Meu amigo virtual Fabiano Caldeira escreveu
em seu blog Socializando 20 um texto muito bom onde ele fala das
expectativas e anseios dos escritores inéditos, loucos para ver sua obra
impressa em papel. Na hora lembrei-me de um conto muito engraçado do Monteiro
Lobato sobre um gramático que paga de seu próprio bolso a impressão de um
"tratado sobre a colocação de pronomes”. O resto vocês poderão ler no
texto abaixo. Antes, uma curiosidade: foi lendo um dos trechos mais hilários do
conto que eu aprendi o uso correto da "partícula
apassivadora". Não sabe o que é, né? Leia o conto, leia o conto!
Aldrovando
Cantagalo veio ao mundo em virtude dum erro de gramática.
Durante sessenta
anos de vida terrena pererecou como um peru em cima da gramática.
E morreu, afinal,
vítima dum novo erro de gramática.
Mártir da
gramática, fique este documento da sua vida como pedra angular para uma futura
e bem merecida canonização,
Havia em Itaoca um
pobre moço que definhava de tédio no fundo de um cartório. Escrevente. Vinte e
três anos. Magro. Ar um tanto palerma. Ledor de versos lacrimogêneos e pai duns
acrósticos dados à luz no “Itaoquense” , com bastante sucesso.
Vivia em paz com
as suas certidões quando o frechou venenosa seta de Cupido. Objeto amado: a
filha mais moça do coronel Triburtino, o qual tinha duas, essa Laurinha, do
escrevente, então nos dezessete, e a do Carmo, encalhe da família, vesga,
madurota, histérica, manca da perna esquerda e um tanto aluada.
Triburtino não era
homem de brincadeira. Esguelara um vereador oposicionista em plena sessão da
câmara e desd’aí se transformou no tutú da terra. Toda gente lhe tinha um vago
medo; mas o amor, que é mais forte que a morte, não receia sobrecenhos
enfarruscados nem tufos de cabelos no nariz.
Ousou o escrevente
namorar-lhe a filha, apesar da distância hierárquica que os separava. Namoro à
moda velha, já se vê, pois que nesse tempo não existia a gostorura dos cinemas.
Encontros na igreja, à missa, troca de olhares, diálogos de flores – o que havia
de inocente e puro. Depois, roupa nova, ponta de lenço de seda a
entremostrar-se no bolsinho de cima e medição de passos na rua d’Ela, nos dia
de folga. Depois, a serenata fatal à esquina, com o
Acorda, donzela…
Sapecado a medo
num velho pinho de empréstimo. Depois, bilhetinho perfumado.
Aqui se estrepou…
Escrevera nesse
bilhetinho, entretanto, apenas quatro palavras, afora pontos exclamativos e
reticências:
Anjo adorado!
Amo-lhe!
Para abrir o jogo
bastava esse movimento de peão. Ora, aconteceu que o pai do anjo apanhou o
bilhetinho celestial e, depois de três dias de sobrecenho carregado, mandou
chamá-lo à sua presença, com disfarce de pretexto – para umas certidõesinhas,
explicou.
Apesar disso o
moço veio um tanto ressabiado, com a pulga atrás da orelha.
Não lhe erravam os
pressentimentos. Mas o pilhou portas aquém, o coronel trancou o escritório,
fechou a carranca e disse:
– A família
Triburtino de Mendonça é a mais honrada desta terra, e eu, seu chefe natural,
não permitirei nunca – nunca, ouviu? – que contra ela se cometa o menor
deslize.
Parou. Abriu uma
gaveta. Tirou de dentro o bilhetinho cor de rosa, desdobrou-o
– É sua esta peça
de flagrante delito?
O escrevente, a
tremer, balbuciou medrosa confirmação.
– Muito bem!
Continuou o coronel em tom mais sereno. Ama, então, minha filha e tem a audácia
de o declarar… Pois agora…
O escrevente, por
instinto, ergueu o braço para defender a cabeça e relanceou os olhos para a
rua, sondando uma retirada estratégica.
– … é casar!
Concluiu de improviso o vingativo pai.
