Eu poderia
dizer que o texto a seguir fala da infância de Odorêncio, o único personagem
fictício (redundância!) que já criei, mas eu estaria mentindo. Até poderia, feitas algumas
adaptações, mas o que se lerá (ou não) a seguir não é um coquetel das
lembranças de várias pessoas. É sobre a minha infância. Não tenho nenhuma
pretensão de escrever uma autobiografia (acreditem!), até porque nunca tive
grandes conquistas, nunca recebi premiações, nunca me destaquei em nada; sou
apenas um zé, um zé mané, um zé ninguém, um zé botelho.
Já vi
muita gente se auto-coroar, vangloriar-se sem ter motivo nenhum para isso. Eu,
ao contrário, sempre me auto-depreciei, nunca me levei muito a sério. Aliás,
nunca levo ninguém muito a sério, ou melhor, sempre vejo com alguma reserva as
manifestações e comportamentos de gente que se acha “O” fodástico.
Ninguém
(as pessoas inteligentes, pelo menos) nunca tem certeza de nada! Então, para
que subir em um tijolinho, em um pedestal? Só se for para ser “coroado” pelos
pombos. Então, o que me fez embarcar nesse tipo de texto foi o desejo de deixar
para meus filhos um retrato - severo, talvez, mas sincero - de seu pai, caso algum
deles um dia precise fazer terapia (parece maluquice, mas esse pensamento é
real).
Então,
para que tornar público um assunto tão pessoal? Quer saber a verdade? Não sei.
Não sei mesmo, por mais ridículo que isso possa parecer. Por exibicionismo?
Pelo desejo incessante de me sentir amado? Desabafo tardio? Parece
contraditório com o que eu disse antes? Pode ser. Pode ser...
Quando eu nasci, creio que meu pai e seus
irmãos já haviam quebrado (se alguém se
lembrar, essa frase iniciava o "livro de Odorêncio"). Morávamos na casa de minha avó materna,
juntamente com oito tios e tias solteiros. Provavelmente, o que não faltava
eram proibições e regras. Afinal, duas crianças (eu e meu irmão) contra doze
adultos era covardia. Éramos pobres, sem nos dar conta disso, exceto quando
confrontados com nossos dois únicos primos por parte de mãe. Eles, as únicas
crianças com quem podíamos brincar, eram ricos de nascença, tinham brinquedos
incríveis, bicicletas, passavam as férias na praia ou em estâncias
hidrominerais. E nós lá, só olhando – e babando.
Que tal ir à Praça da Estação para nos
despedir deles em uma de suas viagens para o Rio? Bom, né? Que tal ser
convidado a entrar no Vera Cruz, que era o melhor trem de passageiros da época
(com ar condicionado e tudo mais), só para conhecer a cabine onde os primos
viajariam (deitados, claro, em camas beliche)? Excelente, não? Pois é, eu já
fui levado a um ou dois desses bota-fora, à noite. A volta para casa sempre
tinha um gostinho de fundo de gaiola.
Nem é preciso dizer também que não podíamos
sair sozinhos de casa (na nossa rua passavam bondes!), nem jogar bola com a
molecada que morava nas proximidades, nem qualquer coisa que uma criança pode e
quer fazer. Com essa repressão toda, sempre haveria a chance de alguma coisa
dar merda. E, claro, deu. Apesar do montão de gente que morava na casa da minha
avó (o que foi resolvido com a construção de sucessivos barracões ou
“edículas”, segundo um antigo e pedante colega), havia um cômodo da casa que
era utilizado como despensa. Na prática, era um quarto cheio de tralhas. A
porta não tinha chave e era fechada por dentro com uma tramela ou taramela.
Pois bem, talvez movido pelos exemplos
paterno, dos tios e do meu avô, um dia tranquei-me nesse cômodo com uma caixa
de fósforos e uma folha de papel de caderno, disposto a fumar um cigarro. Ao
contrário da letra de música (“vou apertar, mas não vou acender agora”),
acendi sem apertar. Creio que a excitação do proibido fez com que eu enrolasse
muito mal o papel (que era só papel mesmo). Assim, depois de acendê-lo preso à
boca, tal como via os adultos fazer, foi só aspirar uma vez que a chama
imediatamente queimou meu nariz e meus cílios, chegando a “sapecar” meus
cabelos. O estrago só não foi maior porque eu já tinha a testa grande e a chama
não foi capaz de vencer essa distância (se a testa fosse menor, eu seria um
predecessor do Michael Jackson). O fato é que caí no berreiro, mas até me lembrar
de abrir a tramela, já tinha deixado o pessoal meio assustado.
Mas há outra lembrança que, essa sim, está na
linha deste texto. Um dia, quando meu irmão já estava autorizado a sair sozinho
pelas proximidades, fui com ele a algum lugar. Ao passar perto de dois meninos
que discutiam, ouvimos um deles soltar um “filho da puta!”. Aquilo me
mesmerizou, hipnotizou, pois era uma expressão tabu. Virei para meu irmão e
disse “você viu o que o Alvinho falou? Ele disse F.P.!!!”
