domingo, 10 de julho de 2016

AS FILHAS DE JULIETA (E FRANCISCO) - 05

Depois de ter contado alguns casos sobre os cinco irmãos de minha mãe, fiquei meio travado e sem inspiração para escrever sobre as mulheres da família. Aliás, só me dei conta disso depois de publicar o post sobre meu tio mais novo. Há vários motivos e explicações para isso, mas talvez o principal seja o fato de ter poucas coisas a dizer sobre elas e que sejam ao mesmo tempo divertidas, curiosas ou reveladoras de suas personalidades, sem resvalar para o grosseiro e indelicado. Depois disso, consegui "entregar" os posts sobre minha mãe e três de suas irmãs. Foi difícil e acho que ficaram bem fraquinhos. Faltava a tia mais nova, que estou pagando agora. Como já disse que esses posts são apenas "para cumprir tabela", vamos tentar avançar.

A caçula das mulheres, tia Marisa, nasceu em 15/12/1935. Provavelmente casou-se com uns vinte e poucos anos, talvez antes de Tia Dalva. Essa pode ser uma das explicações de nunca ter trabalhado fora, ao contrário de Tia Dalva e Tia Aidê. Essa é apenas uma suposição, pelas pouquíssimas lembranças que tenho dessa época,

O que sei é que antes de eu entrar para o grupo escolar, me obrigava a deitar após o almoço, coisa que sempre me deixava puto. Para me manter na cama, deitava também e eu acabava pegando no sono. Era brava, independente e, creio, bem geniosa. Esse temperamento de gato do mato talvez tenha influenciado sua vida de casada, que imagino não ter sido "aquela brastemp".

Casou-se com o Jorge (Giorgio), quinze anos mais velho que ela e irmão mais novo de Tio Tristano, marido de Tia Ci. Essa diferença de idade e o fato de Tia Marisa já ser sua conhecida há muito tempo me faz pensar que o Jorge era extremamente tímido, apesar do bom humor e do riso alto. Era engenheiro-arquiteto e foi o responsável remoto por eu ter cursado engenharia civil.

Aliás, esse é quase um conto do vigário, pois, até onde sei, a única obra que fez ou projetou foi a ampliação do hotel que a mãe possuía no centro de BH. Mas eu achava que o papel do engenheiro é projetar casas, o que é um equívoco total. Mesmo assim, sempre disse que iria virar engenheiro como ele. E na hora da escolha, deixei-me levar pelo desejo de infância. "Ocevê" (sotaque mineiro) que merda! 

Quando ainda namorava minha tia, às vezes chamava minha mãe ou Tia Aidê para ir junto com eles dar um passeio de carro (o controle de Dona Leta devia ser brabo).  Nessas ocasiões, eu e meu irmão íamos também. Para mim esses passeios noturnos eram tudo de bom, pois sempre nos levava para ver a fonte luminosa da Praça Raul Soares. Eu ficava embevecido olhando a constante mudança de cores e ele dizia que cada hora jorrava um suco diferente: groselha, morango, etc. E o coitado do Zezim acreditava em tudo e até pedia para descer do carro e beber um pouco (menino pobre e idiota é uma tristeza!). 

Após a contemplação da fonte, levava-nos a uma sorveteria próxima e nos comprava um eskibon. Nessa época o sorvete vinha embrulhado em papel manteiga ou coisa parecida e acondicionado em uma caixinha de papelão ou cartolina. Invariavelmente eu deixava cair na roupa, mas nem ligava. Se alguém se interessar em ver como era isso, está aí a imagem, tirada do excelente blog "Caríssimas Catrevagens".


Na volta para casa depois dessas "emoções", o sono batia e eu chegava dormindo. Entendeu agora por que eu sempre disse que seria engenheiro? Tudo por conta do filho da puta de um sorvete e de uma fonte de onde jorrava quissuco!


Depois do casamento, Tia Marisa dividiu com a sogra e a cunhada o segundo andar do casarão onde já vivia a família de Tia Ci (sua irmã mais velha, que ocupava o primeiro andar). Provavelmente ficaram no antigo quarto de solteiro do Jorge, agora equipado com cama de casal. Esse arranjo não durou muito tempo, pois deve ter prevalecido a máxima de que "boi preto reconhece boi preto", ou seja, a autoritária Dona Clara encontrou uma pedreira igual na pessoa da nora.

Para mim, isso ficou definitivamente claro quando minha tia ganhou da sogra uma geladeira vermelha. Só fiquei sabendo que Tia Marisa deve ter dado um piti ou feito “o” barraco e se recusou a receber e abrir o presente, pois não queria nem gostava de geladeira vermelha. E tinha raiva de quem gostava.