O escrevente
ressuscitou. Abriu os olhos e a boca, num pasmo. Depois, tornando a si,
comoveu-se e com lágrimas nos olhos disse, gaguejante:
– Beijo-lhe as
mãos, coronel! Nunca imaginei tanta generosidade em peito humano! Agora vejo
com que injustiça o julgam aí fora!…
Velhacamente o
velho cortou-lhe o fio das expansões.
– Nada de frases,
moço, vamos ao que serve: declaro-o solenemente noivo de minha filha!
E voltando-se para
dentro, gritou:
– Do Carmo! Venha
abraçar o teu noivo!
O escrevente
piscou seis vezes e, enchendo-se de coragem, corrigiu o erro.
– Laurinha, quer o
coronel dizer…
O velho fechou de
novo a carranca.
– Sei onde trago o
nariz, moço. Vassuncê mandou este bilhete à Laurinha dizendo que ama-”lhe”. Se
amasse a ela deveria dezer amo-”te”. Dizendo “amo-lhe” declara que ama a uma
terceira pessoa, a qual não pode ser senão a Maria do Carmo. Salvo se declara
amor à minha mulher…
– Oh, coronel…
– … ou a preta
Luzia, cozinheira. Escolha!
O escrevente,
vencido, derrubou a cabeça com uma lágrima a escorrer rumo à asa do nariz.
Silenciaram ambos, em pausa de tragédia. Por fim o coronel, batendo-lhe no
ombro paternalmente, repetiu a boa lição da gramática matrimonial.
– Os pronomes,
como sabe, são três: da primeira pessoa – quem fala, e neste caso vassuncê; da
segunda pessoa – a quem fala, e neste caso Laurinha; da terceira pessoa – de
quem se fala, e neste caso do Carmo, minha mulher ou a preta. Escolha!
Não havia fuga
possível.
O escrevente
ergueu os olhos e viu do Carmo que entrava, muito lampeira da vida, torcendo
acanhada a ponta do avental. Viu também sobre a secretária uma garrucha com
espoleta nova ao alcance do maquiavélico pai, submeteu-se e abraçou a urucaca,
enquanto o velho, estendendo as mãos, dizia teatralmente:
– Deus vos
abençoe, meus filhos!
No mês seguinte, e
onze meses depois vagia nas mãos da parteira o futuro professor Aldrovando, o
conspícuo sabedor de língua que durante cinquenta anos a fio coçaria na
gramática a sua incurável sarna filológica.
Até aos dez anos
não revelou Aldrovando pinta nenhuma. Menino vulgar, tossiu a coqueluche em
tempo próprio, teve o sarampo da praxe, mas a caxumba e a catapora. Mais tarde,
no colégio, enquanto os outros enchiam as horas de estudo com invenções de
matar o tempo – empalamento de moscas e moidelas das respectivas cabecinhas
entre duas folhas de papel, coisa de ver o desenho que saía – Aldrovando
apalpava com erótica emoção a gramática de Augusto Freire da Silva. Era o
latejar do furúnculo filológico que o determinaria na vida, para matá-lo,
afinal…
Deixêmo-lo, porém,
evoluir e tomêmo-lo quando nos serve, aos 40 anos, já a descer o morro, arcado
ao peso da ciência e combalido de rins. Lá está ele em seu gabinete de
trabalho, fossando à luz dum lampião os pronomes de Filinto Elísio. Corcovado,
magro, seco, óculos de latão no nariz, careca, celibatário impenitente, dez
horas de aulas por dia, duzentos mil réis por mês e o rim volta e meia a
fazer-se lembrado.
Já leu tudo. Sua
vida foi sempre o mesmo poento idílio com as veneráveis costaneiras onde
cabeceiam os clássicos lusitanos. Versou-os um por um com mão diurna e noturna.
Sabe-os de cor, conhece-os pela morrinha, distingue pelo faro uma seca de
Lucena duma esfalfa de Rodrigues Lobo. Digeriu todas as patranhas de Fernão
Mendes Pinto. Obstruiu-se da broa encruada de Fr. Pantaleão do Aveiro. Na idade
em que os rapazes correm atrás das raparigas, Aldrovando escabichava belchiores
na pista dos mais esquecidos mestres da boa arte de maçar. Nunca dormiu entre
braços de mulher. A mulher e o amor – mundo, diabo e carne eram para ele os
alfarrábios freiráticos do quinhentismo, em cuja soporosa verborreia espapaçava
os instintos lerdos, como porco em lameiro.
