domingo, 3 de julho de 2016

PONTO DE PARTIDA

Quem chega à porta do quarto, pouca coisa tem para olhar. Imediatamente à direita, logo após a ombreira da porta, algumas prateleiras feitas com tábuas sem acabamento vergam-se sob o peso de caixas de papelão cheias de papéis antigos e alguns livros. Encostada na parede à direita, no canto, encontra-se uma cama de solteiro, desarrumada.

Ao fundo, um banco de madeira suporta uma mala de couro cru, decorada com desenhos feitos a ferro quente, onde são guardadas as peças de vestuário, já que o quarto não tem armário embutido nem guarda-roupa.

À esquerda, debaixo da janela, vê-se uma velha escrivaninha e, sobre ela, roupas sujas misturam-se descuidadamente com jornais antigos, algumas frutas, uma sacola com pães e uma máquina de escrever. A máquina é uma Remington cor de ouro-velho e foi comprada anos atrás em um leilão. Uma cadeira com o assento estofado já gasto e desbotado – sempre usada como cabide de calças – completa a mobília do quarto.

Tudo ali é velho ou ordinário. O tampo de madeira da escrivaninha ostenta várias marcas circulares desbotadas, causadas por copos cheios de água que ali coloca antes de deitar-se. As bordas são escuras e queimadas pelos cigarros que acendeu e se esqueceu de pegar, no tempo em que ainda fumava.

O quarto onde passa a maior parte do tempo é alugado e fica nos fundos de uma casa velha, transformada em pensão. O acesso a ele é feito através de um corredor na lateral, o que lhe confere alguma independência e privacidade.

Na carteira de identidade consta o nome de Odorêncio, dado em homenagem a um tio-avô que nunca viu. Tem sessenta anos presumíveis. Os cabelos já escassos estão quase totalmente brancos. A barriga flácida e volumosa teima em derramar-se sobre o cinto.

Como vem acontecendo há tempos, sente-se infeliz e irritado com a vida que leva. Não tem amigos com quem conversar – “não tenho amigos, tenho apenas conhecidos”.

Depois que se separou, praticamente perdeu o contato com os filhos, que não o procuram nunca, exceto para pedir algum dinheiro. Dos parentes próximos – poucos – também não dá notícia.

Como está aposentado, quando não está lendo, escreve coisas que depois joga no lixo, numa rotina tediosa e um pouco angustiante.

Cumprindo uma espécie de ritual diário, Odorêncio aproxima-se da escrivaninha, tira um pé de meia preta de cima da máquina e, com zelo e interesse, usa-o como espanador para limpar os farelos de pão espalhados no tampo da mesa. Concluída a limpeza, senta-se na cadeira, retira de uma das gavetas um pacote de aparas de papel de jornal, cortadas em tamanho “ofício”. Pega uma das folhas e coloca-a cuidadosamente na máquina. Junta as duas extremidades para ver se estão bem alinhadas e se dá por satisfeito.

Existirmos: a que será que se destina?” Quando criança, eu era um menino cheio de inseguranças variadas. Adolescendo, comecei a não ter certeza de nada, verdadeiro espelho do Raul Seixas ("prefiro ser essa metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo").
À medida que fui envelhecendo, foi aumentando mais e mais minha perplexidade sobre essa coisa incompreensível chamada Vida, de tal forma que hoje eu me sinto totalmente solidário com quem pronunciou essa pérola: "‘só sei que nada sei”.

–  “Início mais lixo que esse, impossível”, pensou, enquanto retirava e amassava a folha. Pegou nova folha, repetiu o ritual e começou:

Qual é o sentido da vida? Deve haver um sentido para a vida! Não é possível que os seres vivos tenham surgido por conta de um capricho de moléculas de carbono delinquentes e desocupadas! Não consigo entender que uma pessoa, um animal ou mesmo uma bactéria sejam apenas sistemas fechados, programados para reproduzir-se e movido por impulsos eletroquímicos. Para que? É tão imbecil pensar assim! Por outro lado...

Sentiu-se ridículo escrevendo sobre coisas que sabia não ter condições de explicar ou entender. Invejou as grandes mentes da humanidade (– “eu temo o poder e admiro o conhecimento, mas a única coisa que eu respeito de verdade é a inteligência”, gostava de dizer para os antigos colegas de trabalho).

