Tenho
lido muitos livros, mas nenhum que mereça ser reverenciado nesta bagaça. Nenhum deles provocou admiração nem aquela expressão facial que surge quando se lê uma frase ou período irretocavelmente genial, quando brota na mente aquela ideia de que -"queria saber escrever tão bem assim!" São boas biografias, boas reportagens em formato "livro", boas crônicas de jornal republicadas, mas só isso: "boas".
Recentemente, por conta do post "Auto-Retrato", alguém sugeriu que eu mostrasse uma fotografia minha. Refuguei a sugestão, mas a ideia ficou voejando em meu cérebro. Como sou meio exibicionista, essa possibilidade até mostrou-se tentadora, mas desisti. Aí lembrei-me de uma crônica do meu ídolo Rubem Braga, onde ele aborda esse lance de anonimato. E é ele que volta (terceira vez) ao desencantado Blogson. Mesmo que ninguém se anime com esse estímulo, para mim é sempre uma delícia reler as crônicas do velho Braga, verdadeiras aulas de como escrever com lirismo e bom humor. Olhaí.
Recentemente, por conta do post "Auto-Retrato", alguém sugeriu que eu mostrasse uma fotografia minha. Refuguei a sugestão, mas a ideia ficou voejando em meu cérebro. Como sou meio exibicionista, essa possibilidade até mostrou-se tentadora, mas desisti. Aí lembrei-me de uma crônica do meu ídolo Rubem Braga, onde ele aborda esse lance de anonimato. E é ele que volta (terceira vez) ao desencantado Blogson. Mesmo que ninguém se anime com esse estímulo, para mim é sempre uma delícia reler as crônicas do velho Braga, verdadeiras aulas de como escrever com lirismo e bom humor. Olhaí.
Já
fiz muita coisa em jornal, mas o sonho secreto do coração jamais se cumpriu. É
verdade que os sonhos mudam; lembro-me que, no tempo de rapazinho, a suprema
autoridade era para mim Yves, do FonFon!,
o Sr. Bastos Portela. Ele respondia a centenas de cartas com um ar displicente
e irônico, rejeitando os poemas ou dizendo alguma coisa sobre as torturas ou
delícias da alma que suas fãs Ihe expunham.
Sim,
era supremo. Às vezes feroz, às vezes delicadíssimo, escrevia com navalha ou pluma
e tinha, por cima de tudo, um ar de desencanto, ou fastio que raramente lhe
permitia pequena frase lírica.
Mandei-lhe,
certa vez, alguma coisa que escrevi, uma croniqueta de vinte linhas. Levou
semanas para responder, e como o Fon-Fon!
custava a chegar lá em Cachoeiro! Eu já estava triste quando um belo dia veio a
resposta.
Yves
não publicava minha literaturinha, mas me tratava com uma certa gentileza.
Dizia, se bem me lembro, que aquilo devia ser coisa de estudante em férias, e
acrescentava algo assim como "hum! você pode ser um humorista".
Não
me zanguei com a recusa da croniqueta; com as semanas de espera eu já não fazia
muita fé naquilo. (Os escritores adolescentes são horríveis pais, que vivem
renegando os filhos semanas e as vezes dias depois de nascidos, passando seu
amor de armas e bagagens para outro filho que acham um primor e que logo
renegarão; com o tempo a gente fica menos ansioso e mais humilde e se as vezes
contempla a filharada toda com aborrecimento pelo menos não a despreza mais por
amor dos recém-nascidos, que já sabemos que não são grande coisa). Também não
mandei mais colaboração; creio que fui passar as férias na praia e adeus
literatura.
Há
muito tempo que não leio o Fon-Fon!,
pois me chateei quando a revista virou integralista; não sei se Yves continua
funcionando. Sim, Yves era supremo; mas o meu grande sonho não era ser Yves.
Devo
ter algum pudor em
confessá-lo. Não é coisa, vamos dizer, muito viril. Que
fazer? Rirá de mim o leitor severo; mas que se dane. Meu sonho é ter um
"Consultório Sentimental”. Não com o meu nome, com um pseudônimo, um bom
pseudônimo que intrigasse e encantasse as damas. “Mas quem será?",
perguntariam elas, erguendo ao céu os belos olhos negros ou azuis. "Quem
será, hein?" E ficariam minutos assim, talvez beliscando levemente o lábio
inferior. E o Braga, moita.
Minhas
respostas seriam infernais, oh, santo Deus, como eu brilharia. Haveria de
mergulhar no coração das damas e de lá traria as pérolas lindíssimas que sempre
julgo haver recônditas no fundo desses pequenos e confusos oceanos. De vez em
quando eu seria irônico, mas também não demais; às vezes um pouco paradoxal,
mas também sem abuso. No mais das vezes seria manso, ainda que profundo; terno,
embora ligeiramente superior. Às vezes poderia mesmo ser distinto e tão discreto
que pediria perdão, mas me negaria a dar conselho em caso tão delicado. Outras
vezes rasgaria apelos: “Ame, e creia no seu amor. Tenha a coragem de seus
sentimentos; acredite na vida! Conte com meu apoio moral!”
Absolutamente,
ab-so-lu-ta-men-te não cederia aos rogos de missivistas ansiosas por me falar
pessoalmente, ou sequer pelo telefone. Não, nunca. Ao palerma do Braga elas não
pilhariam; só poderiam lidar com o fantástico doutor de almas, profundo
conhecedor do coração epistolar feminino, irônico porém tão humano, severo
porém tão meigo.
É
inútil, ó belas do Brasil; no dia em que eu me instalar atrás de meu soberbo
pseudônimo podeis me mandar retratos até em maiô. Pessoalmente
só merecereis o meu desprezo; porque “Juan" (ou “Vic", ou “Parsival",
ou “Dr. Cândido"?) só tratará com as senhoras e senhoritas através de
cartas.
Pessoalmente
(que terá havido tom ele, com esse terrível conhecedor de mulheres? desengano
ou soberbo fastio? mágoa ou tédio, Senhor?), pessoalmente as mulheres jamais o
atingirão, ainda que venham lágrimas sobre a tinta azul em papel cor-de-rosa.
Sim,
eu serei misterioso; magnífico e irredutível, quer me chame “Dr. Mefisto",
quer me chame “Johnny", ou, o que talvez prefira, “Lúcio de Santo
Graal". ''. E então as damas ficarão exasperadas, fascinadas...
E
lá atrás de seu pseudônimo fabuloso ficará escondido, mergulhado na escuridão,
ferido e medroso, o pobre coração do Braga.
Outubro, 1946
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