Em certa época
viveu três anos acampado em Vieira. Depois vagabundeou, como um Robinson, pelas
florestas de Bernardes.
Aldrovando nada
sabia do mundo atual. Desprezava a natureza, negava o presente. Passarinho
conhecia um só: o rouxinol de Bernadim Ribeiro. E se acaso o sabiá de Gonçalves
Dias vinha citar “pomos de Hespérides” na laranjeira do seu quintal, Aldrovando
esfogueteava-o com apostrofes:
– Salta fora,
regionalismo de má sonância!
A língua lusa
era-lhe um tabu sagrado que atingira a perfeição com Fr. Luiz de Sousa, e daí
para cá, salvo lucilações esporádicas, vinha chafurdando no ingranzéu
barbaresco.
– A inglesia
d’hoje, declamava ele, está para a Língua, como o cadáver em putrefação está
para o corpo vivo.
E suspirava,
condoído dos nossos destinos:
– Povo sem
língua!… Não me sorri o futuro de Vera-Cruz…
E não lhe
objetassem que a língua é organismo vivo e que a temos a evoluir na boca do
povo.
– Língua? Chama
você língua à garabulha bordalenga que estampam periódicos? Cá está um desses
galicígrafos. Deletreemo-lo ao acaso.
E, baixando as
cangalhas, lia:
– Teve lugar
ontem… É língua esta espurcícia negral? Ó meu seráfico Frei Luiz, como te
conspurcam o divino idioma estes sarrafaçais da moxinifada!
– … no Trianon…
Por que, Trianon? Por que este perene barbarizar com alienígenos arrevezos? Tão
bem ficava – a Benfica, ou, se querem neologismo de bom cunho o
Logratório…Tarelos é que são, tarelos!
E suspirava
deveras compungido.
– Inútil
prosseguir. A folha inteira cacografa-se por este teor. Aí! Onde param as boas
letras d’antanho? Fez-se peru o níveo cisne. Ninguém atende à lei suma –
Horácio! Impera o desprimor, e o mau gosto vige como suprema regra. A gálica
intrujice é maré sem vazante. Quando penetro num livreiro o coração se me
confrange ante o pélago de óperas barbarescas que nos vertem cá mercadores de
má morte. E é de notar, outrossim, que a elas se vão as preferências do
vulgacho. Muito não faz que vi com estes olhos um gentil mancebo preferir uma
sordícia de Oitavo Mirbelo-Canhenho duma dama de servir, creio, à… adivinhe ao
que, amigo? A Carta de Guia do meu divino Francisco Manoel!…
– Mas a evolução…
– Basta. Conheço
às sobejas a escolástica da época, a “evolução” darwinica, os vocábulos macacos
– pitecofonemas que evolveram, perderam o pelo e se vestem hoje à moda de
França, com vidro no olho. Por amor a Frei Luiz, que ali daquela costaneira
escandalizado nos ouve, não remanche o amigo na esquipática sesquipedalice.
Um biógrafo ao
molde clássico separaria a vida de Aldrovando em duas fases distingas: a
estática, em que apenas acumulou ciência, e a dinâmica, em que, transfeito em
apóstolo, veio a campo com todas as armas para contrabater o monstro da
corrupção.
Abriu campanha com
memorável ofício ao congresso, pedindo leis repressivas contra os ácaros do
idioma.
– Leis, senhores,
leis de Dracão, que diques sejam, e fossados, e alcaçares de granito prepostos
à defensão do idioma. Mister sendo, a forca se restaure, que mais o baraço
merece quem conspurca o sacro patrimônio da sã vernaculidade, que quem ao
semelhante a vida tira. Vede, senhores, os pronomes, em que lazeira jazem…
Os pronomes, ai! eram
a tortura permanente do professor Aldrovando. Doía-lhe como punhalada vê-los
por aí pré ou pospostos contra regras elementares do dizer castiço. E sua
representação alargou-se nesse pormenor, flagelante, concitando os pais da
pátria à criação dum Santo Ofício gramatical.
