Ontem, eu, minha mulher e duas de suas irmãs fomos
visitar sua prima mais velha, senhora na faixa dos oitenta anos, que está com
Alzheimer e fica hoje apenas na cama. Quando chegamos e perguntada por sua
filha quem éramos nós, lembrou-se do nome das primas e até do meu. Pode parecer
pouco, trivial, mas não é. Só quem passa pelo dissabor de ter um parente com algum
tipo de demência sabe a barra que isso é.
Eu poderia dizer que sou quase diplomado
nesse assunto, pois, na adolescência, durante seis anos, convivi diariamente
com o processo de erosão mental de minha avó materna. Mais tarde, já casado,
foi a vez de tentar manter um contato carinhoso com minha mãe, ainda que de
forma esporádica.
Por isso, a visita à prima de minha mulher
serviu para que eu revivesse pensamentos antigos sobre o impacto na memória
provocado pelo envelhecimento e, em último caso, pela demência. Até por já ter
escrito aqui no blog sobre isso, não quero falar sobre a demência de minha avó
e minha mãe. Por isso, “para variar” (e até por ter algum conhecimento acumulado sobre o “assunto”), pensei em falar de mim mesmo
e sobre o que suspeito já estar acontecendo comigo.
Alguma leitora ou leitor mais impaciente
poderá até pensar ou dizer algo assim:
- “Porra,
que cara chato! Parece só saber ou querer falar sobre ele!”
E eu darei total razão a esse puxão de
orelha. O problema é que a falta de assunto mais interessante está aliada ao
que disse sobre o conhecimento acumulado que
tenho sobre o “assunto” (o "assunto" sou eu).
E se alguém, ainda assim,
continuar reclamando, sugiro que acesse o blog hardcore A Marreta do Azarão, muito mais interessante, variado e divertido.
Ou direi educadamente “Foda-se!”
Tenho percebido – e ficado
cada vez mais preocupado e puto com isso – que minha memória de fatos recentes
está quase inexistente. Recontando uma gracinha
que fiz há muito tempo, minha memória "rã" (ou ram)
foi pro brejo, com todas as consequências possíveis. Esqueço onde coloquei
algum objeto pequeno, esqueço palavras e o que queria dizer, já esqueci o
cartão de banco na padaria, já deixei a chave da porta de entrada do lado de
fora da casa, já deixei a chave do carro e o controle do portão eletrônico
sobre o capô, na garagem, e por aí vai.
Se o muro de minha casa
fosse mais baixo eu provavelmente já teria feito a alegria de algum ladrão, porque estou
dando mais mole para vagabundo que piranha para cantor sertanejo. Entendeu agora, leitor rabugento, por que eu quero falar de mim?
É barra pensar que a
brincadeira que meus filhos fazem ao me ameaçar com interdição pode não estar
tão distante assim e deixar de ser piada. Porque não falta muito para que eu desapareça. Mesmo que continue
respirando. Como disse o ator Terry Gilliam de seu colega Terry Jones (ambos do grupo Monty Python), que morreu com Alzheimer:
- “acho que ele se cansou de ficar aqui e
foi-se embora, deixando o corpo para trás.”
Já me disseram que não é assim que o cérebro
funciona, mas a melhor imagem que consegui criar para explicar a lembrança
vívida de fatos antigos e o esquecimento de situações que acabaram de acontecer
é a de uma cebola, da estrutura de uma Allium cepa. Calma, “eu sou
normal!”, como dizia um personagem de antigo programa humorístico.
Minha avó levantava-se para dançar quadrilha
quando eu tocava e cantava “Your mother
should know”. Provavelmente a melodia ou sua batida ritmada lembravam as
festas e bailes de sua juventude. Minha mãe sempre colheu "na porteira da
fazenda do Zaelho" (seu primo) qualquer flor comprada por minha irmã para
enfeitar a sala de sua casa.
Ou seja, as lembranças mais antigas parecem
ficar envolvidas, protegidas pelas mais recentes, num arranjo que (para mim!)
lembra as várias camadas, os vários anéis de uma cebola.
E creio – ou tenho medo – que isso possa
estar acontecendo comigo. Em outras palavras, minha batata pode até não estar
assando, mas minha cebola parece estar querendo descascar (gostei desta
idiotice!).
O motivo de estar dizendo isso é a perda de
vocabulário que imagino estar me atingindo. Tenho achado meus textos tão merda que
a culpa disso pode estar em grande parte relacionada à “cebola das palavras”. Não ria! (Ok, pode rir, mas só um pouquinho).
Minha suspeita é que as palavras aprendidas e descobertas através de leituras mais recentes, palavras mais cultas ou refinadas mas de
utilização pouco frequente estão sendo “descascadas” e deixadas de lado, pois
não se fixaram adequadamente, não conseguiram se posicionar no interior da
cebola (essa cebola está mesmo bem idiota!).
Com isso, meus pensamentos e frases estão
perdendo o pequeno brilho que porventura tenham tido, pois a maioria do vocabulário que está sendo utilizado foi obtida
– até, no máximo – o fim da minha adolescência, época em que eu lia pra caramba. E
não há linguagem coloquial que disfarce a pobreza, ou indigência vocabular. Porque
é preciso – e isso vale para qualquer pessoa! – que se tenha intimidade com as palavras e expressões que se pretende
utilizar. Como ainda não tenho certeza de que isso possa também estar
acontecendo comigo (a perda de vocabulário), fico meio cabreiro. Meio, não, muito!
Para mim, uma das coisas mais constrangedoras é encontrar
no texto de algum conhecido, aparentemente refinado, culto e com fama de bom
escritor a troca de um s por z (por exemplo), denunciando a pouca
intimidade do autor com a palavra que usou para tentar impressionar. E nem falei das frequentes agressões à gramática! Tenho um “amigo
de facebook” exatamente assim. Por ter “thousands”
de amigos nessa rede, é incensado por um bando de gente, mas vive pisando no
tomate.
Mas não comecei a escrever este texto para
malhar ninguém (ainda está ai, leitor impaciente?). Meu objetivo é o registro
dos meus medos, dos meus receios, pois ninguém nunca me ensinou o que significa
ser idoso, tive de aprender sozinho (lembra quando eu falei que me sinto uma
espécie de coach de envelhecimento? Pois é...). Uma coisa é certa: o ardor dessa cebola das palavras ainda não me fez
chorar pra valer, mas tem hora que dá vontade. Basta, por exemplo, reler o que acabei de
escrever.