Aqueles que leem o blog há mais tempo, o
“pessoal das antigas” (embora a maioria não tenha nem a idade de meu filho mais
velho), sabe que um dos melhores alimentos para minha alma é o lirismo. Todas
as vezes em que leio um poema ou crônica cuja qualidade principal seja o
lirismo nele impregnado, esqueço-me ainda que momentaneamente da brutalidade
dos dias atuais. Em lugar do cheiro asfixiante do gás lacrimogênio jogado na
parte traseira de uma viatura policial, sinto-me como se estivesse envolvido
por um perfume suave, muito agradável e delicado.
Basta chegar a sexta-feira para que aqueles que trabalham sonhem com as possibilidades de diversão que surgem: cerveja com os amigos, uma balada esperta, show com aquele músico que acabou de lançar novo disco, futebol, motel, museu, caminhar de mãos dadas com o/a namorado/namorada, fazer rapel e sei lá mais o quê.
A mim me resta o eventual encontro com as netas, fazer compras no supermercado, assistir na TV ao programa do Mion ou do Huck, ouvir música no youtube ou ler. E não há melhor leitura que os textos produzidos pelos escritores que admiro, mesmo que já os tenha lido mais de uma vez. Hoje resolvi hoje reler Rubem Braga, um dos meus ídolos máximos. E foi dele que peguei a crônica transcrita a seguir. Como eu gostaria de escrever com a metade de sua qualidade literária e lirismo! Espero que gostem. Olhaí.
Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a porta do apartamento - mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo instante me lembro de ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a "greve do pão dormido". De resto não é bem uma greve, é um lock-out, greve dos patrões, que suspenderam o trabalho noturno; acham que obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão dormido conseguirão não sei bem o que do governo.
Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. E enquanto tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os moradores, avisava gritando:
- Não é ninguém, é o padeiro!
Interroguei-o uma vez: como tivera a idéia de gritar aquilo?
Então você não é ninguém?"
Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: "não é ninguém, não senhora, é o padeiro". Assim ficara sabendo que não era ninguém...
Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina - e muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina, como pão saído do forno.
Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de cada lar; e dentro do meu coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre; "não é ninguém, é o padeiro!"
E assobiava pelas escadas.
Maio, 1956
Basta chegar a sexta-feira para que aqueles que trabalham sonhem com as possibilidades de diversão que surgem: cerveja com os amigos, uma balada esperta, show com aquele músico que acabou de lançar novo disco, futebol, motel, museu, caminhar de mãos dadas com o/a namorado/namorada, fazer rapel e sei lá mais o quê.
A mim me resta o eventual encontro com as netas, fazer compras no supermercado, assistir na TV ao programa do Mion ou do Huck, ouvir música no youtube ou ler. E não há melhor leitura que os textos produzidos pelos escritores que admiro, mesmo que já os tenha lido mais de uma vez. Hoje resolvi hoje reler Rubem Braga, um dos meus ídolos máximos. E foi dele que peguei a crônica transcrita a seguir. Como eu gostaria de escrever com a metade de sua qualidade literária e lirismo! Espero que gostem. Olhaí.
Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a porta do apartamento - mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo instante me lembro de ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a "greve do pão dormido". De resto não é bem uma greve, é um lock-out, greve dos patrões, que suspenderam o trabalho noturno; acham que obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão dormido conseguirão não sei bem o que do governo.
Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. E enquanto tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os moradores, avisava gritando:
- Não é ninguém, é o padeiro!
Interroguei-o uma vez: como tivera a idéia de gritar aquilo?
Então você não é ninguém?"
Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: "não é ninguém, não senhora, é o padeiro". Assim ficara sabendo que não era ninguém...
Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina - e muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina, como pão saído do forno.
Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de cada lar; e dentro do meu coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre; "não é ninguém, é o padeiro!"
E assobiava pelas escadas.
Maio, 1956
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