Os ignaros
congressistas, porém, riram-se da memória, e grandemente piaram sobre
Aldrovando as mais cruéis chalaças.
– Quer que instituamos
patíbulo para os maus colocadores de pronomes! Isto seria auto-condenar-nos à
morte! Tinha graça!
Também lhe foi à
pele a imprensa, com pilhérias soezes. E depois, o público. Ninguém alcançara a
nobreza do seu gesto, e Aldrovando, com a mortificação n’alma, teve que mudar
de rumo. Planeou recorrer ao púlpito dos jornais. Para isso mister foi, antes
de nada, vencer o seu velho engulho pelos “galicígrafos de papel e graxa”. Transigiu
e, breve, desses “pulmões da pública opinião” apostrofou o país com o verbo
tonante de Ezequiel. Encheu colunas e colunas de objurgatórias ultra violentas,
escritas no mais estreme vernáculo.
Mas não foi
entendido. Raro leitor metia os dentes naqueles intermináveis períodos
engrenados à moda de Lucena; e ao cabo da aspérrima campanha viu que pregara em
pleno deserto. Leram-no apenas a meia dúzia de Aldrovandos que vegetam sempre
em toda parte, como notas rezinguentas da sinfonia universal.
A massa dos
leitores, entretanto, essa permaneceu alheia aos flamívomos pelouros da sua
colubrina sem raia. E por fim os “periódicos” fecharam-lhe a porta no nariz,
alegando falta de espaço e coisas.
– Espaço não há
para as sãs idéias, objurgou o enxotado, mas sobeja, e pressuroso, para quanto
recende à podriqueira!… Gomorra! Sodoma! Fogos do céu virão um dia alimpar-vos
a gafa!… exclamou, profético, sacudindo à soleira da redação o pó das cambaias
botinas de elástico.
Tentou em seguida
ação mais direta, abrindo consultório gramatical.
– Têm-nos os
físicos (queria dizer médicos), os doutores em leis, os charlatães de toda
espécie. Abra-se um para a medicação da grande enferma, a língua. Gratuito, já
se vê, que me não move amor de bens terrenos.
Falhou a nova
tentativa. Apenas moscas vagabundas vinham esvoejar na salinha modesta do
apóstolo. Criatura humana nem uma só lá apareceu afim de remendar-se
filologicamente.
Ele, todavia, não
esmoreceu.
– Experimentemos
processo outro, mais suasório.
E anunciou a
montagem da “Agência de Colocação de Pronomes e Reparos Estilísticos”.
Quem tivesse um
autógrafo a rever, um memorial a expungir de cincas, um calhamaço a compor-se
com os “afeites” do lídimo vernáculo, fosse lá que, sem remuneração nenhuma,
nele se faria obra limpa e escorreita.
Era boa a ideia, e
logo vieram os primeiros originais necessitados de ortopedia, sonetos a
consertar pés de verso, ofícios ao governo pedindo concessões, cartas de amor.
Tais, porém, eram
as reformas que nos doentes operava Aldrovando, que os autores não mais
reconheciam suas próprias obras. Um dos clientes chegou a reclamar.
– Professor, V. Sa.
enganou-se. Pedi limpa de enxada nos pronomes, mas não que me traduzisse a
memória em latim…
Aldrovando
empertigou-se.
– Pois, amigo,
errou de porta. Seu caso é ali com o alveitar da esquina.
Pouco durou a
Agência, morta à míngua de clientes. Teimava o povo em permanecer empapado no
chafurdeiro da corrupção…
O rosário de
insucessos, entretanto, em vez de desalentar exasperava o apóstolo.
– Hei-de influir
na minha época. Aos tarelos hei de vencer. Fogem-me à férula os maráus de pau e
corda? Ir-lhes-ei empós, fila-los-eis pela gorja… Salta rumor!
E foi-lhes
“empós”, Andou pelas ruas examinando dísticos e tabuletas com vícios de língua.
