sexta-feira, 29 de julho de 2016

INFÂNCIA F. P.

Eu poderia dizer que o texto a seguir fala da infância de Odorêncio, o único personagem fictício (redundância!) que já criei, mas eu estaria mentindo. Até poderia, feitas algumas adaptações, mas o que se lerá (ou não) a seguir não é um coquetel das lembranças de várias pessoas. É sobre a minha infância. Não tenho nenhuma pretensão de escrever uma autobiografia (acreditem!), até porque nunca tive grandes conquistas, nunca recebi premiações, nunca me destaquei em nada; sou apenas um zé, um zé mané, um zé ninguém, um zé botelho.

Já vi muita gente se auto-coroar, vangloriar-se sem ter motivo nenhum para isso. Eu, ao contrário, sempre me auto-depreciei, nunca me levei muito a sério. Aliás, nunca levo ninguém muito a sério, ou melhor, sempre vejo com alguma reserva as manifestações e comportamentos de gente que se acha “O” fodástico.

Ninguém (as pessoas inteligentes, pelo menos) nunca tem certeza de nada! Então, para que subir em um tijolinho, em um pedestal? Só se for para ser “coroado” pelos pombos. Então, o que me fez embarcar nesse tipo de texto foi o desejo de deixar para meus filhos um retrato - severo, talvez, mas sincero - de seu pai, caso algum deles um dia precise fazer terapia (parece maluquice, mas esse pensamento é real).

Então, para que tornar público um assunto tão pessoal? Quer saber a verdade? Não sei. Não sei mesmo, por mais ridículo que isso possa parecer. Por exibicionismo? Pelo desejo incessante de me sentir amado? Desabafo tardio? Parece contraditório com o que eu disse antes? Pode ser. Pode ser...



Quando eu nasci, creio que meu pai e seus irmãos já haviam quebrado (se alguém se lembrar, essa frase iniciava o "livro de Odorêncio").  Morávamos na casa de minha avó materna, juntamente com oito tios e tias solteiros. Provavelmente, o que não faltava eram proibições e regras. Afinal, duas crianças (eu e meu irmão) contra doze adultos era covardia. Éramos pobres, sem nos dar conta disso, exceto quando confrontados com nossos dois únicos primos por parte de mãe. Eles, as únicas crianças com quem podíamos brincar, eram ricos de nascença, tinham brinquedos incríveis, bicicletas, passavam as férias na praia ou em estâncias hidrominerais. E nós lá, só olhando – e babando.

Que tal ir à Praça da Estação para nos despedir deles em uma de suas viagens para o Rio? Bom, né? Que tal ser convidado a entrar no Vera Cruz, que era o melhor trem de passageiros da época (com ar condicionado e tudo mais), só para conhecer a cabine onde os primos viajariam (deitados, claro, em camas beliche)? Excelente, não? Pois é, eu já fui levado a um ou dois desses bota-fora, à noite. A volta para casa sempre tinha um gostinho de fundo de gaiola.

Nem é preciso dizer também que não podíamos sair sozinhos de casa (na nossa rua passavam bondes!), nem jogar bola com a molecada que morava nas proximidades, nem qualquer coisa que uma criança pode e quer fazer. Com essa repressão toda, sempre haveria a chance de alguma coisa dar merda. E, claro, deu. Apesar do montão de gente que morava na casa da minha avó (o que foi resolvido com a construção de sucessivos barracões ou “edículas”, segundo um antigo e pedante colega), havia um cômodo da casa que era utilizado como despensa. Na prática, era um quarto cheio de tralhas. A porta não tinha chave e era fechada por dentro com uma tramela ou taramela.

Pois bem, talvez movido pelos exemplos paterno, dos tios e do meu avô, um dia tranquei-me nesse cômodo com uma caixa de fósforos e uma folha de papel de caderno, disposto a fumar um cigarro. Ao contrário da letra de música (“vou apertar, mas não vou acender agora”), acendi sem apertar. Creio que a excitação do proibido fez com que eu enrolasse muito mal o papel (que era só papel mesmo). Assim, depois de acendê-lo preso à boca, tal como via os adultos fazer, foi só aspirar uma vez que a chama imediatamente queimou meu nariz e meus cílios, chegando a “sapecar” meus cabelos. O estrago só não foi maior porque eu já tinha a testa grande e a chama não foi capaz de vencer essa distância (se a testa fosse menor, eu seria um predecessor do Michael Jackson). O fato é que caí no berreiro, mas até me lembrar de abrir a tramela, já tinha deixado o pessoal meio assustado.

Mas há outra lembrança que, essa sim, está na linha deste texto. Um dia, quando meu irmão já estava autorizado a sair sozinho pelas proximidades, fui com ele a algum lugar. Ao passar perto de dois meninos que discutiam, ouvimos um deles soltar um “filho da puta!”. Aquilo me mesmerizou, hipnotizou, pois era uma expressão tabu. Virei para meu irmão e disse “você viu o que o Alvinho falou? Ele disse F.P.!!!

