segunda-feira, 4 de julho de 2016

AS FILHAS DE JULIETA (E FRANCISCO) - 04

Tia Aidê nasceu em 24/08/1933. Assim como Tia Dalva, trabalhou muitos anos em um cartório de registro de notas. A diferença entre elas é que Tia Dalva era "escriturária" (não sei se esse é o termo correto), escrevia à mão (não faço a menor ideia do porquê disso), enquanto Tia Aidê era datilógrafa. Muito foda, diga-se. Parecia uma metralhadora, de tão veloz. Um dia perguntei quantos toques ela dava por minuto e me contou ter feito um concurso para secretária da Assembleia Legislativa de Minas. Segundo ela, seu resultado foi 350(!) toques certos por minuto. Foi aprovada, mas não conseguiu a vaga, pois o concurso havia sido feito só para legitimar quem já estava lá dentro. Coisas do Brasil.

Por ter permanecido solteira, foi a única tia com quem convivi diariamente até me casar. Talvez por isso, sempre diz que gosta demais de mim. Esse sentimento é recíproco, ainda mais agora, que é minha fonte de consulta para casos da época da minha infância. Mas, como ficava fora o dia todo, não tenho quase nenhuma lembrança sua dessa época, a não ser o fato de ser totalmente impaciente com a eventual zona que os outros sobrinhos aprontavam nas tardes de sábado e domingo, quando os filhos de Dona Leta e Seu Chico iam visitá-los. Nesses dias, ela bancava o sargentão e enquadrava a molecada mais saidinha. Pelo que já percebi, esse é um comportamento padrão das tias solteiras.



Na minha adolescência, uma coisa que eu gostava bastante é o fato de ela comprar várias coleções de literatura, todos os livros com capa dura, lombada com letras douradas (na maioria das vezes) e fantásticos autores. Graças a meu isolamento nessa época, li muita coisa boa, clássicos mundiais, mas deixei de ler outro tanto, ou por não ter tempo ou pela estranheza que alguns me causaram. Dickens, por exemplo, comecei a ler, mas a linguagem antiga me fez desistir. 

Como Tia Aidê trabalhava muito, fico sem saber se tinha tempo para ler ou se essas coleções tinham mais uma função decorativa e de status, O que sei é que, pensando em uma possível futura herança, recentemente perguntei a ela sobre esses livros e a resposta foi arrasadora: a maior parte foi jogada fora depois de ser parcialmente devorada por um tipo de cupim que infestou sua casa em Lagoa Santa. No barato, mais de cem livros viraram cocô de inseto. Foda!



Só há pouco tempo fiquei sabendo que a casa de minha avó foi comprada pelos três ou quatro tios solteiros que trabalhavam na época: Tio Cici, Tia Aidê, Tio Nem e Tia Dalva. Segundo Tia Aidê, todo mês, parte do dinheirinho suado dos irmãos era juntado para resgatar cada uma das promissórias relativas ao parcelamento do valor pago pelo imóvel. O bacana dessa história é que o registro da compra foi feito em nome de minha avó. Assim, quando a casa foi vendida, todos os irmãos receberam sua parte nessa herança. Na prática, um presente para os que não ajudaram a comprar, dado pelos que ralaram para pagar.


Um dia, depois de anos trabalhando no cartório, Tia Aidê arranjou um emprego em uma empresa de mineração, lugar onde sua vida melhorou em todos os sentidos. Virou secretária-executiva da diretoria, começou a estudar direito (que logo abandonou), comprou um carro (que logo vendeu), fez curso de estenografia (ou taquigrafia, sei lá), conseguiu comprar um apartamento em BH, o imóvel de Lagoa Santa e encontrou o amor de sua vida, um amor outonal (ou invernal, talvez).

Depois de anos trabalhando com um dos diretores da empresa, bingo! Aconteceu aquele momento mágico, quando se apaixonou por ele e, creio, foi correspondida. Não faço a menor ideia de quando isso aconteceu, nem como. Apenas sei que o "Dr. Fulano" (o nome está omitido, lógico), como ela falava, era ou tinha sido casado. Parece que isso foi uma coisa tranquila, pois ela relacionava-se com o(s) filho(s) do cara.

O engraçado da história é que ela "não entregava a rapadura", mas era visível que havia um romance "no ar". Eu já estava casado quando fiquei sabendo disso. Quem me contou foi minha mãe, que às vezes dizia com ironia (e satisfação) coisas como "a Aidê foi lá, com o 'véio' dela".

Quando peguei pneumonia e fiquei internado no CTI, lá foi Tia Aidê com  "o 'véio' dela" me visitar. Mas não pude conhecê-lo, pois só ficaram do lado de fora, conversando com minha mulher. E o tratamento "Dr. Fulano" continuava a ser usado por minha tia nas conversas  com as irmãs e sobrinhos. Muito legal.

Mais ou menos na mesma época que minha mãe, o "Dr. Fulano" começou também a apresentar os sintomas de Alzheimer. Minha tia ia todos os dias à sua casa, para ficar com ele, caminhar com ele, cuidar dele, seu amor da "terceira idade". E foi assim até ele morrer. Mesmo que nunca tenha me falado explicitamente desse relacionamento, nunca conseguiu esconder o quanto ficou arrasada com essa perda.

Algum tempo depois, perguntou-me se eu queria ganhar uma cadeira que tinha comprado em um leilão da empresa onde trabalhara. Disse-me que era uma cadeira executiva, giratória, toda de madeira, bacanaça e que tinha sido usada pelo "Dr. Fulano".  Disse-me também que gostaria muito que eu ficasse com ela. Aceitei, claro, não sem pensar no simbolismo que ela carregava. 

Talvez ela tenha imaginado que um objeto tão especial, relacionado a uma pessoa tão amada, estaria em boas mãos sendo dada a mim. Talvez, quem sabe, a presença desse móvel em sua casa provocasse lembranças muito dolorosas que pretendeu evitar.

Hoje, Tia Aidê é minha "consultora" para os casos da minha infância e da família de minha mãe. Às vezes eu penso que mesmo não tendo se casado - ou talvez por isso mesmo - teve um relacionamento muito mais intenso e feliz que sua sua irmã mais nova viveu em seu casamento, objeto de um post que encerrará minhas lembranças das filhas de Julieta (e Francisco).

2 comentários:

  1. Bem legal, JB. Depois conte mais sobre o Dr. Fulano.
    "J"

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