quinta-feira, 7 de julho de 2016

EU, LÚCIO DE SANTO GRAAL - RUBEM BRAGA

Tenho lido muitos livros, mas nenhum que mereça ser reverenciado nesta bagaça. Nenhum deles provocou admiração nem aquela expressão facial que surge quando se lê uma  frase ou período irretocavelmente genial, quando brota na mente aquela ideia de que -"queria saber escrever tão bem assim!" São boas biografias, boas reportagens em formato "livro", boas crônicas de jornal republicadas, mas só isso: "boas". 

Recentemente, por conta do post "Auto-Retrato", alguém sugeriu que eu mostrasse uma fotografia minha. Refuguei a sugestão, mas a ideia ficou voejando em meu cérebro. Como sou meio exibicionista, essa possibilidade até mostrou-se tentadora, mas desisti. Aí lembrei-me de uma crônica do meu ídolo Rubem Braga, onde ele aborda esse lance de anonimato. E é ele que volta (terceira vez) ao desencantado Blogson. Mesmo que ninguém se anime com esse estímulo, para mim é sempre uma delícia reler as crônicas do velho Braga, verdadeiras aulas de como escrever com lirismo e bom humor. Olhaí.


Já fiz muita coisa em jornal, mas o sonho secreto do coração jamais se cumpriu. É verdade que os sonhos mudam; lembro-me que, no tempo de rapazinho, a suprema autoridade era para mim Yves, do FonFon!, o Sr. Bastos Portela. Ele respondia a centenas de cartas com um ar displicente e irônico, rejeitando os poemas ou dizendo alguma coisa sobre as torturas ou delícias da alma que suas fãs Ihe expunham.
Sim, era supremo. Às vezes feroz, às vezes delicadíssimo, escrevia com navalha ou pluma e tinha, por cima de tudo, um ar de desencanto, ou fastio que raramente lhe permitia pequena frase lírica.
Mandei-lhe, certa vez, alguma coisa que escrevi, uma croniqueta de vinte linhas. Levou semanas para responder, e como o Fon-Fon! custava a chegar lá em Cachoeiro! Eu já estava triste quando um belo dia veio a resposta.
Yves não publicava minha literaturinha, mas me tratava com uma certa gentileza. Dizia, se bem me lembro, que aquilo devia ser coisa de estudante em férias, e acrescentava algo assim como "hum! você pode ser um humorista".
Não me zanguei com a recusa da croniqueta; com as semanas de espera eu já não fazia muita fé naquilo. (Os escritores adolescentes são horríveis pais, que vivem renegando os filhos semanas e as vezes dias depois de nascidos, passando seu amor de armas e bagagens para outro filho que acham um primor e que logo renegarão; com o tempo a gente fica menos ansioso e mais humilde e se as vezes contempla a filharada toda com aborrecimento pelo menos não a despreza mais por amor dos recém-nascidos, que já sabemos que não são grande coisa). Também não mandei mais colaboração; creio que fui passar as férias na praia e adeus literatura.
Há muito tempo que não leio o Fon-Fon!, pois me chateei quando a revista virou integralista; não sei se Yves continua funcionando. Sim, Yves era supremo; mas o meu grande sonho não era ser Yves.
Devo ter algum pudor em confessá-lo. Não é coisa, vamos dizer, muito viril. Que fazer? Rirá de mim o leitor severo; mas que se dane. Meu sonho é ter um "Consultório Sentimental”. Não com o meu nome, com um pseudônimo, um bom pseudônimo que intrigasse e encantasse as damas. “Mas quem será?", perguntariam elas, erguendo ao céu os belos olhos negros ou azuis. "Quem será, hein?" E ficariam minutos assim, talvez beliscando levemente o lábio inferior. E o Braga, moita.
Minhas respostas seriam infernais, oh, santo Deus, como eu brilharia. Haveria de mergulhar no coração das damas e de lá traria as pérolas lindíssimas que sempre julgo haver recônditas no fundo desses pequenos e confusos oceanos. De vez em quando eu seria irônico, mas também não demais; às vezes um pouco paradoxal, mas também sem abuso. No mais das vezes seria manso, ainda que pro­fundo; terno, embora ligeiramente superior. Às vezes poderia mesmo ser distinto e tão discreto que pediria perdão, mas me negaria a dar conselho em caso tão delicado. Outras vezes rasgaria apelos: “Ame, e creia no seu amor. Tenha a coragem de seus sentimentos; acredite na vida! Conte com meu apoio moral!”
Absolutamente, ab-so-lu-ta-men-te não cederia aos rogos de missivistas ansiosas por me falar pessoalmente, ou sequer pelo telefone. Não, nunca. Ao palerma do Braga elas não pilhariam; só poderiam lidar com o fantástico doutor de almas, profundo conhecedor do coração epistolar feminino, irônico porém tão humano, severo porém tão meigo.
É inútil, ó belas do Brasil; no dia em que eu me instalar atrás de meu soberbo pseudônimo podeis me mandar retratos até em maiô. Pessoalmente só merecereis o meu desprezo; porque “Juan" (ou “Vic", ou “Parsival", ou “Dr. Cândido"?) só tratará com as senhoras e senhoritas através de cartas.
Pessoalmente (que terá havido tom ele, com esse terrível conhecedor de mulheres? desengano ou soberbo fastio? mágoa ou tédio, Senhor?), pessoalmente as mulheres jamais o atingirão, ainda que venham lágrimas sobre a tinta azul em papel cor-de-rosa.
Sim, eu serei misterioso; magnífico e irredutível, quer me chame “Dr. Mefisto", quer me chame “Johnny", ou, o que talvez prefira, “Lúcio de Santo Graal". ''. E então as damas ficarão exasperadas, fascinadas...
E lá atrás de seu pseudônimo fabuloso ficará escondido, mergulhado na escuridão, ferido e medroso, o pobre coração do Braga.
Outubro, 1946

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