sexta-feira, 20 de maio de 2022

CEBOLA DAS PALAVRAS


Ontem, eu, minha mulher e duas de suas irmãs fomos visitar sua prima mais velha, senhora na faixa dos oitenta anos, que está com Alzheimer e fica hoje apenas na cama. Quando chegamos e perguntada por sua filha quem éramos nós, lembrou-se do nome das primas e até do meu. Pode parecer pouco, trivial, mas não é. Só quem passa pelo dissabor de ter um parente com algum tipo de demência sabe a barra que isso é.
 
Eu poderia dizer que sou quase diplomado nesse assunto, pois, na adolescência, durante seis anos, convivi diariamente com o processo de erosão mental de minha avó materna. Mais tarde, já casado, foi a vez de tentar manter um contato carinhoso com minha mãe, ainda que de forma esporádica.
 
Por isso, a visita à prima de minha mulher serviu para que eu revivesse pensamentos antigos sobre o impacto na memória provocado pelo envelhecimento e, em último caso, pela demência. Até por já ter escrito aqui no blog sobre isso, não quero falar sobre a demência de minha avó e minha mãe. Por isso, “para variar” (e até por ter algum conhecimento acumulado sobre o “assunto”), pensei em falar de mim mesmo e sobre o que suspeito já estar acontecendo comigo.
 
Alguma leitora ou leitor mais impaciente poderá até pensar ou dizer algo assim: 
- “Porra, que cara chato! Parece só saber ou querer falar sobre ele!”
E eu darei total razão a esse puxão de orelha. O problema é que a falta de assunto mais interessante está aliada ao que disse sobre o conhecimento acumulado que tenho sobre o “assunto” (o "assunto" sou eu).
 
E se alguém, ainda assim, continuar reclamando, sugiro que acesse o blog hardcore A Marreta do Azarão, muito mais interessante, variado e divertido. Ou direi educadamente “Foda-se!”
 
Tenho percebido – e ficado cada vez mais preocupado e puto com isso – que minha memória de fatos recentes está quase inexistente. Recontando uma gracinha que fiz há muito tempo, minha memória "rã" (ou ram) foi pro brejo, com todas as consequências possíveis. Esqueço onde coloquei algum objeto pequeno, esqueço palavras e o que queria dizer, já esqueci o cartão de banco na padaria, já deixei a chave da porta de entrada do lado de fora da casa, já deixei a chave do carro e o controle do portão eletrônico sobre o capô, na garagem, e por aí vai.
 
Se o muro de minha casa fosse mais baixo eu provavelmente já teria feito a alegria de algum ladrão, porque estou dando mais mole para vagabundo que piranha para cantor sertanejo. Entendeu agora, leitor rabugento, por que eu quero falar de mim?
 
É barra pensar que a brincadeira que meus filhos fazem ao me ameaçar com interdição pode não estar tão distante assim e deixar de ser piada. Porque não falta muito para que eu desapareça. Mesmo que continue respirando. Como disse o ator Terry Gilliam de seu colega Terry Jones (ambos do grupo Monty Python), que morreu com Alzheimer: - “acho que ele se cansou de ficar aqui e foi-se embora, deixando o corpo para trás.”
 
Já me disseram que não é assim que o cérebro funciona, mas a melhor imagem que consegui criar para explicar a lembrança vívida de fatos antigos e o esquecimento de situações que acabaram de acontecer é a de uma cebola, da estrutura de uma Allium cepa. Calma, “eu sou normal!”, como dizia um personagem de antigo programa humorístico.
 
Minha avó levantava-se para dançar quadrilha quando eu tocava e cantava “Your mother should know”. Provavelmente a melodia ou sua batida ritmada lembravam as festas e bailes de sua juventude. Minha mãe sempre colheu "na porteira da fazenda do Zaelho" (seu primo) qualquer flor comprada por minha irmã para enfeitar a sala de sua casa.
 
Ou seja, as lembranças mais antigas parecem ficar envolvidas, protegidas pelas mais recentes, num arranjo que (para mim!) lembra as várias camadas, os vários anéis de uma cebola.
 
E creio – ou tenho medo – que isso possa estar acontecendo comigo. Em outras palavras, minha batata pode até não estar assando, mas minha cebola parece estar querendo descascar (gostei desta idiotice!).
 
O motivo de estar dizendo isso é a perda de vocabulário que imagino estar me atingindo. Tenho achado meus textos tão merda que a culpa disso pode estar em grande parte relacionada à “cebola das palavras”. Não ria! (Ok, pode rir, mas só um pouquinho).
 
Minha suspeita é que as palavras aprendidas e descobertas através de leituras mais recentes, palavras mais cultas ou refinadas mas de utilização pouco frequente estão sendo “descascadas” e deixadas de lado, pois não se fixaram adequadamente, não conseguiram se posicionar no interior da cebola (essa cebola está mesmo bem idiota!).
 
Com isso, meus pensamentos e frases estão perdendo o pequeno brilho que porventura tenham tido, pois a maioria do vocabulário que está sendo utilizado foi obtida – até, no máximo – o fim da minha adolescência, época em que eu lia pra caramba. E não há linguagem coloquial que disfarce a pobreza, ou indigência vocabular. Porque é preciso – e isso vale para qualquer pessoa! – que se tenha intimidade com as palavras e expressões que se pretende utilizar. Como ainda não tenho certeza de que isso possa também estar acontecendo comigo (a perda de vocabulário), fico meio cabreiro. Meio, não, muito!
 
Para mim, uma das coisas mais constrangedoras é encontrar no texto de algum conhecido, aparentemente refinado, culto e com fama de bom escritor a troca de um s por z (por exemplo), denunciando a pouca intimidade do autor com a palavra que usou para tentar impressionar. E nem falei das frequentes agressões à gramática! Tenho um “amigo de facebook” exatamente assim. Por ter “thousands” de amigos nessa rede, é incensado por um bando de gente, mas vive pisando no tomate. 
 
Mas não comecei a escrever este texto para malhar ninguém (ainda está ai, leitor impaciente?). Meu objetivo é o registro dos meus medos, dos meus receios, pois ninguém nunca me ensinou o que significa ser idoso, tive de aprender sozinho (lembra quando eu falei que me sinto uma espécie  de coach de envelhecimento? Pois é...). Uma coisa é certa: o ardor dessa cebola das palavras ainda não me fez chorar pra valer, mas tem hora que dá vontade. Basta, por exemplo, reler o que acabei de escrever.

4 comentários:

  1. testa essas drogas:
    https://examine.com/topics/cognitive-decline/

    volte a estudar presencialmente (faculdade, curso de ingles etc)

    uma rotina sem mudanças oferece pouco desafio para a mente

    esse livro é legal:
    https://www.amazon.com.br/Aumente-Poder-do-Seu-C%C3%A9rebro/dp/8575427962

    abs!

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  2. talvez o método desse cara ajude:
    https://www.google.com/search?q=Jack+Lalanne&rlz=1C1GGRV_enBR748BR748&oq=Jack+Lalanne&aqs=chrome..69i57&sourceid=chrome&ie=UTF-8

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  3. https://www.gsuplementos.com.br/dha-oleo-de-peixe-60soft-growth-supplements

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  4. https://www.youtube.com/watch?v=QETNWqoAeIo

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