Descoberta a “asnidade” ia ter com o proprietário, contra ele desfechando os
melhores argumentos catequistas.
Foi assim com o
ferreiro da esquina, em cujo portão de tenda uma tabuleta – “Ferra-se cavalos”
– escoicinhava a santa gramática.
– Amigo, disse-lhe
pachorrentamente Aldrovando, natural a mim me parece que erre, alarve que és. Se
erram paredros, nesta época de ouro da corrupção…
O ferreiro pôs de
lado o malho e entreabriu a boca.
– Mas da boa
sombra do teu focinho espero, continuou o apóstolo, que ouvidos me darás.
Naquela tábua um dislate existe que seriamente à língua lusa ofende. Venho
pedir-te, em nome do asseio gramatical, que o expunjas.
– ? ? ?
– Que reformes a
tabuleta, digo.
– Reformar a
tabuleta? Uma tabuleta nova, com a licença paga? Estará acaso rachada?
– Fisicamente,
não. A racha é na sintaxe. Fogem ali os dizeres à sã gramaticalidade.
O honesto ferreiro
não entendia nada de nada.
– Macacos me
lambam se estou entendendo o que V. Sa. diz…
– Digo que está a
forma verbal com eiva grave. O “ferra-se” tem que cair no plural, pois que a
forma é passiva e o sujeito é “cavalos”.
O ferreiro abriu o
resto da boca.
– O sujeito sendo
“cavalos”, continuou o mestre, a forma verbal é “ferram-se” – “ferram-se
cavalos!”
– Ahn! Respondeu o
ferreiro, começo agora a compreender. Diz V. Sa. que …
– … que “ferra-se
cavalos” é um solecismo horrendo e o certo é “ferram-se cavalos”.
– V. Sa. me
perdoe, mas o sujeito que ferra os cavalos sou eu, e eu não sou plural. Aquele
“se” da tabuleta refere-se cá a este seu criado. É como quem diz: Serafim ferra
cavalos – Ferra Serafim cavalos. Para economizar tinta e tábua abreviaram o meu
nome, e ficou como está: Ferra Se (rafim) cavalos. Isto me explicou o pintor, e
entendi-o muito bem.
Aldrovando ergueu
os olhos para o céu e suspirou.
– Ferras cavalos e
bem merecias que te fizessem eles o mesmo!… Mas não discutamos. Ofereço-te dez
mil réis pela admissão dum “m” ali…
– Se V. Sa. paga…
Bem empregado
dinheiro! A tabuleta surgiu no dia seguinte dessolecismada, perfeitamente de
acordo com as boas regras da gramática. Era a primeira vitória obtida e todas
as tardes Aldrovando passava por lá para gozar-se dela
Por mal seu,
porém, não durou muito o regalo. Coincidindo a entronização do “m” com maus
negócios na oficina, o supersticioso ferreiro atribuiu a macaca à alteração dos
dizeres e lá raspou o “m” do professor.
A cara que
Aldrovando fez quando no passeio desse dia deu com a vitória borrada! Entrou
furioso pela oficina a dentro, e mascava uma apóstrofe de fulminar quando o
ferreiro, às brutas, lhe barrou o passo.
– Chega de
caraminholas, ó barata tonta! Quem manda aqui, no serviço e na língua, sou eu.
E é ir andando antes que eu o ferre com bom par de ferros ingleses!
O mártir da língua
meteu a gramática entre as pernas e moscou-se.
– “Sancta simplicitas!”
ouviram-no murmurar na rua, de rumo à casa, em busca das consolações seráficas
de Fr. Heitor Pinto. Chegado que foi ao gabinete de trabalho, caiu de borco
sobre as costaneiras venerandas e não mais conteve as lágrimas, chorou…
O mundo estava perdido
e os homens, sobre maus, eram impenitentes. Não havia desviá-los do ruim
caminho, e ele, já velho, com o rim a rezingar, não se sentia com forças para a
continuação da guerra.
– Não hei de
acabar, porém, antes de dar a prelo um grande livro onde compendie a muita
ciência que hei acumulado.
E Aldrovando
empreendeu a realização de um vastíssimo programa de estudos filológicos.
