco era o ovo ou o bife de carne de segunda, era a vez do arroz cair. Comi macarronada (que odeio até hoje), e cebola crua, que passei a amar. Para quem já estava meio puto e de saco cheio, aquela comilança foi um providencial antidepressivo natural.
 
Depois disso, sabendo o endereço onde estavam hospedadas as meninas, saímos à procura do hotel. Esse hotel ficava separado da praia por uma espécie de falésia, pois era construído sobre um platô uns trinta metros acima do nível do mar.
 
 
Não foi difícil encontrar o hotel, pois ele se destacava na paisagem por ser um prédio alto em uma área mais deserta. Depois de uma caminhada de um quilômetro, talvez menos, chegamos ao lugar onde a família estava hospedada. Não sei se meu irmão e nosso amigo conseguiram manter contatos imediatos de terceiro grau com as namoradas. Só sei que resolvemos dormir por ali. Onde? Na praia, lógico!
 
Descendo do platô onde fica o prédio para a beira mar, há uma prainha muito, muito pequena, com uma inclinação mais acentuada, condição que entendemos ser favorável para não ser atingidos pela água se a maré subisse mais. Feita a escolha, decidida a questão, eu e meu irmão desenrolamos os sacos de dormir, enfiamo-nos neles e foda-se o resto. Para ser sincero, a verdade não foi bem essa. Nosso amigo trazia apenas a mochila de roupas, que acabou servindo de travesseiro. Fizemos o mesmo com nossas tralhas e tentamos dormir. Cinquenta e dois anos depois, creio ter identificado a prainha onde dormimos um dia. Na verdade a identificação não é muito precisa, pois há duas boas opções. Intimamente creio que a primeira imagem é que corresponde ao local do nosso "acampamento", mas a segunda também é viável. E claro, é bom lembrar que naquela época as construções que aparecem ao fundo não existiam. Olhaí.

 Prainha opção 1  - provavelmente a que foi escolhida para passar a noite


Prainha opção 2

Pensem bem: três matutos mineiros tentando dormir em uma praia desconhecida, com medo do mar subir e de animais que porventura resolvessem aparecer por ali (cobras, caranguejos). Dormimos, dormimos mal, dormimos um sono inquieto, desconfortável. Quando o dia clareou eu já estava decidido a voltar para casa, pois programa de índio assim era demais para minha cabeça.
 
E fomos encontrar as meninas, que estavam tomando café com os pais. A mudança de ânimo aconteceu ali. O café do lugar era farto e conseguimos ser convidados pela família para nos juntar a eles. Comi o que podia comer, repeti o que podia repetir e a Vida ganhou luz, calor. Trocamos de roupa no apartamento da família e fomos para a praia. Já nem me lembrava mais de uma hora antes ter abominado aquela viagem e o desconforto sentido até então.
 
À noite, continuávamos com o problema de onde dormir. No prédio não podia e na praia, nem fodendo. A solução deve ter sido dada pelo sogrão. Nós poderíamos dormir dentro de sua Vemaguete! Abria-se a tampa do porta-malas, rebatia-se o encosto do banco traseiro et voilá! Duas pessoas “otimamente” acomodadas dentro de seus sacos de dormir (mesmo que os pés ficassem para fora do carro). Mas éramos três! A solução possível foi o namorado da filha mais velha ajeitar-se, contorcer-se no banco da frente. E o pior é que ele era alto como nós (mais de 1,80m).
 
Essa situação durou apenas uns dois dias. Meu irmão resolveu alugar uma bicicleta, derrapou na areia, caiu, cortou o braço, deu alguns pontos e recebeu a recomendação de tomar antibiótico de oito em oito horas. Como tomar esse medicamento com hora marcada dormindo dentro de um carro no estacionamento?
 
É nessas horas que você vê que a Providência Divina existe e que Deus protege os insensatos. A solução foi colocar meu irmão acidentado dentro do apartamento, com a sogrinha trocando o curativo e controlando os horários do remédio. E a traseira do carro ficou extremamente confortável para duas pessoas, mesmo que só eu tivesse o saco de dormir. A partir daí foi só alegria e praia todo dia. Não me lembro mais como nem onde almoçávamos, um problema menor para mim, que era magro como um espeto.
 
