sábado, 30 de julho de 2016

A PRAXE DOS IMBECIS

Este texto foi originalmente postado com o título de NORTON ANTIVÍRUS 2 1/2. Por isso, quem já o leu antes pode parar por aqui. Resolvi divulgá-lo outra vez só para dar sequência lógica aos textos das últimas semanas. Resolvi também abandonar o título do post original.

“(...) eu pareço ter sido apenas como um garoto brincando na praia e me divertindo, de vez em quando encontrando uma pedra arredondada ou uma concha mais bonita que as comuns, enquanto o grande oceano da verdade repousa desconhecido perante mim." (Isaac Newton)


ADOLESCÊNCIA

Tentar viver a partir de experiências relatadas e vividas por outras pessoas é como “aprender japonês em Braille” (Djavan). Mas era isso que eu tentava. Enquanto a vida, esse “grande oceano da verdade” permanecia à minha frente pronta para ser explorada, eu tentava desbastá-la a golpes de “Seleções”. Quem conhece, sabe que essa revista é cheia de “ensinamentos” e lições de vida. Agora, imagine um pré-adolescente lendo essas “lições”. Haja intoxicação! E o pior é que eu queria aprender a viver apenas lendo aquela merda (por exemplo, como beijar uma menina na boca)!!! Para neutralizar isso, só mesmo com a ajuda de um irmão mais velho (acredite se quiser!).

Quando éramos crianças, nosso pai nos tratava super carinhosamente e sempre dizia que éramos os “meninos mais bonitos do mundo”. E, tal como o personagem Alvarenga, do Jô Soares, eu acreditei! Essa crença só desandou no início da adolescência, como se verá. A três quarteirões de distância, ficava o glorioso Ginásio Afonso Arinos, um colégio tão ruim quanto as escolas municipais de hoje. A diferença é que, naquela época, o turno da manhã era reservado ao sexo masculino e o da tarde ao feminino. Como morávamos na rua principal do bairro, o sobe e desce de alunos e alunas era grande.

Um dia, estranhei o desaparecimento do meu irmão, após o almoço. Quando o encontrei, ele estava sentado na varanda da casa, vendo as meninas que se dirigiam ao tal colégio. Ele é quase três anos mais velho que eu. Na época, ele devia ter uns dezesseis, dezessete anos. Sem entender muito bem porque, fiquei ali também. Acho que meus hormônios ainda estavam adormecidos. O fato é que isso passou a ser uma coisa rotineira, diária, tanto após o almoço quanto no final da tarde, hora da saída do colégio. Algumas meninas se entusiasmavam ao passar na nossa porta, chegando até a pular para “nos” ver, por causa do muro existente. E meu irmão lá, imóvel e cheio de si, verdadeira estátua de pavão.

Não sei se não tinha coragem ou se era uma atividade muito, digamos, plebeia para ele. O que sei é que passou a me fazer de mensageiro para saber o nome de alguma menina que o tinha atraído mais. E eu ia, todo pimpão (!!). Mas passei a notar que, sem exceção, as meninas queriam saber apenas sobre ele. Mas como, se nós éramos os mais bonitos do mundo? Desconfiômetro do Paraguai, já viu, né? Esse tipo de acontecimento acabou provocando a revelação: eu não era o mais bonito do mundo, ou melhor, eu era feio pra cacete. Magrelo, cabelo anelado, orelhas desniveladas, narigudo, uma perna torta como um parêntese, sem queixo e mais alguns detalhes eventualmente esquecidos. Em resumo, uma bosta.

Eu não sabia jogar futebol, era pobre, tímido, reprimido, medroso e inseguro (sempre!). Com isso, minha autoestima já não era lá essas coisas. Agora descobrir também que eu era feio e sem atrativos em plena adolescência, que é a época mais insegura da vida, era demais. Só havia um caminho: criar um diferencial que me destacasse. Ou pular de um edifício. Como isso nunca me ocorreu, sobrava a mudança. É óbvio que essas coisas fluíram meio inconscientemente, na base do instinto de sobrevivência.

Eu poderia escolher entre ser intelectual, “alternativo” ou “legal” (“bonzinho”, simpático ou apalhaçado). Acabei optando por tentar ser (ou fingir ser) as três coisas. É óbvio que eu não tinha consciência clara disso na época. Além do mais, esses comportamentos foram sendo adotados progressivamente, como quem veste uma armadura medieval ou uma roupa de astronauta. A função era a mesma: proteger-me do desconforto ou da dor de não me sentir amado. Ou melhor, de não ter o ferramental necessário para ser amado fora do âmbito familiar. Creio que foi aí que surgiram os primeiros sintomas de camaleão. Imagino que a primeira faceta foi a do “gente boa”, até porque eu tinha sido educado para não desobedecer, ser bonzinho, etc. Bela merda, não?

E aí começou a zorra. Pouco a pouco, comecei a adotar comportamentos de acordo com a situação. “Querer ser mais do que valem é dos imbecis a praxe”, diz a letra de uma música do Juca Chaves. E era isso que eu queria: ser ou parecer ser mais intenso do que jamais consegui no dia a dia.

E tome caricatura: precisava ser cara de pau, desinibido? Olha eu lá tentando, eu que sempre fui super introvertido. Tava conversando com gente culta? Abria logo meu baú mental de Seleções, orelhas de livros, cadernos B, e por aí vai. E o engraçado é que às vezes colava. Tempos atrás meu irmão me disse que sempre me olhou com certa inveja, pois eu tinha lido o livro “Sofrimentos de Werther”, do Goethe. Só que eu li obrigado, pois era para trabalho escolar. E o livro era ruim demais! Pelo menos, é o que achei na época.

Mas ele e eu éramos mais ou menos farinha do mesmo saco. Sendo mais velho e odiando (creio) morar naquele bairro, ele sempre me puxou para sair de lá, para fazer coisas que ele entendia ser necessárias, como aprender a nadar ou estudar inglês, por exemplo. O curioso é que apesar de recusar aquela vida de pobreza, ele nunca se escusou de levar colegas para almoçar em casa, o que eu jamais tive coragem ou desejo de fazer (em certos aspectos, eu era muito mais elitista que ele). Querer ser mais do que valem..., já viu, né?


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