Olha que coisa ridícula e hipócrita!, eu nem sonhava saber o significado de “puta”, mas sabia que aquilo era um palavrão. Se eu tivesse ficado calado, tudo bem, mas sempre me lembro e me impressiono com a hipocrisia e a carga de repressão sobre uma criança de sete ou oito anos contidas nesse episódio.

Se eu parar para pensar, posso até sorrir – meio contrafeito – das lembranças mais remotas que tenho, mas no duro, no duro, sempre chego à conclusão que minha infância foi uma bela merda. Morávamos em um bairro de classe média baixa, perto de dois campos de futebol de várzea. Quando fui autorizado a sair sozinho de casa, era para lá que me dirigia. A meninada da redondeza também ia para lá, que era o lugar ideal para se jogar “finca” e bolinha de gude, soltar papagaio e, naturalmente, jogar futebol.

Sendo muito tímido e inseguro, era às vezes alvo de gozações e ameaças dos meus “amigos”. Afinal, a partir dos seis, sete anos, eles já vagabundeavam por ali sozinhos, livres, o dia todo. Ou seja, eles tinham quatro anos a mais de malandragem que eu e não tinham hora para voltar pra casa. E isso fazia enorme diferença: eram muito mais hábeis nos jogos de finca e bola de gude, faziam papagaios que voavam (nunca consegui fazer um papagaio que voasse decentemente. Quando queria soltar, tinha de comprar de um senhor que ia lá aos sábados e domingos, durante os jogos de futebol dos adultos) e eram craques nas peladas disputadas com bolas de plástico ou borracha.

Esse, aliás, é um caso à parte. Um dia meu irmão ganhou de presente uma bola de couro. A partir daí sempre éramos convidados a jogar futebol. Para equilibrar, meu irmão ficava em um time e eu no outro (éramos péssimos!). Normalmente, me empurravam para o gol, para não atrapalhar. Bastava algum menino de fora chegar com outra bola de couro, que os times eram imediatamente refeitos e a bola devolvida ao meu irmão. Como ele não iria mais jogar (pois teria que tomar conta de sua bola), eu era “educadamente” impedido de participar, exceto nos casos excepcionalíssimos em que alguém saía antes do jogo terminar. A partir de algum tempo, passei a odiar futebol.

A médio prazo isso foi até bom, pois fez com que eu progressivamente me afastasse dessa molecada. Como morávamos na parte mais pobre do bairro, meus companheiros eram igualmente pobres, filhos de gente humilde, de baixa extração social, econômica e cultural. Muitos eram repetentes, outros pararam de estudar ainda no antigo primário ou após sua conclusão. Como morei lá até me casar, pude ver em que se transformaram: um virou fotógrafo de batizados e casamentos, outro enlouqueceu, um foi morto no início da adolescência, vários se tornaram apenas desocupados, encostados nas portas dos bares. Nenhum continuou os estudos, nenhum fez faculdade.

Aliás, só um, que passou sete anos fazendo literalmente nada, depois de formar-se no primário. Esse cara não era cem por cento normal. Na infância, ao saltar de um bonde em movimento meteu a cabeça no poste. Essa era a explicação dada para suas excentricidades. Curiosamente, ele e eu éramos fãs de história antiga (greco-romana) e conversávamos horas sobre isso. Eu já estava na faculdade quando ele resolveu estudar de novo. Fez um ano de madureza (supletivo) e passou no vestibular de Física. Depois de formado, começou a dar aula, mas não deve ter conseguido ficar sem discutir com os colegas e diretores das escolas onde trabalhou. Acabou montando uma turma de aulas particulares. Um dia vi seu retrato no jornal; tinha sido assassinado por um segurança em um evento qualquer, durante uma discussão.

Alguém poderá perguntar o que eu fazia no meu tempo livre, principalmente depois de me afastar dos companheiros. Eu lia. Minha tia comprava coleções de livros que, acredito, nunca leu. Penso que eram decorativos e davam a ela certo status, com suas lombadas coloridas e títulos em letra dourada. O que sei é que li pra caramba. E tinha muita coisa boa, clássicos mesmo.

Além desses livros, li também um baú inteiro de “Seleções do Reader’s Digest” deixadas por meu tio depois que se casou. Não me lembro da periodicidade dessas revistas, mas as primeiras eram de 1942 e as últimas de 1956 ou 1958, sei lá. E eu li tudo, de cabo a rabo (exceto a seção “Enriqueça seu vocabulário” do Aurélio Buarque).

Já viu que um menino preso, tímido, inseguro e leitor de “Seleções” não seria grande coisa na adolescência, certo? Pois é...

(Caso alguém se interesse em saber, esse texto seria encaixado na "saga" Norton Antivírus, imediatamente antes do post "NORTON ANTIVIRUS - PARTE 2½").

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