E se alguém perguntar se tentei pegar a irmã mais nova, direi que não, por dois motivos: era ainda muito nova, talvez com uns quinze anos e aparentava não sentir atração por rapazes, ainda mais quando feios, magros e carecas, pois me esqueci de dizer que estava com a cabeça raspada por ter sido aprovado no vestibular de engenharia. Pegaria a irmã, mais feinha, mas com um tchans muito atraente. Só que era a namorada de meu irmão, pô!
 
 
Eu estava de cabeça raspada, era super magro mas ainda tinha uma barriga de tanquinho (herança dos tempos da natação) e usava uma sunga super minúscula. Saí da água e sentei-me na areia. Coincidência ou não, logo um sujeito fortão, um maçaranduba uns vinte anos mais velho que eu sentou perto. E puxou conversa. “Água boa, sol quente, vai pular carnaval?” Fiquei meio cabreiro, imaginando que ele poderia estar com algum tipo de pensamento inadequado. "Comigo não, mané, aqui não rôla nada, ou melhor, não rola”. Mas logo percebi que só estava interessado em fazer negócio, estava só prospectando clientes potenciais.
 
Contou-me que era o chefe da segurança do clube local e perguntou se eu iria pular carnaval, pois o Rei Momo já estava prestes a começar seu reinado de quatro dias (naquela época). Disse a ele que não, que estava duro, mas perguntei se me deixaria entrar na festa sem pagar. Falou que tentaria, que era para aparecer lá na porta e mandar chamá-lo. Beleza!
 
Na primeira noite, à falta de roupa melhor, vesti só uma calça jeans (não tinha bermuda) e peguei um colar riponga emprestado das meninas, feito todo de continhas multicoloridas. Imaginou a figura? Magro, careca, sem camisa e com um colar idiota balançando no peito. A quem eu iria interessar?
 
Cheguei à porta do clube, cheio de gente querendo entrar, comprar ingresso, etc. e pedi para chamar o fodão. Chegou e já foi avisando: “se você conseguir uns dez caras para comprar ingresso na minha mão eu te deixo entrar.” O cara precisava era de cambistas e embolsaria todo o dinheiro conseguido assim!
 
E lá foi o mané chegando perto de todo mundo e oferecendo essa pechincha. Não me lembro de ter “batido a meta” da contravenção, mas insisti para que me deixasse entrar. Meio a contragosto, concordou.
 
Ao entrar no salão o pau já estava quebrando, mas era diferente de BH. Na minha cidade as moças desacompanhadas e os casais ficavam “giramarchando” em volta do salão, enquanto os homens solteiros ficavam à espreita, prontos para atacar a primeira que olhasse em sua direção (foi assim que comecei a namorar minha Amada). Mas lá, não. Lá as gostosas ficavam brincando em cima das mesas, deixando o salão para casais e homens desacompanhados. Tentei convencer algumas a descer da mesa, mas fui totalmente ignorado.
 
Ainda deu para ver a chegada de um cantor “famoso”. “Famoso” e seboso, conhecido depois como Fábio Stella graças a seu único sucesso conhecido (“Stella-a-a! em que estrela você se escondeu?”).
 
Lá pelo meio da noite, sem grana para tomar uma mísera coca cola, sozinho, desacompanhado e sem conseguir pegar ninguém, a solução foi voltar para a Vemaguete. Nas noites de domingo e segunda-feira aconteceu a mesma coisa. Só o que mudou foi ter devolvido a porra daquele colar idiota. Na terça feira gorda não quis nem saber se índio queria apito ou não, pois já estava de saco cheio de tanto programa de índio.
 
Se você, cara leitora, estimado leitor, espera uma lição de moral extraída de uma fábula praiana, só posso dizer que esse episódio deprimente foi tudo, menos uma fábula. E que moral mesmo só existe em fábulas. Na vida real sempre é possível encontrar alguma imoralidade, amoralidade ou as duas juntas. E fim.

 

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

O COLOCADOR DE PRONOMES - MONTEIRO LOBATO

Meu amigo virtual Fabiano Caldeira escreveu em seu blog Socializando 20 um texto muito bom  onde ele fala das expectativas e anseios dos escritores inéditos, loucos para ver sua obra impressa em papel. Na hora lembrei-me de um conto muito engraçado do Monteiro Lobato sobre um gramático que paga de seu próprio bolso a impressão de um "tratado sobre a colocação de pronomes”. O resto vocês poderão ler no texto abaixo. Antes, uma curiosidade: foi lendo um dos trechos mais hilários do conto que eu aprendi o uso correto da "partícula apassivadora". Não sabe o que é, né? Leia o conto, leia o conto!