E o Jorge ali, coitado, marisco entre a rocha e o mar. Não demorou muito para que se mudassem para um apartamento amplo em uma parte boa da área central de BH, bem em frente à faculdade de direito da UFMG. Talvez os dois filhos tenham nascido já no novo endereço. Só sei que moraram muito tempo lá, uns dez anos talvez. Essa estimativa está relacionada às minhas idas frequentes a esse apartamento, para ler histórias em quadrinhos.

Meu primo mais velho, na época com uns onze, doze anos, tinha carta branca dos pais para comprar quantas revistas quisesse, o que realmente fazia. Depois de lê-las, trocava imediatamente por outras na mesma banca, na proporção de duas lidas por uma nova. Com isso, não tenho dúvida de que era o melhor cliente do proprietário. Por conta dessa fartura, da minha infantilidade congênita e da minha falta absoluta de responsabilidade (eu tinha acabado de entrar na faculdade!), eu ia para lá e ficávamos lendo os gibis a tarde toda. 

Que ninguém pense que só existiam revistinhas infantis. Claro que existiam, pois ele colecionava várias. Uma delas era a revista da Mônica que havia sido lançada há pouco tempo (as primeiras histórias tinham um enredo menos repetitivo e menos óbvio que hoje). Mas meu primo era quase um connoisseur de quadrinhos e comprava álbuns fantásticos de capa dura, com reedições primorosas de HQ das décadas de 1930 e 1940, desenhadas pelos autores originais: O Fantasma (Ray Moore), O Príncipe Valente (Hal Foster), Flash Gordon (Alex Raymond) e outros menos votados. Lia também tudo dos personagens do Stan Lee, as reedições das primeiras histórias do Popeye feitas pelo Segar, etc.. Era um mundo revistas a encarar e não me lembro do motivo de ter acabado essa mamata. Só sei que fui me afastando aos poucos daquela quadrinhoteca.

Quando esse primo atingiu a maioridade, comprou um ultraleve e saiu voando por aí. Segundo me contou, muitas vezes decolava da beira da lagoa, em frente à casa da família, em Lagoa Santa.  Dito assim parece tranquilo, mas a distância é mínima, qualquer vacilada faria com que enfiasse o chifre na água. Depois, apaixonou-se sucessivamente por paraquedismo, paraglinder (ou parapente) e asa delta. Com essa, quase morreu.

Estávamos nos arrumando para ir à missa de sétimo dia do Osíris, marido de Tia Dalva, quando uma notícia extraordinária na TV informou a queda de duas asas delta na serra de Moeda e deu o nome dos pilotos. Um tinha morrido na hora. Quem ouviu a notícia foi minha mulher, que repetiu para mim o nome do sobrevivente, perguntando se não seria meu primo. Eu nem sabia ainda que ele voava com asa delta. Por isso, ligamos para a emissora e confirmamos o nome. Era mesmo meu primo. 

Fomos para a igreja e encontramos Tia Marisa, que acenou para nós toda alegrinha. Minha mulher falou para eu lhe perguntar se estava sabendo do acidente. Truquei na hora, pois não sou nada solidário com ninguém, ao contrário de minha amada. Sem problema. Levantou-se, chamou Tia Marisa para fora da igreja e deu-lhe a notícia. Minha tia não sabia de nada e pediu para que minha mulher fosse com ela ao hospital.

Chegaram lá e encontraram um bando de amigos e colegas de meu primo, dentre eles sua esposa (a segunda), que nem tinham se tocado da necessidade de informar os parentes próximos. Quando meu primo saiu do hospital, minha tia deu uma festa para comemorar. Da família, só eu e minha mulher fomos convidados. Todo o resto era a gangue que tinha estado com ele no hospital.


Quando Tio Tristano morreu e estava sendo velado, sentei-me ao lado do Jorge, que me cumprimentou meio sem jeito, pois havia anos que não nos falávamos. Comentei que o tinha visto na televisão, falando de moedas antigas. Sabia que era filatelista, mas numismata era novidade. Riu meio sem jeito e contou-me que tinha como hobby uma lojinha com um amigo, e que tinha dado ao filho mais novo uma moeda da Roma antiga, mas tinha quase certeza que era falsa, apesar de muito bonita. E ficamos ali conversando sobre esse assunto um bom tempo, praticamente esquecidos do caixão que estava à nossa frente.


