sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

TIMELINE

 
Os títulos das postagens que faço muitas vezes são convites subliminares para que algum incauto viajante da internet acesse o blog. Ao se fazer alguma consulta no Google pode acontecer deste blog desconjuntado ser listado nas opções de pesquisa (sei lá como se chama isso!). Pois bem, o texto a seguir é um esforço sério e sincero para descobrir o que alimentou atitudes e decisões que normalmente “ninguém faz” (lembrei-me da lindíssima música “Mil perdões”, do Chico). E o comportamento bizarro é a defesa apaixonada do uso da hidroxicloroquina. E essa pesquisa, esse esforço recebeu o nome de Timeline (poderia ser também "Taimilaine"). Se pescará algum estrangeiro é outra história.
 
Já faz algum tempo que uma obsessão tomou conta de mim. Na verdade, nenhuma das minhas tradicionais, de estimação. A obsessão que tem me importunado é a permanente defesa que nosso presidente faz do uso da hidroxicloroquina (ou só cloroquina), associada ou não a antibióticos e outros medicamentos como tratamento preventivo e curativo contra ou da Covid-19.
 
Essa defesa paranóica, obcecada de medicamentos que a maioria da comunidade médica e de saúde do mundo todo já descartou por ineficazes é realmente surpreendente. E preocupante. Por isso, tentei encontrar na internet uma cronologia da conversão de um medicamento originalmente destinado ao tratamento da malária a remédio milagroso e eficaz contra a mamoninha assassina.
 
Os dados que consegui reunir podem ser contestados ou complementados, mas dão uma visão interessante de uma queda de braço pelo que é certo ou errado que nunca deveria existir. Bora lá.
 
USO CONVENCIONAL OU TRADICIONAL
A hidroxicloroquina foi sintetizada em 1946 e usada na prevenção e tratamento de malária. Também pode ser usada no tratamento de artrite reumatoide, lúpus eritematoso, porfiria cutânea tarda, etc. (tenho um cunhado a quem foi receitado o uso de cloroquina para sua artrite. Pouco tempo depois precisou parar de usar esse remédio, pois estava afetando seu coração).

"Os efeitos adversos mais comuns provocados pelo medicamento são náuseas ligeiras e ocasionalmente cólicas abdominais com diarreia ligeira. Os efeitos adversos mais graves afetam o olho, incluindo retinopatia. A retinopatia grave e irreversível é um dos efeitos adversos mais graves da administração a longo prazo de hidroxicloroquina".

"No tratamento de curta duração da malária aguda, os efeitos adversos incluem cólicas abdominais, diarreia, problemas cardíacos, diminuição do apetite, dores de cabeça, náuseas e vômitos. No tratamento de longa duração do lúpus ou da artrite reumatoide os efeitos adversos incluem sintomas agudos, acrescidos de alterações na pigmentação dos olhos, acne, anemia, descoloração do cabelo, bolhas na boca e nos olhos, problemas no sangue, convulsões, problemas de visão, diminuição dos reflexos, perturbações emocionais, coloração excessiva da pele, perda de audição, urticária, prurido, problemas no fígado ou insuficiência hepática, perda de cabelo, pele escamada, eritema, vertigem, perda de peso e ocasionalmente incontinência urinária. A hidroxicloroquina pode ainda agravar os casos de psoríase e porfiria. As crianças podem ser particularmente suscetíveis a desenvolver efeitos adversos da hidroxicloroquina". Como se pode ver, trata-se de um medicamento bastante inofensivo, quase um "floral de Bach".
 
USO EM TRATAMENTO DA COVID-19

Em 13 de fevereiro de 2020, uma força-tarefa sul-coreana recomendava a hidroxicloroquina e cloroquina no tratamento experimental de COVID-19. Pelo que eu entendi, teria sido essa a primeira sugestão de uso para combater e tratar a doença, mas “um ensaio aleatorizado controlado por investigadores chineses demonstrou não haver efeito positivo da hidroxicloroquina em doses diárias de 400 mg”.

Em março de 2020, ainda bem no início da pandemia, o médico e microbiologista francês Didier Raoult divulgou um estudo sobre o uso de hidroxicloroquina no tratamento de Covid-19 que ganhou atenção mundial. Nesse estudo ele abordava o tratamento de um grupo de 26 pessoas infectadas pelo vírus. O estudo de Raoult medira apenas a carga viral. Não oferecia dados sobre resultados clínicos, nem estava claro se os sintomas reais dos pacientes tinham melhorado, nem mesmo se os pacientes tinham sobrevivido ou morrido. De início, 26 pacientes foram escalados para receber a hidroxicloroquina, seis a mais que os vinte que constavam do resultado final. Os autores escreveram o seguinte sobre esse descompasso: ‘Os seis pacientes adicionais não puderam ser acompanhados em virtude da cessação precoce do tratamento'. As razões apontadas para a interrupção do tratamento eram preocupantes. Um paciente parara de tomar a droga depois de começar a sentir náuseas. Três outros tinham sido transferidos para uma UTI fora do instituto. Outro morrera. E o paciente restante decidira deixar o hospital antes do final do tratamento.