Aldrovando Cantagalo veio ao mundo em virtude dum erro de gramática.

Durante sessenta anos de vida terrena pererecou como um peru em cima da gramática.

E morreu, afinal, vítima dum novo erro de gramática.

Mártir da gramática, fique este documento da sua vida como pedra angular para uma futura e bem merecida canonização,

Havia em Itaoca um pobre moço que definhava de tédio no fundo de um cartório. Escrevente. Vinte e três anos. Magro. Ar um tanto palerma. Ledor de versos lacrimogêneos e pai duns acrósticos dados à luz no “Itaoquense” , com bastante sucesso.

Vivia em paz com as suas certidões quando o frechou venenosa seta de Cupido. Objeto amado: a filha mais moça do coronel Triburtino, o qual tinha duas, essa Laurinha, do escrevente, então nos dezessete, e a do Carmo, encalhe da família, vesga, madurota, histérica, manca da perna esquerda e um tanto aluada.

Triburtino não era homem de brincadeira. Esguelara um vereador oposicionista em plena sessão da câmara e desd’aí se transformou no tutú da terra. Toda gente lhe tinha um vago medo; mas o amor, que é mais forte que a morte, não receia sobrecenhos enfarruscados nem tufos de cabelos no nariz.

Ousou o escrevente namorar-lhe a filha, apesar da distância hierárquica que os separava. Namoro à moda velha, já se vê, pois que nesse tempo não existia a gostorura dos cinemas. Encontros na igreja, à missa, troca de olhares, diálogos de flores – o que havia de inocente e puro. Depois, roupa nova, ponta de lenço de seda a entremostrar-se no bolsinho de cima e medição de passos na rua d’Ela, nos dia de folga. Depois, a serenata fatal à esquina, com o

Acorda, donzela…

Sapecado a medo num velho pinho de empréstimo. Depois, bilhetinho perfumado.

Aqui se estrepou…

Escrevera nesse bilhetinho, entretanto, apenas quatro palavras, afora pontos exclamativos e reticências:

Anjo adorado!

Amo-lhe!

Para abrir o jogo bastava esse movimento de peão. Ora, aconteceu que o pai do anjo apanhou o bilhetinho celestial e, depois de três dias de sobrecenho carregado, mandou chamá-lo à sua presença, com disfarce de pretexto – para umas certidõesinhas, explicou.

Apesar disso o moço veio um tanto ressabiado, com a pulga atrás da orelha.

Não lhe erravam os pressentimentos. Mas o pilhou portas aquém, o coronel trancou o escritório, fechou a carranca e disse:

– A família Triburtino de Mendonça é a mais honrada desta terra, e eu, seu chefe natural, não permitirei nunca – nunca, ouviu? – que contra ela se cometa o menor deslize.

Parou. Abriu uma gaveta. Tirou de dentro o bilhetinho cor de rosa, desdobrou-o

– É sua esta peça de flagrante delito?

O escrevente, a tremer, balbuciou medrosa confirmação.

– Muito bem! Continuou o coronel em tom mais sereno. Ama, então, minha filha e tem a audácia de o declarar… Pois agora…

O escrevente, por instinto, ergueu o braço para defender a cabeça e relanceou os olhos para a rua, sondando uma retirada estratégica.

– … é casar! Concluiu de improviso o vingativo pai.

O escrevente ressuscitou. Abriu os olhos e a boca, num pasmo. Depois, tornando a si, comoveu-se e com lágrimas nos olhos disse, gaguejante:

– Beijo-lhe as mãos, coronel! Nunca imaginei tanta generosidade em peito humano! Agora vejo com que injustiça o julgam aí fora!…

Velhacamente o velho cortou-lhe o fio das expansões.

– Nada de frases, moço, vamos ao que serve: declaro-o solenemente noivo de minha filha!

E voltando-se para dentro, gritou:

– Do Carmo! Venha abraçar o teu noivo!

O escrevente piscou seis vezes e, enchendo-se de coragem, corrigiu o erro.

– Laurinha, quer o coronel dizer…

O velho fechou de novo a carranca.

