quarta-feira, 24 de junho de 2020

TENTANDO RESPONDER A UM AMIGO


A década de 1970 foi a época em que a televisão entrou definitivamente na minha vida, pois quando solteiro não tinha o hábito de ficar sentado em frente à telinha. Depois de casado, com aparelho bom, às vezes eu me sentia atraído pelo que estava passando. Dois programas da Globo sempre chamavam minha atenção: “Concertos para a juventude” e “Telecurso do primeiro (ou segundo) grau”. Curioso é pensar que hoje os bolsominions chamam essa emissora de “Globolixo”, mas nada falam das baixarias ou sessões de descarrego, exorcismo ou coisa parecida exibidos pelas concorrentes que apoiam seu ídolo. Mas o foco deste post é outro. Por isso, vamos voltar aos dois programas mencionados.

“Concertos para a juventude” era exibido na parte da manhã de sábado ou domingo, não me lembro mais. Foi em um desses que ouvi Rhapsody in Blue, regida e interpretada pelo maestro Leonard Bernstein. Fiquei tão mesmerizado que esqueci o que iria fazer, sentei-me em algum lugar e fiquei ali babando.

O programa Telecurso era super bem feito, com aulas extremamente didáticas de física e outras matérias. Um dia ouvi a leitura de um poema diferente, estranho, enquanto belíssimas imagens de rios, de água eram exibidas. O poema era “O rio da minha aldeia” de Alberto Caieiro, um dos heterônimos de Fernando Pessoa. E é nele que eu queria chegar. Naquela época, estava pouco me lixando para saber quem era Caieiro ou, Fernando Pessoa. O que me encantou foi a associação das imagens de “margens plácidas” com este texto:

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia,

O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.

O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.

Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

Ao fim da leitura, alguém analisou e comentou os versos deste poema, mas dentre o que foi dito o que mais chamou minha atenção foi a reflexão de que ao falar do rio de sua aldeia, Fernando Pessoa conseguira tornar-se universal. Melhor dizendo, o poema "O rio da minha aldeia", por falar de sua experiência pessoal, conseguira expressar sentimentos que podem ser entendidos por pessoas de qualquer lugar. Em outras palavras, quando você fala de sua própria casa você se torna universal, pois consegue sensibilizar outras pessoas ao dizer do que elas entendem e também vivenciam.

Demorei para chegar neste ponto, mas precisava preparar o cenário para dizer o que penso a respeito do que meus amigos virtuais escrevem ou são capazes de escrever. A criatividade delirante, um vocabulário rebuscado ou um raciocínio brilhante não são mais atrativos (para mim, pelo menos) que um texto sinceramente confessional, por mais banal que seja o momento, o lugar ou o acontecimento que o motivou.

Autores reverenciados por seus leitores (uns mais, outros menos) inspiraram-se ou transcreveram literalmente algum momento de sua vida e criaram obras de imenso sucesso de público. “Feliz ano velho” e “O encontro marcado” são exemplos de que me lembro imediatamente. Sem falar dos sete volumes de memória escritos por Pedro Nava. Mas não ficaram só nisso, no registro de nomes e datas que só a eles interessaria, foram além, ao refletir e comentar sobre aqueles acontecimentos.

Conheci um senhor que depois de uma vida riquíssima em experiências e lembranças pediu a uma das filhas para escrever sua "história". Tudo o que ele acreditou valer a pena registrar ficou limitado a duas ou três folhas A4. Mesmo sendo pai de oito ou dez filhos não se preocupou em falar nada sobre o que sentiu em relação a isso. Mencionou ter participado de "comitivas" a cavalo para transporte de gado de uma cidade a outra, mas só para dizer que fez isso com seu avô. Pelo que entendi, sua maior conquista foi ter sido nomeado juiz de paz na velhice. Nenhuma emoção, nenhuma reflexão, nenhum ensinamento, nada disso foi registrado naquelas duas ou três páginas. O velho poderia ter ditado um livro falando de suas experiências, frustrações, sonhos, mas não pensou que sua riquíssima e longa vida tinha muito mais interesse que as datas que fez questão de registrar. Mandou encadernar e me entregar, sinal de seu apreço por mim. Depois de ler aquela coisa desidratada, não tive dúvida: joguei no lixo.

Hoje eu tenho 70 anos e custei muito a começar a escrever (principalmente sobre mim), pois, além da falta de tempo, estava mergulhado numa névoa de incertezas, ignorância e imaturidade. Mas descobri que o que eu faço melhor é contar casos pessoais ou de pessoas que conheci. Mas não me preocupo em escrever biografias certinhas, prefiro tentar tirar a essência dos casos que conto, algum humor, ironia ou reflexão sobre o que vai saindo sem censura. É isso que dá alguma densidade aos textos e é isso que me conecta com outras pessoas.

Por isso, mesmo que a quase totalidade das pessoas leve uma vida medíocre em seu anonimato, o que pode diferenciá-las é sua capacidade de extrair o universal de seu cotidiano, quando escrevem sobre suas angústias, sonhos, medos, desejos e inquietações. Ou seja, quando escrevem não sobre o que viram e viveram, mas sobre o que sentiram e pensaram sobre isso.  Certo, Ozy?


2 comentários:

  1. "mesmo que a quase totalidade das pessoas leve uma vida medíocre em seu anonimato, o que pode diferenciá-las é sua capacidade de extrair o universal de seu cotidiano, quando escrevem sobre suas angústias, sonhos, medos, desejos e inquietações."

    ótima frase

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    Respostas
    1. Bacana que tenha gostado, mas a essência da frase é análise de algum professor de literatura da década de 1970.

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