sábado, 13 de junho de 2020

GILBERTO DIMENSTEIN, VOCÊ ERA O CARA!


O jornalista Gilberto Dimenstein escreveu este texto em dezembro de 2019. quando descobriu estar com câncer de pâncreas, com metástase no fígado. Morreu em 29 de maio de 2020. Vale a pena ser lido!

Sonhei com uma mulher dizendo que eu estava com câncer. Sou super-racional, acredito na ciência, na lógica. Mas foi um sonho tão claro que fiquei encasquetado.

Fui aos médicos, fiz colonoscopia, endoscopia, ultrassonografia, não achavam nada, mas eu continuava impressionado. Um gastroenterologista pediu uma tomografia, "só para tirar a dúvida".
Fui às 22h, o resultado começou a demorar. Veio um enfermeiro e perguntou se não sentia muita dor, porque tinha pancreatite, mas eu não sentia nada. Não sentia nada. Procurei na internet: pancreatite dá em quem bebe —sou abstêmio há seis anos— e em quem tem vesícula —que eu já tinha tirado. Era câncer.
No dia seguinte, já estava no hospital. Tirei o tumor bem no comecinho, o que aparentemente era boa notícia.
Mas, passadas três semanas, ele estava no fígado. Fizemos quimioterapia para operar, mas, em vez de parar, o tumor cresceu. Passei quatro meses de tantas más notícias... muita febre todo dia, comecei a já me preparar para a despedida. Foi o meu período pessimista.
Hoje —é até difícil falar ​isso— estou vivendo o momento mais feliz da minha vida. Aquele Gilberto Dimenstein antes do câncer morreu. Nasceu outro.
Câncer é algo que não desejo para ninguém, mas desejo para todos a profundidade que você ganha ao se deparar com o limite da vida. Não queria ter ido embora sem essa experiência.
Grande parte da minha vida foi marcada pelo culto a bobagens: ganhar prêmio, assinar matéria na capa, o tempo todo pensando no próximo furo. É como se estivesse passando por um lugar lindo num trem em alta velocidade, vendo tudo borrado.
Quando você tem um câncer (ainda mais como o meu, de metástase e de pâncreas, um tipo muito agressivo), não há alternativa. Ou vive o presente ou sua vida vira um inferno.
E aí começam a aparecer coisas incríveis. Gosto de andar de bicicleta, e comecei a sentir o vento no rosto, como se estivesse sendo beijado. Você vê seu neto deitado com você (Dimenstein tem um neto de dois anos e espera o segundo para daqui a seis meses). Acorda com os bem-te-vis e escuta os bem-te-vis.
Falar em sentidos é importante, porque meu tratamento tira o gosto, até a água fica ruim. Com o tratamento, também acaba a vida sexual; você fica impotente.
É uma fase de muitos pesadelos, que melhoram com o canabidiol (composto químico derivado da maconha, liberado para uso medicinal).
Tudo isso poderia fazer um cara superinfeliz. Mas as relações emocionais se sofisticam. Descobri só agora a profundidade da relação homem-mulher. Você está com enjoos, dores não apenas físicas, e a pessoa do seu lado o tempo todo. Não conhecia essa cumplicidade nesse nível.
Nós vivemos nos meios digitais a era da indelicadeza, 500 mil pessoas criticando. Eu acabei entrando no mundo das gentilezas. Cada pessoa tem uma palavra, um chá, uma dica de oração, um olhar gentil. O outro mundo vai ficando ridículo.
Com ou sem câncer vamos todos morrer, e se pudermos antecipar essa sensação, vamos evitar várias bobagens. A clareza maior da morte é uma dádiva. Não é o fim, mas um começo.
Pode ser o começo de um belo fim de vida, viver esses momentos com a família, ou um pit stop para voltar melhor. O cara tem que ser muito, muito, muito idiota para não voltar melhor.
Não é que eu ache que morrer é bom, mas você começa a questionar por que existe, e a conclusão é que, se não podemos escolher como entramos na vida, podemos decidir como sair dela.
Quando o médico me disse que eu estava com câncer, passou um dia, dois, três, e não tive medo. Só temia o impacto da minha morte nos outros. Não me senti desesperado. Nada, nada, nada. Até me espantei comigo mesmo.
Em inglês se chama "surrender" (render-se). Você não está mais no comando, e isso é motivo de alívio. De felicidade, até.
Descobri que meu pavor era passar a vida sem propósito. Olhei para trás, e, apesar de todas as minhas delinquências —que não foram poucas—, acho que fiz mais bem que mal. Mudei minha carreira para fazer um jornalismo que não é de filantropia nem altruísmo, mas de empoderamento, de usar a comunicação para promover causas.
Não inventei nada, o comunicador não faz o vinho. Mas tira a rolha.
Acabei sendo obrigado a deixar de ser aquele jornalista racional, imparcial. Deixei de ser um espectador e passei a ser torcedor. Você vira um eunuco como jornalista, porque passa a querer dar só boa notícia.
Já antes do câncer tinha começado minha "quimioterapia social", na Orquestra Sinfônica de Heliópolis (de cujo conselho Dimenstein era presidente), que esteve perto de fechar. Em nenhum momento neste ano parei de trabalhar, arrecadar fundos, promover esse e outros projetos que acompanho. Não é bondade, é conexão com a vida.
O evangelho segundo são João diz "No princípio era o verbo". É a palavra que gera o poder, e nós, comunicadores, trabalhamos com isso, podemos fazer as pessoas poderosas trabalharem juntas.
Hoje há um enorme desperdício. Há um ditado árabe maravilhoso, "gavião não voa em bando", ainda mais perfeito em inglês, "eagles don't fly together" —eagles tem o mesmo som de egos. Cada um quer ter seu legado, sua placa, seu projeto. Um secretário não trabalha com outro, a prefeitura não trabalha com o estado, um dinheiro enorme sai pelo ralo, sem meta, sem avaliação, sem trabalho articulado, uma catástrofe.
O mundo é como um corpo humano. Há pessoas que espalham infecções, se xingam, se odeiam. (O presidente dos EUA, Donald) Trump e (o presidente brasileiro, Jair) Bolsonaro não criaram isso, mas sintetizam essa cultura da infecção, do ódio, do confronto. E há os glóbulos brancos, as pessoas que não deixam o mundo acabar, que inventaram a anestesia, o antibiótico, descobriram a hélice dupla do DNA.
Meu tumor passou por análise genética – recebi o resultado ontem (sexta, 27) –, e sou um caso de 1% cuja mutação talvez tenha um tratamento promissor. Em ratos, eliminaram o câncer de pâncreas, e estão começando a testar em humanos, procurando a dose certa. Já me dispus a fazer parte dos testes no Brasil.
É até meio canalha, mas penso "será que eu vou ajudar a encontrar a cura?". Para um jornalista que gosta de furos, você se transformar num furo de si mesmo é incrível, né? Mas para ajudar os outros.
Voltei a ficar otimista. Ganhei da minha mulher dois ingressos para ver o (músico) Bobby McFerrin nos EUA, em maio. Já estou com planos para o ano que vem. Você volta a ter projetos, é a vida voltando a circular. Eu acho que tenho muita chance, muita chance.
Vida após a morte? Se for igual a esta, prefiro que não exista. Se eu acordasse e estivessem lá Trump, Bolsonaro, (primeiro-ministro da Hungria, Viktor) Orbán, não sei se queria, não (risos).