– Sei onde trago o nariz, moço. Vassuncê mandou este bilhete à Laurinha dizendo que ama-”lhe”. Se amasse a ela deveria dezer amo-”te”. Dizendo “amo-lhe” declara que ama a uma terceira pessoa, a qual não pode ser senão a Maria do Carmo. Salvo se declara amor à minha mulher…

– Oh, coronel…

– … ou a preta Luzia, cozinheira. Escolha!

O escrevente, vencido, derrubou a cabeça com uma lágrima a escorrer rumo à asa do nariz. Silenciaram ambos, em pausa de tragédia. Por fim o coronel, batendo-lhe no ombro paternalmente, repetiu a boa lição da gramática matrimonial.

– Os pronomes, como sabe, são três: da primeira pessoa – quem fala, e neste caso vassuncê; da segunda pessoa – a quem fala, e neste caso Laurinha; da terceira pessoa – de quem se fala, e neste caso do Carmo, minha mulher ou a preta. Escolha!

Não havia fuga possível.

O escrevente ergueu os olhos e viu do Carmo que entrava, muito lampeira da vida, torcendo acanhada a ponta do avental. Viu também sobre a secretária uma garrucha com espoleta nova ao alcance do maquiavélico pai, submeteu-se e abraçou a urucaca, enquanto o velho, estendendo as mãos, dizia teatralmente:

– Deus vos abençoe, meus filhos!

No mês seguinte, e onze meses depois vagia nas mãos da parteira o futuro professor Aldrovando, o conspícuo sabedor de língua que durante cinquenta anos a fio coçaria na gramática a sua incurável sarna filológica.

Até aos dez anos não revelou Aldrovando pinta nenhuma. Menino vulgar, tossiu a coqueluche em tempo próprio, teve o sarampo da praxe, mas a caxumba e a catapora. Mais tarde, no colégio, enquanto os outros enchiam as horas de estudo com invenções de matar o tempo – empalamento de moscas e moidelas das respectivas cabecinhas entre duas folhas de papel, coisa de ver o desenho que saía – Aldrovando apalpava com erótica emoção a gramática de Augusto Freire da Silva. Era o latejar do furúnculo filológico que o determinaria na vida, para matá-lo, afinal…

Deixêmo-lo, porém, evoluir e tomêmo-lo quando nos serve, aos 40 anos, já a descer o morro, arcado ao peso da ciência e combalido de rins. Lá está ele em seu gabinete de trabalho, fossando à luz dum lampião os pronomes de Filinto Elísio. Corcovado, magro, seco, óculos de latão no nariz, careca, celibatário impenitente, dez horas de aulas por dia, duzentos mil réis por mês e o rim volta e meia a fazer-se lembrado.

Já leu tudo. Sua vida foi sempre o mesmo poento idílio com as veneráveis costaneiras onde cabeceiam os clássicos lusitanos. Versou-os um por um com mão diurna e noturna. Sabe-os de cor, conhece-os pela morrinha, distingue pelo faro uma seca de Lucena duma esfalfa de Rodrigues Lobo. Digeriu todas as patranhas de Fernão Mendes Pinto. Obstruiu-se da broa encruada de Fr. Pantaleão do Aveiro. Na idade em que os rapazes correm atrás das raparigas, Aldrovando escabichava belchiores na pista dos mais esquecidos mestres da boa arte de maçar. Nunca dormiu entre braços de mulher. A mulher e o amor – mundo, diabo e carne eram para ele os alfarrábios freiráticos do quinhentismo, em cuja soporosa verborreia espapaçava os instintos lerdos, como porco em lameiro.

Em certa época viveu três anos acampado em Vieira. Depois vagabundeou, como um Robinson, pelas florestas de Bernardes.

Aldrovando nada sabia do mundo atual. Desprezava a natureza, negava o presente. Passarinho conhecia um só: o rouxinol de Bernadim Ribeiro. E se acaso o sabiá de Gonçalves Dias vinha citar “pomos de Hespérides” na laranjeira do seu quintal, Aldrovando esfogueteava-o com apostrofes:

– Salta fora, regionalismo de má sonância!

A língua lusa era-lhe um tabu sagrado que atingira a perfeição com Fr. Luiz de Sousa, e daí para cá, salvo lucilações esporádicas, vinha chafurdando no ingranzéu barbaresco.

– A inglesia d’hoje, declamava ele, está para a Língua, como o cadáver em putrefação está para o corpo vivo.

E suspirava, condoído dos nossos destinos:

– Povo sem língua!… Não me sorri o futuro de Vera-Cruz…

E não lhe objetassem que a língua é organismo vivo e que a temos a evoluir na boca do povo.