Encabeçaria a série um tratado sobre a colocação dos pronomes, ponto onde mais
claudicava a gente de Gomorra.
Fê-lo, e foi feliz
nesse período de vida em que, alheio ao mundo, todo se entregou, dia e noite, à
obra magnífica. Saiu trabuco volumoso, que daria três tomos de 500 páginas cada
um, corpo miúdo. Que proventos não adviriam dali para a lusitanidade. Todos os
casos resolvidos para sempre, todos os homens de boa vontade salvos da gafaria!
O ponto fraco do brasileiro falar resolvido de vez! Maravilhosa coisa…
Pronto o primeiro
tomo – Do pronome Se – anunciou a obra pelos jornais, ficando à espera das
chusmas de editores que viriam disputá-la à sua porta. E por uns dias o
apóstolo sonhou as delícias da estrondosa vitória literária, acrescida de
gordos proventos pecuniários.
Calculava em
oitenta contos o valor dos direitos autorais, que, generoso que era, cederia
por cinquenta. E cinquenta contos para um velho celibatário como ele, sem
família nem vícios, tinha a significação duma grande fortuna. Empatados em
empréstimos hipotecários sempre eram seus quinhentos mil réis por mês de renda,
a pingarem pelo resto da vida na gavetinha onde, até então, nunca entrara
pelega maior de duzentos. Servia, servia!… E Aldrovando, contente, esfregava as
mãos de ouvido alerta, preparando frases para receber o editor que vinha vindo…
Que vinha vindo
mas não veio, ai!… As semanas se passaram sem que nenhum representante dessa
miserável fauna de judeus surgisse a chatinar o maravilhoso livro.
– Não me vêm a
mim? Salta rumor! Pois me vou a eles!
E saiu em via
sacra, a correr todos os editores da cidade.
Má gente! Nenhum
lhe quis o livro sob condições nenhumas. Torciam o nariz, dizendo “Não é
vendável”; ou: “Por que não faz antes uma cartilha infantil aprovada pelo
governo?
Aldrovando, com a
morte n’alma e o rim dia a dia mais derrancado, retesou-se nas últimas
resistências.
– Fá-la-ei
imprimir à minha custa! Ah, amigos! Aceito o cartel. Sei pelejar com todas as
armas e irei até ao fim. Bofé!
Para lutar era
mister dinheiro e bem pouco do vilíssimo metal possuía na arca o alquebrado
Aldrovando. Não importa! Faria dinheiro, venderia móveis, imitaria Bernardo de
Pallissy, não morreria sem ter o gosto de acaçapar Gomorra sob o peso da sua
ciência impressa. Editaria ele mesmo um por um todos os volumes da obra
salvadora.
Disse e fez.
Passou esse
período de vida alternando revisão de provas com padecimentos renais. Venceu. O
livro compôs-se, magnificamente revisto, primoroso na linguagem como não
existia igual.
Dedicou-o a Fr.
Luz de Souza:
À memória daquele
que me sabe as dores,
O Autor.
Mas não quis o
destino que o já trêmulo Aldrovando colhesse os frutos de sua obra. Filho dum
pronome impróprio, a má colocação doutro pronome lhe cortaria o fio da vida.
Muito corretamente
havia ele escrito na dedicatória: …daquele que me sabe… e nem poderia escrever
doutro modo um tão conspícuo colocador de pronomes. Maus fados intervieram,
porém – até os fados conspiram contra a língua! – e por artimanha do diabo que
os rege empastelou-se na oficina esta frase. Vai o tipógrafo e recompõe-na a
seu modo… d’aquele que sabe-me as dores… E assim saiu nos milheiros de cópias
da avultada edição.
Mas não
antecipemos.
Pronta a obra e
paga, ia Aldrovando recebê-la, enfim. Que glória! Construíra, finalmente, o
pedestal da sua própria imortalidade, ao lado direito dos sumos cultores da
língua.
A grande idéia do
livro, exposta no capítulo VI – Do método automático de bem colocar os pronomes
– engenhosa aplicação duma regra mirífica por meio da qual até os burros de
carroça poderiam zurrar com gramática, operaria como o 914 da sintaxe,
limpando-a da avariose produzida pelo espiroqueta da pronominuria.