Arranca a folha, amassa-a e joga no chão. Pega outra folha, coloca na máquina e recomeça:

Sinto-me como se fosse o resultado de um projeto ambicioso que não deu certo, seja por defeito de concepção, seja por erro de dimensionamento, talvez pela má qualidade dos materiais empregados ou por falhas no processo produtivo ou, até mesmo, por vícios de utilização.

Divertiu-se com a ideia e prosseguiu:

Não sei por que algumas pessoas dão-se bem na vida, constituem família, divertem-se e enriquecem, enquanto outras caminham justamente na direção oposta. Não se trata aqui de reinventar a psicologia ou outra ciência do comportamento, apenas de constatar uma realidade estranha e desigual. Qual é o sentido disso, qual a lógica obscura disso tudo? Afinal, qual é o sentido da vida? Não sei o sentido da vida e talvez trocasse a minha própria pela resposta a essa pergunta.

Por alguns instantes ficou imóvel, sem saber como continuar. Irritou-se pela falta de imaginação, pela incapacidade de verbalizar os pensamentos confusos que giravam em sua mente. Ia tirar de novo o papel da máquina, quando lhe ocorreu uma ideia que pareceu interessante:

–  Vou escrever sobre minha vida. Talvez, ao resgatar todas as lembranças, isso me ajude a compreender o sentido da vida. Se não da Vida, metafisicamente falando, pelo menos da minha.

Acreditando que finalmente tinha imaginado algo que o faria preencher as longas horas ociosas, deixou-se ficar pensativo. Não tinha ilusões sobre a qualidade literária do que iria produzir, mas intimamente, tinha a convicção de que todo romance, toda obra de ficção tem sempre alguma coisa de autobiográfico.


Os dois indicadores usados para datilografar começam a bater nas teclas:


- Nasci em uma família...



As lembranças, as conversas, as impressões e as mágoas foram pouco a pouco preenchendo aquelas folhas, empilhadas cuidadosamente em uma caixa de camisa social que tinha guardado. Nada escapou de ser registrado, mesmo os casos mais fúteis, mesmo as conversas mais tolas. Ainda no início, olhando a papelada que se avolumava, pensou em voz alta, não sem uma ponta de ironia:

–  Minha história e minha vida estão nesta caixa!

Entretanto, à medida que o texto e as lembranças se aproximavam do momento em que se encontrava, Odorêncio ia ficando mais e mais inquieto e irritado. Já tinha até comprado outra resma de papel, já tinha trocado a fita da máquina. E o que seria uma forma de passar o tempo havia se transformado aos poucos em obsessão. E aquela agitação só aumentava. Afinal, mesmo depois de passar em revista toda a sua vida, Odorêncio continuava no mesmo ponto onde tinha começado. Exasperado, exclamou quase gritado:

–  Qual é a porra do sentido da minha vida?


Nesse instante, começou a sentir um mal estar, um pouco de enjoo. – "Será que é aquela carne de porco que eu comi? Talvez fosse bom tomar um bicarbonato...", pensou. Sentou-se na cama e passou a mão na testa. Percebeu que estava suando frio. Sem entender o que estava acontecendo, tentou se levantar. Uma dor intensa que começava no peito e que se irradiava para o braço esquerdo – como se uma mão invisível estivesse esmagando seu coração – o impediu. Meio tonto e com dificuldade para respirar, pensou em chamar alguém, em pedir ajuda.

                                                                * * *

Duas mulheres de aparência cansada e lenço amarrado na cabeça limpam o quarto. Enquanto a mais nova varre o cômodo e recolhe o lixo espalhado, a outra tira o lençol da cama e faz uma trouxa com a roupa suja.

–  O velho era bem porco. Olha essa mesa como tá suja!

–  Ah, homem é assim mesmo, tudo igual. Ainda mais se mora sozinho...

–  Os filhos estiveram aqui mais cedo e pegaram uns documentos, livros, dinheiro...

–  Disseram que é pra dar as roupas e os sapatos pra algum asilo.

–  A mala também?

–  Sei não.

–  Ó, tem uma papelada danada dentro desta caixa. Tá tudo escrito. Que é que vai fazer com isso?

–  Eles falaram que é papel à toa, sem importância, que pode jogar tudo fora.

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