– Língua? Chama você língua à garabulha bordalenga que estampam periódicos? Cá está um desses galicígrafos. Deletreemo-lo ao acaso.

E, baixando as cangalhas, lia:

– Teve lugar ontem… É língua esta espurcícia negral? Ó meu seráfico Frei Luiz, como te conspurcam o divino idioma estes sarrafaçais da moxinifada!

– … no Trianon… Por que, Trianon? Por que este perene barbarizar com alienígenos arrevezos? Tão bem ficava – a Benfica, ou, se querem neologismo de bom cunho o Logratório…Tarelos é que são, tarelos!

E suspirava deveras compungido.

– Inútil prosseguir. A folha inteira cacografa-se por este teor. Aí! Onde param as boas letras d’antanho? Fez-se peru o níveo cisne. Ninguém atende à lei suma – Horácio! Impera o desprimor, e o mau gosto vige como suprema regra. A gálica intrujice é maré sem vazante. Quando penetro num livreiro o coração se me confrange ante o pélago de óperas barbarescas que nos vertem cá mercadores de má morte. E é de notar, outrossim, que a elas se vão as preferências do vulgacho. Muito não faz que vi com estes olhos um gentil mancebo preferir uma sordícia de Oitavo Mirbelo-Canhenho duma dama de servir, creio, à… adivinhe ao que, amigo? A Carta de Guia do meu divino Francisco Manoel!…

– Mas a evolução…

– Basta. Conheço às sobejas a escolástica da época, a “evolução” darwinica, os vocábulos macacos – pitecofonemas que evolveram, perderam o pelo e se vestem hoje à moda de França, com vidro no olho. Por amor a Frei Luiz, que ali daquela costaneira escandalizado nos ouve, não remanche o amigo na esquipática sesquipedalice.

Um biógrafo ao molde clássico separaria a vida de Aldrovando em duas fases distingas: a estática, em que apenas acumulou ciência, e a dinâmica, em que, transfeito em apóstolo, veio a campo com todas as armas para contrabater o monstro da corrupção.

Abriu campanha com memorável ofício ao congresso, pedindo leis repressivas contra os ácaros do idioma.

– Leis, senhores, leis de Dracão, que diques sejam, e fossados, e alcaçares de granito prepostos à defensão do idioma. Mister sendo, a forca se restaure, que mais o baraço merece quem conspurca o sacro patrimônio da sã vernaculidade, que quem ao semelhante a vida tira. Vede, senhores, os pronomes, em que lazeira jazem…

Os pronomes, ai! eram a tortura permanente do professor Aldrovando. Doía-lhe como punhalada vê-los por aí pré ou pospostos contra regras elementares do dizer castiço. E sua representação alargou-se nesse pormenor, flagelante, concitando os pais da pátria à criação dum Santo Ofício gramatical.

Os ignaros congressistas, porém, riram-se da memória, e grandemente piaram sobre Aldrovando as mais cruéis chalaças.

– Quer que instituamos patíbulo para os maus colocadores de pronomes! Isto seria auto-condenar-nos à morte! Tinha graça!

Também lhe foi à pele a imprensa, com pilhérias soezes. E depois, o público. Ninguém alcançara a nobreza do seu gesto, e Aldrovando, com a mortificação n’alma, teve que mudar de rumo. Planeou recorrer ao púlpito dos jornais. Para isso mister foi, antes de nada, vencer o seu velho engulho pelos “galicígrafos de papel e graxa”. Transigiu e, breve, desses “pulmões da pública opinião” apostrofou o país com o verbo tonante de Ezequiel. Encheu colunas e colunas de objurgatórias ultra violentas, escritas no mais estreme vernáculo.

Mas não foi entendido. Raro leitor metia os dentes naqueles intermináveis períodos engrenados à moda de Lucena; e ao cabo da aspérrima campanha viu que pregara em pleno deserto. Leram-no apenas a meia dúzia de Aldrovandos que vegetam sempre em toda parte, como notas rezinguentas da sinfonia universal.

A massa dos leitores, entretanto, essa permaneceu alheia aos flamívomos pelouros da sua colubrina sem raia. E por fim os “periódicos” fecharam-lhe a porta no nariz, alegando falta de espaço e coisas.