Um dia fiquei sabendo que Tia Marisa e ele tinham se separado, apesar de continuarem morando no mesmo apartamento, em um prédio construído por um sobrinho no terreno do casarão onde tinham começado a vida e os desencontros de casados (prova de que o inferno pode ser aqui mesmo). Os dois filhos seguiram o padrão dos pais, pois casaram-se, tiveram filhos, desentenderam-se e se separaram.

Depois da morte do Jorge, minha mãe ou uma de minhas tias comentou escandalizada que o filho mais novo de Tia Marisa tirou-a do apartamento em que vivia e colocou-a em um quarto no pardieiro em que se transformou o hotel fundado por Dona Clara, sua avó. Creio que isso fez parte da negociação entre os dois filhos de Tia Ci e os dois de Tia Marisa, quatro primos-irmãos, durante ou após a partilha de bens deixados pela italiana. O filho mais novo de Tia Marisa teria comprado do irmão e primos o hotel (ou o que restou dele) e a casa de Lagoa Santa, onde mora atualmente.


Todos os anos, no dia do meu aniversário, Tia Marisa me liga para dar parabéns, não falha nunca. Eu sempre finjo surpresa e ela sempre pergunta quantos anos estou fazendo. Diz também que não se esquece de ligar porque gosta muito de mim. Este ano não foi diferente. Apenas pediu-me para ir visitá-la no hotel, "pois fica lá o dia todo". Fique tranquila, Tia Marisa, eu irei, pode acreditar nisso.


3 comentários:

  1. Bom ver que está recuperado da melancolia, JB, ou, ao menos,a combatendo com galhardia. Tava até parecendo eu.
    Apesar de ler todas as histórias de sua família, e todas as outras postagens também, acho que nunca comentei sobre elas, mas tenho uma dúvida : você realmente se lembra de tudo isso, ou em muitos dos detalhes você usa de licença poética? Digo isso porque eu pouco me lembro das histórias da família de quando eu era criança ou mesmo adolescente.
    Você tem uma memória excelente, JB. Não sei quantos posts já foram da história de sua família, mas sei que você tem neles um material muito bom, muito consistente. Já pensou em se dedicar mais a ele e transformá-lo em um livro? Falo sério, o resultado seria muito bom. Você poderia ilustrar cada capítulo com fotos da família, tomar depoimentos dos parentes mais velhos ainda vivos etc.

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    Respostas
    1. Bacana receber uma avaliação tão positiva! Mas, vamos aos fatos: não há nenhuma "liberdade poética" nas lembranças, todas elas reais. Evidentemente, espelham meu registro dos fatos que presenciei ou que me forram narrados. Mas nem tenho tanta memória assim. O que acontece é que ela é seletiva (isso não é piada!) e guarda só o que não tem utilidade. Lembro também que morei na casa de minha avó materna até me casar. Além disso, muitos casos foram escritos por minha irmã, que teve um contato muito mais longo com meu pai e minha mãe. Longo e próximo, diga-se. Esses textos estão claramente identificados nos posts.
      Quanto a fazer um livro, creio que seria inviável por vários motivos. O primeiro é que, apesar de amar todos os meus tios, não acho a menor graça de falar “dos belos olhos” de ninguém. O que eu curto mesmo é falar “do chulé e da unha encravada”, muito mais indicativos da humanidade das pessoas. Por isso mesmo, nunca usei “licença poética” para falar dos tios. Pode ter algum equívoco, mas moldura dourada não.
      O outro motivo está justamente relacionado a isso. Segundo um de meus filhos, “eu não uso filtro nenhum”. Como ele é um dos 2,3 leitores, talvez o único dos filhos que lê o que escrevo, comecei a encaminhar por e-mail os textos sobre os tios. E ele sugeriu cortar coisas, o que aceitei fazer. Pense bem, se meu filho (que não conhece meus tios) achou que eu estava muito boquirroto, imagine os filhos de meus tios. Era lançar o livro e tomar processo.
      Quanto aos retratos, até pensei em fechar a série dos filhos de Francisco e Julieta com algumas fotos que recebi de minha irmã, mas minha mulher foi radicalmente contra, justamente por invasão de privacidade. Acabei concordando em não divulgá-los. Então, por conta dessa "caretice" de gente mais normal e equilibrada, os textos acabaram ficando menos “temperados” do que poderiam.
      O ciclo de memórias de família será encerrado com meus próprios casos, casos sobre minha vida de solteiro, da infância até a fase adulta. Mas só tem "chulé e unha encravada"

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  2. Garanto que livros sobre chulé e unha encravada são muito mais interessantes que sobre belos olhos.
    Não sei se já viu, mas a "J" retornou com o blog. Não falei que logo ela voltava, que era só frescurite dela?

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