A excelência dessa
regra estava em possuir equivalentes químicos de uso na farmacopéia alopata, de
modo que a um bom laboratório fácil lhe seria reduzi-la a ampolas para injeções
hipodérmicas, ou a pílulas, pós ou poções para uso interno.
E quem se
injetasse ou engolisse uma pílula do futuro PRONOMINOL CANTAGALO, curar-se-ia
para sempre do vício, colocando os pronomes instintivamente bem, tanto no falar
como no escrever. Para algum caso de pronomorreia aguda, evidentemente
incurável, haveria o recurso do PRONOMINOL Nº 2, onde entrava a estriquinina em
dose suficiente para libertar o mundo do infame sujeito.
Que glória!
Aldrovando prelibava essas delícias todas quando lhe entrou casa a dentro a
primeira carroçada de livros. Dois brutamontes de mangas arregaçadas
empilharam-nos pelos cantos, em rumas que lá se iam; e concluso o serviço um
deles pediu:
– Me dá um
mata-bicho, patrão!
Aldrovando
severizou o semblante ao ouvir aquele “Me” tão fora dos mancais, e tomando um
exemplo da obra ofertou-a ao “doente”.
– Toma lá. O mau
bicho que tens no sangue morrerá asinha às mãos deste vermífugo. Recomendo-te a
leitura do capítulo sexto.
O carroceiro não
se fez rogar; saiu com o livro, dizendo ao companheiro:
– Isto no “sebo”
sempre renderá cinco tostões. Já serve!
Mal se sumiram,
Aldrovando abancou-se à velha mesinha de trabalho e deu começo à tarefa de
lançar dedicatórias num certo número de exemplares destinados à crítica. Abriu
o primeiro, e estava já a escrever o nome de Rui Barbosa quando seus olhos
deram com a horrenda cinca:
“daquele QUE
SABE-ME as dores”.
– Deus do céu!
Será possível?
Era possível. Era
fato. Naquele, como em todos os exemplares da edição, lá estava, no hediondo relevo
da dedicatória a Fr. Luiz de Souza, o horripilantíssimo
– “QUE SABE-ME”…
Aldrovando não
murmurou palavra. De olhos muito abertos, no rosto uma estranha marca de dor –
dor gramatical inda não descrita nos livros de patologia – permaneceu imóvel
uns momentos.
Depois
empalideceu. Levou as mãos ao abdômen e estorceu-se nas garras de repentina e
violentíssima ânsia.
Ergueu os olhos
para Frei Luiz de Souza e murmurou:
– Luiz! Luiz!
Lamma Sabachtani?!
E morreu.
De que não sabemos
– nem importa ao caso. O que importa é proclamarmos aos quatro ventos que com
Aldrovando morreu o primeiro santo da gramática, o mártir número um da
Colocação dos Pronomes.
Paz à sua alma.
completíssimo
ResponderExcluirO conto foi escrito em 1920, natural portanto que utilize uma linguagem mais de época, mas, se perceber, O Monteiro Lobato carregou na ironia ao utilizar um vocabulário muito culto, mas talvez já em desuso. Trabalhei com um sujeito extremamente culto e que falava como se estivesse lendo um livro de gramática, tão empolada era sua linguagem. Detalhe: e ainda beijava mão das colegas de trabalho. Era um Aldrovando do final do século XX.
ResponderExcluirEu optei por escrever como eu falo para disfarçar minha ignorância. Você disse que eu estou exercendo influência sobre você. Rapaz, cuidado com as más companhias!
ResponderExcluirFabiano, quando eu disse "cuidado com as más influências" eu fiz apenas uma piada idiota. Desde o início do blog eu sempre me senti atraído pelo humor, pela piada.Por isso, não se assuste nem estranhe minhas tentativas de "fazer gracinha". Eu gosto de rir, os filmes de que mais gosto são de humor (desde que seja inteligente). Então, meu caro, não me veja como um senhor circunspecto e severo. Eu sou o oposto disso. Abraços.
ResponderExcluirJá viu o filme "O Jovem Frankestein? É hilário!
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