terça-feira, 30 de janeiro de 2024

O HAVAÍ ERA AQUI

 
A garganta arde, os olhos lacrimejam, a cabeça gira, um suor frio escorre da testa, o corpo tem ligeiras convulsões e a sensação geral é de asfixia, de falta de ar, como se estivesse inalando o gás cloro que surge da mistura de amoníaco e água sanitária quando resolvo lavar o banheiro. Mas há muito tempo abandonei essa autoflagelação.
 
Esse quadro de quase colapso físico e mental sempre surge quando estou de novo olhando para um simples retrato em preto e branco, tirado quando eu devia ter de sete a dez anos. E é ele, sempre ele o deflagrador das piores e mais constrangedoras lembranças da minha infância.
 
Quem me conhece hoje jamais imaginaria que um senhor obeso, de cabelos brancos e ar de grande respeitabilidade (bem, talvez nem tanta assim) é a mesma pessoa retratada na florzinha da juventude há mais de sessenta anos. Pois eu lhes digo que é, lamentavelmente.
 
Eu era, eu fui um menino muito preso, muito reprimido e muito inseguro. Mas naquele tempo já tinha comportamentos divergentes das imagens que pessoas que viveram em tempos mais recentes fazem. Havia, sempre houve os brigões, os delinquentes, os marrentos e, em contrapartida, os delicados, os tímidos e os sonhadores.

Eu pertencia a esse segundo time, pois não brigava, tinha medo de apanhar, não sabia jogar futebol, não sabia fazer papagaio (ou pipa ou pandorga), não andava descalço, era tímido, introvertido e sem nenhuma vocação para ser machinho das antigas. Mesmo assim, para ser sincero, não me lembro de ter convivido com nenhum troglodita, nenhum menino das cavernas. Pouco importa.
 
O que realmente importa é a lembrança que muito constrangidamente tornarei pública e exposta à execração pública (não confundir com púbica, pelamordedeus!).
 
Eu devia ter de onze a doze anos quando meus primos ricos voltaram das férias passadas no Rio trazendo nos pés a mais recente moda lançada na cidade maravilhosa: sandálias havaianas! O calçado que qualquer maloqueiro usa hoje em dia! Mas naquele momento, era a mais absoluta novidade, o top do top em termos de moda unissex.
 
E advinha a cor? Solado branco com tiras cor de rosa. Eu até babei de inveja quando meu primo me deixou calçá-las para ver como ficavam. Insisti com minha mãe para comprar para mim e ela acabou comprando. Entretanto, para minha decepção, era azul, parecia ter sido fabricada com restos de borracha, tal a variedade de tons de azul no solado. E, claro, as tiras também eram azuis. Uma merda.
 
Hoje em dia, talvez ancoradas em um passado que veneram mas que nunca existiu realmente, algumas pessoas, cheias de deboche e sarcasmo ao ouvir esta história poderão dizer “Ah, viadinho!”. Mas recuso o comentário preconceituoso e, para mostrar toda a minha masculinidade infantil, resolvi publicar a foto, “aquela”!


Este post paga uma promessa feita ao intrépido Marreta.


4 comentários:

  1. Rapaz, eu também sempre pertenci ao segundo time que você citou. Ou talvez nem isso, pois no tempo da escola, eu não era chamado pra nenhum time.
    Você podia nem ser marrento, mas, a julgar pela foto, era cheio de pose. Eu nem de fotos gostava, fujo delas até hoje.
    Valeu por nos mostrar essa relíquia!

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    1. Talvez eu fosse um antepassado, um precursor do metrosexual. Essa foto foi tirada em Lagoa Santa na casa de veraneio de minha tia, onde eu passei a maioria das minhas férias (enquanto os donos se esbaldavam nas praias do Rio de Janeiro). Outra coisa a se notar é a magreza absoluta e o fato de estar com meias e sapatos. Se fosse hoje eu estaria descalço ou com sandálias havaianas - mas sem tiras cor de rosa!

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  2. Pareceu -me uma pose mais "juventude transviada", a la James Dean.

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    1. Para mim, o James Dean é igual ao caviar do Zeca Pagodinho. E o rock e o estilo ainda estavam fora do meu radar "fashion". O balofo Bill Halley veio ao Brasil com aquele extra ridículo "pega rapaz" em 1958. Porra, quando digo essas coisas é que eu percebo como sou velho!

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