segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

UMA VEZ POR SEMANA

 
Já disse algumas vezes que não sou nada proativo; sou como os jacarés e crocodilos que ficam "quentando" sol e só reagindo quando algo se move perto deles. Sou reativo, não ajudo ninguém, nem mesmo um cego ou velhinha que queira atravessa uma rua movimentada.
 
Na época em que ainda trabalhava muitas vezes crianças maltrapilhas e sujas pediam esmola quando o carro parava no semáforo. Eu simplesmente negava ou fechava o vidro antes que se aproximassem. Isso durou até o momento em que matriculei os quatro filhos em um colégio próximo ao meu local de trabalho.

A partir daí as paradas no semáforo adquiriram outro significado. Eu comecei a ver aqueles meninos de rua a partir de sua comparação com nossos filhos e comecei a sentir uma pena imensa dos sofrimentos e humilhações a que provavelmente eram submetidos. Eu comecei a enxergá-los como crianças com idade semelhante aos nossos, mas com carência de tudo. Na verdade, a única coisa que possuíam até em excesso era a liberdade.
 
Hoje não se veem menores abandonados pedindo esmola nos semáforos (que terá sido feito deles?). Hoje há outro tipo de drama urbano. Segundo o “censo Pop Rua”, uma iniciativa da Faculdade de Medicina da UFMG com a prefeitura, em oito anos a população de rua cresceu 192%, chegando a mais de 5.000 pessoas em 2022. Essas pessoas abrigam-se debaixo de viadutos, marquises, montam barracas de papelão e plástico na frente de imóveis desocupados e são frequentemente usuários de crack ou cachaça.
 
Para ser sincero, continuo agindo como quando trabalhava: fecho o vidro, evito contato visual e tenho horror e medo de qualquer tentativa de aproximação. Justamente por isso passei a usar o automóvel quando vou comprar pão de manhãzinha. Se fosse a pé andaria dois quarteirões apenas, mas lembrando minha condição de idoso com artrose nos joelhos, vou de carro por medo de ser assaltado ou agredido.
 
Entretanto, o aumento do número de moradores de rua provocou em mim uma reação: hoje eu me sinto tão fragilizado e inseguro que passei a enxergar e me solidarizar com as pessoas escondidas atrás daqueles andrajos, pessoas que talvez tenham tido sonhos bons e que até os tenham ainda, pois é impossível não sentir pena dessa gente quando saio de casa pela manhã, com alguns ainda dormindo em cima de papelão ou colchões descartados por alguém.
 
Quando chego à padaria é comum encontrar sentados no meio fio um ou mais mendigos com a cara amarrotada de que dormiu onde foi possível, os olhos vermelhos e a roupa suja. Normalmente dirigem-se a mim ou a outro cliente e pedem para que paguemos um café com pão para eles, sempre dando-nos o tratamento de “doutor”.
 
Como minha pensão de aposentado nem de longe se aproxima dos salários que cheguei a ganhar quando trabalhava, tomei uma decisão: uma vez por semana pago um café com leite e pão com manteiga para o primeiro desvalido que me pedir. Por que uma vez por semana? Porque não tenho condições de fazer isso diariamente.

Não tenho a solução para os cinco mil abandonados pela Vida e às vezes até fico tentado a fazer “juízo de valores”, mas a realidade me chama de volta. Pouco importa se são ou não usuários de drogas, se têm problemas mentais, se vieram do interior e não conseguiram emprego ao chegar a BH; o traço que os une é que todos têm fome, e, principalmente, merecem, precisam ser tratados com um mínimo de dignidade.

8 comentários:

  1. Boa tarde:- Uma vez por semana não é mau, 😁😁😁
    .
    Deixando cumprimentos. Feliz semana.
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    Poema: “ Como não te amar “
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  2. Seu comentário ficou tão grande que até fiquei tentado a publicá-lo, na linha do "comentário grande vira post", mas achei que você poderia não aprovar.

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  3. Sem contar que nos grandes centros existe uma máfia das esmolas. Mendigos, preferencialmente, com crianças, são deixados por seus "agenciadores" em seus pontos pela manhã e recolhidos à tarde e a férias, dividida.
    Os pontos de mendicância aqui no bairro onde moro têm donos e são concorridíssimos.
    Tem um japonês, já bem velhinho, de uma quitanda onde compro verduras, com quem sempre converso quando vou lá. E uma vez ele falou que tem um método infalível para espantar essa vagabundada (a maioria nada têm de vítima ou desvalido) : quando apareceu um pedindo alguma coisa, ele oferece uma cesta sortida de verduras, frutas e legumes por um dia de trabalho do sujeito.
    O sujeito foge feito o capeta da cruz, não aparece nunca mais. Têm alguns que até saem xingando o sábio japa.
    Esse é o povo criado pela Constituição Cidadã.

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    1. Eu só pago o cafe com leite e pão com manteiga, não dou dinheiro. Até porque já deve ter uns três meses que não vou ao banco. Hoje, até R$1,00 eu pago débito em conta,

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    2. Você mencionou a “Constituição cidadã” e eu não pude deixar de rir, pois me lembrei de um caso da época da faculdade. O DA da escola foi construído na Rua Guaicurus, rua de zona, bem perto do infecto Ribeirão Arrudas. Os outros prédios da escola também ficavam na mesma área. Um dia resolvi almoçar no bandeijão (que funcionava no prédio do DA). Estava sozinho em uma mesa, próximo de dois caras que almoçavam mais perto da porta de saída. Entrou um menino descalço, com ar humilde e pediu um pouco de comida. Um dos caras, de óculos de lentes grossas e roupas que eu diria “de esquerdista” (eram totalmente fora do modelito “aluno de engenharia”) disse ao menino: “Seu problema é o sistema!”. O colega cagou de rir e retrucou: “Idiota, foda-se o sistema, o que ele tem é fome!”

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    3. E enquanto o povo der, por alguma tipo de culpa cristã ou de se sentir privilegiado simplesmente porque tem pelo que trabalha duro o dia todo, nem o vagabundo arregaça as mangas nem os governos assumem a função social que cabe a eles. O cidadão comum continuar a ser tão caridoso, tão bonzinho, é bom pro vagabundo e para os poderes estabelecidos.
      Concordo inteiramente com o Fabiano, neste caso.

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  4. Eu sou incompetente para fazer um julgamento isento, pois em tempos recentes passei a ver pessoas nos zumbis que a Vida atropelou. Claro, com a ajuda de drogas e desequilíbrio mental em muitos casos. Conheço uma família de quatro filhas e um filho. Após a morte do pai justamente esse filho, o mais velho, envolveu-se com drogas e se viciou, passando a morar na rua. A mãe mandava roupas para ele, mas nunca conseguiu resgatá-lo. Quando ela morreu ele foi a seu enterro, mas logo depois estava novamente debaixo do viaduto, uma vida de mais de vinte anos entregue ao vício. Que fazer em uma situação insolúvel como essa? Usar chumbinho na comida? Eu não sei qual é a solução, mas sei que não é simples.

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    1. Não há solução. O que a Natureza faz com os que saem degenerados? Cuida dele? Não. Elimina-os. Deixa que eles se autoeliminem.

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