Olha que coisa ridícula e hipócrita!, eu nem
sonhava saber o significado de “puta”, mas sabia que aquilo era um palavrão. Se
eu tivesse ficado calado, tudo bem, mas sempre me lembro e me impressiono com a
hipocrisia e a carga de repressão sobre uma criança de sete ou oito anos
contidas nesse episódio.
Se eu parar para pensar, posso até sorrir –
meio contrafeito – das lembranças mais remotas que tenho, mas no duro, no duro,
sempre chego à conclusão que minha infância foi uma bela merda. Morávamos em um
bairro de classe média baixa, perto de dois campos de futebol de várzea. Quando
fui autorizado a sair sozinho de casa, era para lá que me dirigia. A meninada
da redondeza também ia para lá, que era o lugar ideal para se jogar “finca” e
bolinha de gude, soltar papagaio e, naturalmente, jogar futebol.
Sendo muito tímido e inseguro, era às vezes
alvo de gozações e ameaças dos meus “amigos”. Afinal, a partir dos seis, sete
anos, eles já vagabundeavam por ali sozinhos, livres, o dia todo. Ou seja, eles
tinham quatro anos a mais de malandragem que eu e não tinham hora para voltar
pra casa. E isso fazia enorme diferença: eram muito mais hábeis nos jogos de
finca e bola de gude, faziam papagaios que voavam (nunca consegui fazer um
papagaio que voasse decentemente. Quando queria soltar, tinha de comprar de um
senhor que ia lá aos sábados e domingos, durante os jogos de futebol dos adultos) e eram
craques nas peladas disputadas com bolas de plástico ou borracha.
Esse, aliás, é um caso à parte. Um dia meu
irmão ganhou de presente uma bola de couro. A partir daí sempre éramos
convidados a jogar futebol. Para equilibrar, meu irmão ficava em um time e eu
no outro (éramos péssimos!). Normalmente, me empurravam para o gol, para não
atrapalhar. Bastava algum menino de fora chegar com outra bola de couro, que os
times eram imediatamente refeitos e a bola devolvida ao meu irmão. Como ele não
iria mais jogar (pois teria que tomar conta de sua bola), eu era “educadamente”
impedido de participar, exceto nos casos excepcionalíssimos em que alguém saía
antes do jogo terminar. A partir de algum tempo, passei a odiar futebol.
A médio prazo isso foi até bom, pois fez com
que eu progressivamente me afastasse dessa molecada. Como morávamos na parte
mais pobre do bairro, meus companheiros eram igualmente pobres, filhos de gente
humilde, de baixa extração social, econômica e cultural. Muitos eram
repetentes, outros pararam de estudar ainda no antigo primário ou após sua
conclusão. Como morei lá até me casar, pude ver em que se transformaram: um
virou fotógrafo de batizados e casamentos, outro enlouqueceu, um foi morto no
início da adolescência, vários se tornaram apenas desocupados, encostados nas
portas dos bares. Nenhum continuou os estudos, nenhum fez faculdade.
Aliás, só um, que passou sete anos fazendo
literalmente nada, depois de formar-se no primário. Esse cara não era cem por
cento normal. Na infância, ao saltar de um bonde em movimento meteu a cabeça no
poste. Essa era a explicação dada para suas excentricidades. Curiosamente, ele
e eu éramos fãs de história antiga (greco-romana) e conversávamos horas sobre
isso. Eu já estava na faculdade quando ele resolveu estudar de novo. Fez um ano
de madureza (supletivo) e passou no vestibular de Física. Depois de formado,
começou a dar aula, mas não deve ter conseguido ficar sem discutir com os
colegas e diretores das escolas onde trabalhou. Acabou montando uma turma de
aulas particulares. Um dia vi seu retrato no jornal; tinha sido assassinado por
um segurança em um evento qualquer, durante uma discussão.
Alguém poderá perguntar o que eu fazia no meu
tempo livre, principalmente depois de me afastar dos companheiros. Eu lia.
Minha tia comprava coleções de livros que, acredito, nunca leu. Penso que eram
decorativos e davam a ela certo status, com suas lombadas coloridas e títulos
em letra dourada. O que sei é que li pra caramba. E tinha muita coisa boa,
clássicos mesmo.
Além desses livros, li também um baú inteiro
de “Seleções do Reader’s Digest” deixadas por meu tio depois que se
casou. Não me lembro da periodicidade dessas revistas, mas as primeiras eram de
1942 e as últimas de 1956 ou 1958, sei lá. E eu li tudo, de cabo a rabo (exceto
a seção “Enriqueça seu vocabulário” do Aurélio Buarque).
Já viu que um menino preso, tímido, inseguro
e leitor de “Seleções” não seria grande coisa na adolescência, certo?
Pois é...
(Caso alguém se interesse em saber, esse texto seria encaixado na "saga" Norton Antivírus, imediatamente antes do post "NORTON ANTIVIRUS - PARTE 2½").
(Caso alguém se interesse em saber, esse texto seria encaixado na "saga" Norton Antivírus, imediatamente antes do post "NORTON ANTIVIRUS - PARTE 2½").
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