– Espaço não há para as sãs idéias, objurgou o enxotado, mas sobeja, e pressuroso, para quanto recende à podriqueira!… Gomorra! Sodoma! Fogos do céu virão um dia alimpar-vos a gafa!… exclamou, profético, sacudindo à soleira da redação o pó das cambaias botinas de elástico.

Tentou em seguida ação mais direta, abrindo consultório gramatical.

– Têm-nos os físicos (queria dizer médicos), os doutores em leis, os charlatães de toda espécie. Abra-se um para a medicação da grande enferma, a língua. Gratuito, já se vê, que me não move amor de bens terrenos.

Falhou a nova tentativa. Apenas moscas vagabundas vinham esvoejar na salinha modesta do apóstolo. Criatura humana nem uma só lá apareceu afim de remendar-se filologicamente.

Ele, todavia, não esmoreceu.

– Experimentemos processo outro, mais suasório.

E anunciou a montagem da “Agência de Colocação de Pronomes e Reparos Estilísticos”.

Quem tivesse um autógrafo a rever, um memorial a expungir de cincas, um calhamaço a compor-se com os “afeites” do lídimo vernáculo, fosse lá que, sem remuneração nenhuma, nele se faria obra limpa e escorreita.

Era boa a ideia, e logo vieram os primeiros originais necessitados de ortopedia, sonetos a consertar pés de verso, ofícios ao governo pedindo concessões, cartas de amor.

Tais, porém, eram as reformas que nos doentes operava Aldrovando, que os autores não mais reconheciam suas próprias obras. Um dos clientes chegou a reclamar.

– Professor, V. Sa. enganou-se. Pedi limpa de enxada nos pronomes, mas não que me traduzisse a memória em latim…

Aldrovando empertigou-se.

– Pois, amigo, errou de porta. Seu caso é ali com o alveitar da esquina.

Pouco durou a Agência, morta à míngua de clientes. Teimava o povo em permanecer empapado no chafurdeiro da corrupção…

O rosário de insucessos, entretanto, em vez de desalentar exasperava o apóstolo.

– Hei-de influir na minha época. Aos tarelos hei de vencer. Fogem-me à férula os maráus de pau e corda? Ir-lhes-ei empós, fila-los-eis pela gorja… Salta rumor!

E foi-lhes “empós”, Andou pelas ruas examinando dísticos e tabuletas com vícios de língua. Descoberta a “asnidade” ia ter com o proprietário, contra ele desfechando os melhores argumentos catequistas.

Foi assim com o ferreiro da esquina, em cujo portão de tenda uma tabuleta – “Ferra-se cavalos” – escoicinhava a santa gramática.

– Amigo, disse-lhe pachorrentamente Aldrovando, natural a mim me parece que erre, alarve que és. Se erram paredros, nesta época de ouro da corrupção…

O ferreiro pôs de lado o malho e entreabriu a boca.

– Mas da boa sombra do teu focinho espero, continuou o apóstolo, que ouvidos me darás. Naquela tábua um dislate existe que seriamente à língua lusa ofende. Venho pedir-te, em nome do asseio gramatical, que o expunjas.

– ? ? ?

– Que reformes a tabuleta, digo.

– Reformar a tabuleta? Uma tabuleta nova, com a licença paga? Estará acaso rachada?

– Fisicamente, não. A racha é na sintaxe. Fogem ali os dizeres à sã gramaticalidade.

O honesto ferreiro não entendia nada de nada.

– Macacos me lambam se estou entendendo o que V. Sa. diz…

– Digo que está a forma verbal com eiva grave. O “ferra-se” tem que cair no plural, pois que a forma é passiva e o sujeito é “cavalos”.

O ferreiro abriu o resto da boca.

– O sujeito sendo “cavalos”, continuou o mestre, a forma verbal é “ferram-se” – “ferram-se cavalos!”

– Ahn! Respondeu o ferreiro, começo agora a compreender. Diz V. Sa. que …

– … que “ferra-se cavalos” é um solecismo horrendo e o certo é “ferram-se cavalos”.

– V. Sa. me perdoe, mas o sujeito que ferra os cavalos sou eu, e eu não sou plural. Aquele “se” da tabuleta refere-se cá a este seu criado. É como quem diz: Serafim ferra cavalos – Ferra Serafim cavalos. Para economizar tinta e tábua abreviaram o meu nome, e ficou como está: Ferra Se (rafim) cavalos. Isto me explicou o pintor, e entendi-o muito bem.

