sexta-feira, 19 de julho de 2024

SEU NOME ERA GLADISTON

 
Um de meus cunhados é criador de pombos-correios de competição, um vício que o leva a gastar uma grana lerda para alimentar ou medicar mais de duzentos desses “ratos de asa”. Para ajudar na limpeza dos pombais, ele sempre recrutou os meninos da favela que tem uma das entradas bem em frente à casa onde mora. Vários meninos já foram seus ajudantes e alguns até acabaram ficando amigos de nosso filho mais novo, que sempre estava por lá quando tinha uns dez, onze anos.
 
Apesar de possuir um temperamento de troglodita enfurecido, todos os que conhecem meu cunhado gostam dele, graças à sua conversa descontraída e seus casos engraçados. Dá esporros nos ajudantes quando estão fazendo corpo mole e paga uma mixaria pela ajuda recebida. Mesmo depois de adultos, esses antigos ajudantes (a quem eu, de sacanagem, me referia como “os escravos do Du”) continuam nos tratando amistosamente e de modo descontraído. Mas três deles, em épocas distintas, sentiram-se atraídos pelo dinheiro fácil do tráfico de drogas e hoje estão presos. E é do pai de um desses que desejo falar hoje.
 
Esse “ajudante” destacava-se dos demais por falar o tempo todo e aparentar ser muito inteligente. Um dia, ao saber que era evangélico, sugeri que “juntasse o útil ao agradável”, começasse a estudar para ser pastor, por expressar-se muito bem. E um dos argumentos que usei foi que ganharia a maior grana se fundasse uma igreja. Mas as drogas chegaram primeiro.
 
Um dia, quando estávamos começando uma reforma em nossa casa (que demorou dois anos para ser concluída e custou o preço de um pequeno apartamento), perguntei se ele conhecia alguém da favela que pudesse trabalhar como ajudante de pedreiro. “Meu pai” foi a resposta imediata.
 
E dias depois começava um contato quase diário com um sujeito meio louco, muito tímido (ao contrário do filho), gago, honestíssimo, engraçado e super gente fina. Dinho era seu apelido.
 
O Dinho, açougueiro de profissão, estava “encostado” por problemas de saúde mental, mas fazia biscates pelo bairro e foi assim que topou trabalhar de ajudante na reforma de nossa casa. À medida que foi se acostumando conosco, a gagueira foi sumindo. E foi assim que ficamos sabendo de alguns casos engraçados contados por ele.
 
O primeiro aconteceu quando ainda trabalhava em açougue. Um cliente mal-humorado reclamou de algum problema com a carne que havia pedido. O Dinho tentou explicar, provavelmente gaguejando muito, mas o cliente começou a destratá-lo. Não teve dúvidas: sem abandonar o facão de açougueiro, partiu para cima do cliente, que correu para não ser ferido ou morto, o que não o impediu de ter as costas riscadas com a ponta do facão. Eu e minha mulher ficamos estupefatos ao ouvir esse caso contado entre risos.
 
Não sei se foi preso pela agressão, sei apenas que foi “encostado” pelo INSS, passando a tomar medicamentos receitados por um psiquiatra, a quem tinha de consultar periodicamente para saber se poderia retornar ao trabalho. Creio que com o passar do tempo, achou bom poder ampliar os rendimentos, ao fazer pequenos trabalhos pelo bairro. O engraçado é que os preços cobrados para fazer esses biscates eram definidos por sua esposa "Darca" (Joana D' Arc), que também punha a mão na massa. É importante destacar que, por gostar de encher a cara com cachaça nos finais de semana, abandonou os remédios para diabetes e os psicotrópicos receitados. E foi essa bomba-relógio que começou a trabalhar em nossa casa (só ele). Mas nunca nos sentimos ameaçados por sua instabilidade emocional, por sua loucura mansa.
 
Dono de um sorriso simpático e cativante, um dia reclamou que estava com um dente doendo depois de tentar abrir com ele uma garrafa de cerveja. Devo ter dito que era maluco e talvez sugerido que fosse a um dentista. No dia seguinte apareceu com um sorriso onde faltava um canino. Perguntei o que tinha acontecido e ele disse que achou melhor arrancar o dente.
- “Mas você tinha o dente perfeito!” Ele riu e ficou por isso mesmo.
 
Em outra ocasião, contou que tinha voltado ao psiquiatra para que suas condições mentais fossem avaliadas e sua volta ao trabalho pudesse ou não ser autorizada. Ao ouvir do médico que estava sendo liberado para voltar à antiga profissão, disse que não estava entendendo bem o que o psiquiatra lhe dizia. Revirando os olhos, pegou uma folha de papel que estava sobre a mesa, amassou e começou a mastigá-la enquanto ficava de quatro sobre a mesa. O médico, apavorado, disse que “talvez fosse melhor continuar afastado por mais algum tempo”. Ficamos ele e eu rindo dessa safadeza.
 
E sempre tinha um caso engraçado para contar, como quando disse ter “vendido o vento” sobre sua casa. Perguntei o que significava aquela maluquice. Ele riu e disse ter vendido a laje de cobertura do segundo andar de sua casa para “uma dona” construir uma moradia. Pela descrição que fez das condições inseguras do lugar onde morava, constatei mais uma vez que “Nossa Senhora do Concreto Armado” protege os moradores de favela, principalmente se são meio aloprados.
 
Antes de vender “o vento”, resolveu montar um bar no segundo andar que tinha acabado de construir. Mas foi um empreendimento de curtíssima duração, pois, além de algumas poucas balas, cigarros e biscoitos, o produto principal era cachaça, acondicionada em um pequeno tonel de cinco litros. Que acabou sendo quase toda consumida pelo proprietário ou vendida fiado para os amigos.
 
Um dia a reforma de nossa casa terminou e ele se foi, mas sempre o chamávamos para algum pequeno serviço. Às vezes, passando de carro em frente à entrada da favela onde morava e o vendo sentado no meio-fio conversando com os amigos, eu diminua a velocidade e gritava "Ô, Dinhô!",ele acenava e respondia "Uh, Zé!". Quando o chamávamos para algum serviço como cortar um galho da árvore do vizinho que invadia nossa casa, eu lhe dizia depois de terminado o serviço:
- Dinho, você é o cara! E ele respondia com sua voz grave:
- Cara de pau...

Nosso filho mais velho era veementemente contra essas voltas à nossa casa, principalmente depois de ficar sabendo de algumas histórias que ele nos contou. (“Vocês são mais doidos que o Dinho, por achar que ele nunca poderá surtar e agredir vocês”). Mas tínhamos plena confiança nele e em sua total honestidade.

Em uma ocasião, o Dinho nos contou que, de vez em quando, ouvia uma voz lhe dizendo para se matar, e que até fez algumas tentativas se cortando com faca. Disse também que, depois de perder a mãe, às vezes tinha vontade de se suicidar. Condoendo-se com essas histórias, minha mulher lhe disse para não dar ouvidos a essa voz e para pedir a Deus que lhe desse serenidade, pois tinha esposa e três filhos que o amavam e dele dependiam. Sua reação foi dizer que já tinha vivido e sofrido muito e que morreria com cinquenta anos, tal como aconteceu com sua mãe.

Hoje ficamos sabendo do falecimento do engraçado e boa praça Dinho, dez dias depois de completar 53 anos.

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