Em 19 de março de 2020 o então presidente dos Estados Unidos deu uma entrevista coletiva onde mencionou o estudo do médico francês, que “alcançou fama internacional quando Donald Trump alçou sua proposta de tratamento para a Covid-19 à categoria de ‘cura milagrosa’”. Nada mais saboroso para um pesquisador conceituado, polêmico e com ego do tamanho do sistema solar, concorda? Creio que foi aí que a “caixa de Pandora” do tratamento foi aberta.

No dia 21 de março, dois dias depois da coletiva do Donald Trump e usando as redes sociais, nosso presidente começou a defender publicamente a cloroquina – uma versão mais tóxica do que a hidroxicloroquina.

“No Brasil, os primeiros relatos de falta de cloroquina nas farmácias apareceram entre os dias 19 e 20 de março, provavelmente como efeito da coletiva do presidente Donald Trump, na qual elogiou o medicamento. No dia 21, quando defendeu a cloroquina publicamente, o presidente Jair Bolsonaro também deu ordens para que o Exército ampliasse a fabricação do remédio”.

A partir daí houve a troca de dois ministros da saúde com formação em medicina por um general da ativa, etc. "No dia 20 de maio, o ministro interino general Eduardo Pazuello, que não tem formação médica, divulgou um protocolo liberando o uso de cloroquina e hidroxicloroquina para todos os pacientes de Covid-19".

“No dia 22 de maio, a revista médica The Lancet publicou o resultado de um amplo estudo com 96 mil pacientes de Covid-19. O estudo concluiu que o uso de cloroquina e hidroxicloroquina contra a doença é ineficaz e até perigoso, podendo provocar arritmia cardíaca e aumentar o risco de vida. Três dias depois, em 25 de maio, a Organização Mundial da Saúde suspendeu o uso de hidroxicloroquina nas pesquisas que ela própria vinha coordenando com centenas de cientistas. No dia 27 de maio, diante das evidências científicas reunidas até agora, a França decidiu proibir o uso da hidroxicloroquina no combate à Covid-19 em todo o seu território”.

Apesar de todas essas evidências, nosso presidente continuou a defender a utilização desse medicamento. Recentemente, o médico Didier Raoult, autor do estudo sobre o uso de hidroxicloroquina no tratamento de Covid-19 que tanto impressionou os presidentes do Brasil e dos EUA reconheceu erros em sua pesquisa em uma carta publicada em periódico científico. Em 04 de janeiro de 2021, em carta também assinada por toda a sua equipe e publicada no International Journal of Antimicrobial Agents, o pesquisador francês fez uma tardia “mea culpa”, ao dizer que:

"Nós concordamos com os colegas que excluir seis pacientes da nossa análise pode ter enviesado os resultados”. “Os pesquisadores disseram ter feito uma nova análise dos dados incluindo um paciente que morreu e outros que foram internados em unidade de tratamento intensivo ou que precisaram parar o tratamento por efeitos colaterais — que haviam sido excluídos da análise inicial”.
"Não houve diferença significativa na necessidade de terapia de oxigênio, transferência para UTI e mortes entre os pacientes que usaram hidroxicloroquina (HCQ) com ou sem azitromicina (AZ) e nos controles, que receberam apenas o tratamento padrão", continua a nota. Em outras palavras, com os dados que haviam sido excluídos inicialmente, o estudo demonstrou que a hidroxicloroquina não reduziu a mortalidade de pacientes de Covid-19.

Em dezembro de 2020 o Conselho Nacional da Ordem dos Médicos da França abriu um processo de investigação contra Raoult e outros seis membros da equipe que realizou os estudos. As acusações incluem desinformação pública, violações éticas e charlatanismo.
 
Que poderia dizer para encerrar esta colcha de retalhos? Graças talvez à sua veneração pelo "cabelo de milho" americano, nosso presidente optou por ressuscitar uma frase da época dos governos militares, dita por Juraci Magalhães quando era embaixador do Brasil nos Estados Unidos: "O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil".

Se essa é a explicação correta eu não sei, mas sei que desconsiderar as restrições ao uso de cloroquina para tratamento da Covid (por ineficaz e inócua) apontadas por cientistas e autoridades de saúde ao redor do mundo só demonstrou que em Brasília até as emas aparentam ter mais bom senso que as antas.

Também posso teminar com música, poesia. Como cantou o João Gilberto,
 
"Já percebi a confusão
Você quer ver prevalecer
A opinião sobre a razão
Não pode ser, não pode ser".

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