Aldrovando ergueu os olhos para o céu e suspirou.

– Ferras cavalos e bem merecias que te fizessem eles o mesmo!… Mas não discutamos. Ofereço-te dez mil réis pela admissão dum “m” ali…

– Se V. Sa. paga…

Bem empregado dinheiro! A tabuleta surgiu no dia seguinte dessolecismada, perfeitamente de acordo com as boas regras da gramática. Era a primeira vitória obtida e todas as tardes Aldrovando passava por lá para gozar-se dela

Por mal seu, porém, não durou muito o regalo. Coincidindo a entronização do “m” com maus negócios na oficina, o supersticioso ferreiro atribuiu a macaca à alteração dos dizeres e lá raspou o “m” do professor.

A cara que Aldrovando fez quando no passeio desse dia deu com a vitória borrada! Entrou furioso pela oficina a dentro, e mascava uma apóstrofe de fulminar quando o ferreiro, às brutas, lhe barrou o passo.

– Chega de caraminholas, ó barata tonta! Quem manda aqui, no serviço e na língua, sou eu. E é ir andando antes que eu o ferre com bom par de ferros ingleses!

O mártir da língua meteu a gramática entre as pernas e moscou-se.

– “Sancta simplicitas!” ouviram-no murmurar na rua, de rumo à casa, em busca das consolações seráficas de Fr. Heitor Pinto. Chegado que foi ao gabinete de trabalho, caiu de borco sobre as costaneiras venerandas e não mais conteve as lágrimas, chorou…

O mundo estava perdido e os homens, sobre maus, eram impenitentes. Não havia desviá-los do ruim caminho, e ele, já velho, com o rim a rezingar, não se sentia com forças para a continuação da guerra.

– Não hei de acabar, porém, antes de dar a prelo um grande livro onde compendie a muita ciência que hei acumulado.

E Aldrovando empreendeu a realização de um vastíssimo programa de estudos filológicos. Encabeçaria a série um tratado sobre a colocação dos pronomes, ponto onde mais claudicava a gente de Gomorra.

Fê-lo, e foi feliz nesse período de vida em que, alheio ao mundo, todo se entregou, dia e noite, à obra magnífica. Saiu trabuco volumoso, que daria três tomos de 500 páginas cada um, corpo miúdo. Que proventos não adviriam dali para a lusitanidade. Todos os casos resolvidos para sempre, todos os homens de boa vontade salvos da gafaria! O ponto fraco do brasileiro falar resolvido de vez! Maravilhosa coisa…

Pronto o primeiro tomo – Do pronome Se – anunciou a obra pelos jornais, ficando à espera das chusmas de editores que viriam disputá-la à sua porta. E por uns dias o apóstolo sonhou as delícias da estrondosa vitória literária, acrescida de gordos proventos pecuniários.

Calculava em oitenta contos o valor dos direitos autorais, que, generoso que era, cederia por cinquenta. E cinquenta contos para um velho celibatário como ele, sem família nem vícios, tinha a significação duma grande fortuna. Empatados em empréstimos hipotecários sempre eram seus quinhentos mil réis por mês de renda, a pingarem pelo resto da vida na gavetinha onde, até então, nunca entrara pelega maior de duzentos. Servia, servia!… E Aldrovando, contente, esfregava as mãos de ouvido alerta, preparando frases para receber o editor que vinha vindo…

Que vinha vindo mas não veio, ai!… As semanas se passaram sem que nenhum representante dessa miserável fauna de judeus surgisse a chatinar o maravilhoso livro.

– Não me vêm a mim? Salta rumor! Pois me vou a eles!

E saiu em via sacra, a correr todos os editores da cidade.

Má gente! Nenhum lhe quis o livro sob condições nenhumas. Torciam o nariz, dizendo “Não é vendável”; ou: “Por que não faz antes uma cartilha infantil aprovada pelo governo?

Aldrovando, com a morte n’alma e o rim dia a dia mais derrancado, retesou-se nas últimas resistências.

– Fá-la-ei imprimir à minha custa! Ah, amigos! Aceito o cartel. Sei pelejar com todas as armas e irei até ao fim. Bofé!

Para lutar era mister dinheiro e bem pouco do vilíssimo metal possuía na arca o alquebrado Aldrovando. Não importa! Faria dinheiro, venderia móveis, imitaria Bernardo de Pallissy, não morreria sem ter o gosto de acaçapar Gomorra sob o peso da sua ciência impressa. Editaria ele mesmo um por um todos os volumes da obra salvadora.