6 comentários:

  1. Rapaz, se não quiser nem precisa publicar este comentário. É o seguinte, faz tempo que eu tava tentando aprender um truque para adicionar na barra lateral do Marreta, tentando aprender como associar um link a uma imagem, de forma a sermos direcionados a uma certa página da web ao clicarmos na imagem.
    E agora eu consegui. Pus uma imagem teste lá no Marreta. Quero saber se você a aprova. Entre lá no Marreta e vá descendo pela barra lateral, a imagem estará logo abaixo das duas gostosas do Calendário do Mês. Dê uma clicada nela e veja o que acontece.

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    1. Isso está com cheiro de pegadinha, mas ficou muito legal. Eu mal, mal consigo inserir um blog no "blogroll"! E morro de inveja de quem sabe "aprontar" no blog! Vocês todos têm uma "expertise" que eu não tenho (e que nunca terei). Aquela imagem, por exemplo, como consegue que ela fique tão nítida e legível, apesar de pequena? Tudo isso é um mistério para mim.

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    2. Expertise tem o Ozy. Eu apanhei durante meses - ainda que não ininterruptos - para achar um site que conseguisse explicar com clareza (para quem não sabe nada do assunto)como associar um link a uma imagem.
      Já a nitidez e o pequeno tamanho, a coisa é mais fácil. A gente trabalha com a imagem em tamanho bem grande e, depois de pronta, é só reduzir o resultado final. Fica até melhor depois de reduzida, pois a imperfeições mais grosseiras desaparecem. É assim que se faz, ou que se fazia, pelo menos, na era pré-computador, com os quadrinhos. Eu, quando moleque, ficava imaginando a habilidade do letrista, por exemplo, para conseguir escrever os textos dentro dos balões de fala dos personagens e elas saírem tão perfeitas. O "segredo" era justamente esse : cada página do gibi era feita primeiro em uuma grande prancha e, depois de finalizada e tudo, reduzida ao tamanho da edição impressa.

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    3. Interessante você dizer isso. Em BH existiu uma livraria especializada em quadrinhos (Shazan era o nome). Era mais uma gibiteca, talvez. Fui lá uma única vez no início da década de 1970 e conversei com o proprietário. A história era interessantíssima. Era professor de Comunicação ou algo do gênero e começou a comprar as primeiras HQ publicadas no Brasil para subsidiar suas aulas, mas a coisa foi tomando uma dimensão gigantesca. No momento de nossa conversa, possuía TODAS as revistas lançadas no país até aquela data. A coleção ocupava todos os três quartos de um apartamento, alugado só para essa finalidade. Na loja ele vendia os exemplares deixados em consignação ou os menos conservados que continuava a comprar. Além de revistas HQ vendia revistas antigas sobre futebol , vendia também originais de algumas histórias em que conseguia por a mão. Lembro-me de um “quadrinho” do Príncipe Valente, uma única imagem feita talvez em tamanho A3. E lembrei-me de ter lido que esse era o método de trabalho do autor (Hal Foster). Desenhava pranchas e mais pranchas, quadro por quadro, que depois eram reduzidos e agrupados, um trabalho do cacete. Se nunca leu, poderia recomendar, mas li com olhos de vinte anos. O curioso é que o autor ia envelhecendo os personagens, no “traço” de 1 para 2, ou seja, a cada dois anos o personagem envelhecia um (era um sujeito que planejava o futuro de sua criação).

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    4. O nome Príncipe Valente me é familiar. Já vi alguns desenhos e assisti a um filme dele estrelado pelo Robert Wagner (aquele do Casal 20, falando em programções bagaceiras)na sessão da tarde, quando não só filme era em preto e branco, mas também a tv que tinha lá em casa.

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  2. ""gavião não voa em bando"" adorei a frase, já copiei
    partiu com 63, que azar
    texto inspirador

    abs!

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