segunda-feira, 23 de maio de 2022

EMBARAÇADO NO CORDEL



 
 Nunca pude sair de mim mesmo. Só posso escrever o que sou. E, se as personagens se comportam de modos diferentes, é porque não sou um só. (Graciliano Ramos)
 
Mesmo sem querer, fala em verso quem fala a partir da emoção. (João Cabral de Melo Neto)
 
 
Ao chegar à estação
Não sabia o que fazer
Nem para onde eu iria
Nada podia antever
 
E assim começou a viagem
Era um menino preso
Não tinha nenhum traquejo
Estava sempre em desvantagem
 
Só sei que era magrinho
Um menino bem franzino
Que nem sonhava o destino
Que um dia iria ter
 
Depois que aprendi a ler
Não dava importância a mais nada
De curiosidade ou por tédio
Lia tudo o encontrava
Revistinhas, alfarrábios
E até bulas de remédio.
 
Com essas leituras, absorto
Nunca pensei procurar
Entender por onde iria.
Estrada reta, caminho torto
Ou quem seria meu guia
 
Quis talvez o acaso
Que tivesse estampada no rosto
Enorme e peluda pinta
Aposta de Deus com o capeta?
Só sei que era bem feia,
Escura, preta, retinta
 
E durante algum tempo
Trouxe apenas desgosto
Pois dinheiro nunca sobrou
Para marcar a cirurgia
E acabar com o sofrimento
 
O tempo passou e eu cresci
Mas só no tamanho e idade
Pois nunca estava disposto
A encarar a realidade
 
Vivia sempre sonhando
Sonhando sempre acordado
E juízo me faltava para cuidar
E manter-me atento
A quem estava ao meu lado
 
E no sonho que eu vivia
Às vezes me parecia
Que no lugar onde eu estava
Não havia mais ninguém
Pra me fazer companhia
 
Era um lugar esquisito
Era estranha lotação
Parecia um terminal
De bonde, metrô ou até
De um trem azul, o vagão
 
E eu sentado sozinho
Sem querer ver, sem notar
A paisagem da janela
Que passava velozmente
Velozmente, sem parar
 
Estranha, enevoada imagem
Mas eu nem a percebia
Para mim só interessava
O que o vidro refletia.
 
Foi assim que eu pretendi
Contar a vida que vivi
Uma vida descuidada
Vida tão desperdiçada
 
Pois sem sequer saber
Onde e quando ia descer
Comecei a perceber
Que o trem estava parado
 
E a paisagem distante
Que eu via passar sem dar tento
Não era nenhuma paisagem
Era meu perdido tempo.


A imagem utilizada foi retirada de um blog de receitas desenhadas, o excelente Mixidão (https://mixidao.com.br/)

 

 

 

 

 

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

IL Y A BEAUCOUP D'ON-DIT, VOLTAIRE!

O ótimo é inimigo do bom. Que devo concluir ao cabo dos meus longos propósitos? Que os preconceitos são a razão dos imbecis.  Toda espéc...