Disse e fez.

Passou esse período de vida alternando revisão de provas com padecimentos renais. Venceu. O livro compôs-se, magnificamente revisto, primoroso na linguagem como não existia igual.

Dedicou-o a Fr. Luz de Souza:

À memória daquele que me sabe as dores,

O Autor.

Mas não quis o destino que o já trêmulo Aldrovando colhesse os frutos de sua obra. Filho dum pronome impróprio, a má colocação doutro pronome lhe cortaria o fio da vida.

Muito corretamente havia ele escrito na dedicatória: …daquele que me sabe… e nem poderia escrever doutro modo um tão conspícuo colocador de pronomes. Maus fados intervieram, porém – até os fados conspiram contra a língua! – e por artimanha do diabo que os rege empastelou-se na oficina esta frase. Vai o tipógrafo e recompõe-na a seu modo… d’aquele que sabe-me as dores… E assim saiu nos milheiros de cópias da avultada edição.

Mas não antecipemos.

Pronta a obra e paga, ia Aldrovando recebê-la, enfim. Que glória! Construíra, finalmente, o pedestal da sua própria imortalidade, ao lado direito dos sumos cultores da língua.

A grande idéia do livro, exposta no capítulo VI – Do método automático de bem colocar os pronomes – engenhosa aplicação duma regra mirífica por meio da qual até os burros de carroça poderiam zurrar com gramática, operaria como o 914 da sintaxe, limpando-a da avariose produzida pelo espiroqueta da pronominuria.

A excelência dessa regra estava em possuir equivalentes químicos de uso na farmacopéia alopata, de modo que a um bom laboratório fácil lhe seria reduzi-la a ampolas para injeções hipodérmicas, ou a pílulas, pós ou poções para uso interno.

E quem se injetasse ou engolisse uma pílula do futuro PRONOMINOL CANTAGALO, curar-se-ia para sempre do vício, colocando os pronomes instintivamente bem, tanto no falar como no escrever. Para algum caso de pronomorreia aguda, evidentemente incurável, haveria o recurso do PRONOMINOL Nº 2, onde entrava a estriquinina em dose suficiente para libertar o mundo do infame sujeito.

Que glória! Aldrovando prelibava essas delícias todas quando lhe entrou casa a dentro a primeira carroçada de livros. Dois brutamontes de mangas arregaçadas empilharam-nos pelos cantos, em rumas que lá se iam; e concluso o serviço um deles pediu:

– Me dá um mata-bicho, patrão!

Aldrovando severizou o semblante ao ouvir aquele “Me” tão fora dos mancais, e tomando um exemplo da obra ofertou-a ao “doente”.

– Toma lá. O mau bicho que tens no sangue morrerá asinha às mãos deste vermífugo. Recomendo-te a leitura do capítulo sexto.

O carroceiro não se fez rogar; saiu com o livro, dizendo ao companheiro:

– Isto no “sebo” sempre renderá cinco tostões. Já serve!

Mal se sumiram, Aldrovando abancou-se à velha mesinha de trabalho e deu começo à tarefa de lançar dedicatórias num certo número de exemplares destinados à crítica. Abriu o primeiro, e estava já a escrever o nome de Rui Barbosa quando seus olhos deram com a horrenda cinca:

“daquele QUE SABE-ME as dores”.

– Deus do céu! Será possível?

Era possível. Era fato. Naquele, como em todos os exemplares da edição, lá estava, no hediondo relevo da dedicatória a Fr. Luiz de Souza, o horripilantíssimo

– “QUE SABE-ME”…

Aldrovando não murmurou palavra. De olhos muito abertos, no rosto uma estranha marca de dor – dor gramatical inda não descrita nos livros de patologia – permaneceu imóvel uns momentos.

Depois empalideceu. Levou as mãos ao abdômen e estorceu-se nas garras de repentina e violentíssima ânsia.

Ergueu os olhos para Frei Luiz de Souza e murmurou:

– Luiz! Luiz! Lamma Sabachtani?!

E morreu.

De que não sabemos – nem importa ao caso. O que importa é proclamarmos aos quatro ventos que com Aldrovando morreu o primeiro santo da gramática, o mártir número um da Colocação dos Pronomes.

Paz à sua alma.

 

 

 

MARCADORES DE UMA ÉPOCA - 4