Santa Tereza, o bairro onde moro desde que me
casei há 49 anos, é considerado o bairro mais boêmio de BH, tal a quantidade de
bares, restaurantes, hamburguerias, chopperias, bistrôs, pizzarias, botequins
tipo “copo sujo”, mercearias que vendem cerveja (e onde os consumidores tomam a
loura gelada em pé na porta ou na calçada), o bar mais antigo da cidade (104
anos) e até um “sanitário que vende
cerveja”, na definição de um sobrinho devido às condições de limpeza do
lugar (“aquilo não é um bar, aquilo é um sanitário
que vende cerveja!”).
A quantidade de estabelecimentos onde se pode
tomar uma ou comer um rango às quatro da matina é impressionante. Com ou sem
música ao vivo é possível encontrar até três bares em um único cruzamento de
rua. Graças a isso, “todo dia é dia, toda
hora é hora”. Às vezes, durante a semana, quando vou à padaria comprar o
pão nosso de cada dia, encontro três ou quatro malucos com cara de quem foi
atropelado por bicicleta jogando conversa fora e com uma lata de cerveja na mão.
Apesar de não beber cerveja ou qualquer outra bebida alcoólica (veja você!), gosto
dessa vocação “etílico-musical-gastronômica”, desse jeito boêmio e descolado do
bairro.
Talvez não exista em Santa Tereza nenhum
estabelecimento da chamada alta gastronomia, daquele tipo em que você pede um “Rôti d'agneau en couronne farci à l'orange
et aux canneberges” ou algum outro rango com nome francês, recebe uma
porção minimalista em um prato decorado com raminhos de alecrim, tomilho ,
delicadas flores comestíveis ou qualquer tipo de frescura que serve só para
encher o saco e atrapalhar as duas garfadas que já matam a quantidade servida.
Em compensação, paga o preço de uma cirurgia de peito aberto. Em outras
palavras, não se encontram no bairro restaurantes fresquérrimos onde você pediria
um “bombom de alcatra” ou colhão de
boi “ao molho tartare” (eu nunca
pediria!) e tivesse de pagar o preço de um boi wagyu japonês inteiro.
Acredito que a fama do bairro possa ter
surgido graças ao bar e restaurante do Bolão localizado na Praça Duque de
Caxias, famoso por seu espaguete servido a qualquer hora da noite ou madrugada.
No início da década de 1960, quando foi criado, servia almoço para os
motoristas de taxi estacionados defronte a ele. Bolão, o filho mais novo do
proprietário, foi o responsável por estender o atendimento durante toda a
madrugada, tornando-se excelente opção de fim de noite para músicos e
jornalistas voltando do trabalho, poetas, escritores, baladeiros de todo tipo e
bebuns mortos de sede de cerveja, fome e larica. Com seu estilo menos refinado,
tinha as paredes decoradas com 150 relógios e discos de prata, ouro e platina
da banda Skank, retratos dos fundadores e outros objetos.
Imagino que a mística do bairro se deva
também ao fato de ser o berço do famosérrimo Clube da Esquina e da banda de heavy metal Sepultura. E aí é que está o assunto desta postagem. Uma leitora do
blog deixou no post “Encontro Casual”
este comentário: “JB, que máximo. Nunca
encontrei assim, por acaso, algum artista ou alguém que conheço da internet.
Deve ser muito doido. São coincidências/presentes da vida”.
Este comentário feito pela titular do blog Latíbulo Inefável me fez mudar de rota
para falar sobre isso. Minha intenção original era fazer um pedido público de
desculpas aos leitores do Blogson, mas resolvi falar de músicas e músicos.
Acredito que a atmosfera de cidade do
interior que o bairro possuía e a falta de tietagem explícita contribuíram para
que músicos famosos (ou não), de vários estilos e procedências pudessem ser
vistos circulando, bebendo ou comendo em restaurantes e bistrôs mais bacaninhas
ou em bares no estilo “copo sujo”.
O violeiro raiz Pereira da Viola que às vezes
se apresentava no programa do Rolando Boldrin, morou durante um tempo a meia
quadra de distância da casa da minha sogra. O Lô Borges vivia bebendo cerveja
na porta de uma mercearia onde compro queijo. O Gabriel, filho do Beto Guedes, um
talentosíssimo e multi-instrumentista (toca dez instrumentos) morou ou ainda
mora no bairro. Os irmãos Cavalera, fundadores da banda Sepultura e durante o tempo em que moraram no bairro, desfilavam
suas enormes cabeleiras pelas ruas de Santa Tereza (“Santê” para os íntimos) e às vezes almoçavam no Bolão.
Quando ainda era apenas um dos onze filhos do
“coelho” Salomão, o Lô foi colega de
sala de uma de minhas cunhadas. Até hoje ainda moram no bairro alguns de seus
irmãos. E o Toninho Horta, mesmo morando em um bairro vizinho, sempre bateu ponto
em algum bar ou restaurante de Santa Tereza.
Falando nele, lembro-me de um
ensaio/apresentação feito na Praça Duque de Caxias bem em frente ao Bolão, que
reuniu ao ar livre uma penca de músicos feras tocando músicas do Clube da
Esquina. Além de tocar um piano todo grafitado que ele mesmo tinha colocado na
praça, o Gabriel Guedes subiu em uma árvore, pegou o baixo e ficou lá tocando.
Descobri depois que aquele happening, uma espécie de Woodstock Santê, tinha sido uma ideia do Toninho Horta para fazer
um show com os parentes e descendentes do pessoal do Clube da Esquina. Por isso
estiveram ali o Telo Borges, o já citado Gabriel Guedes, seu irmão Ian Guedes
(feríssimo na guitarra), o Rodrigo Borges (sobrinho do Lô) e outros de quem não
me lembro agora. O divertido nesse ensaio foi ver a movimentação dos músicos.
Bastava um deixar de lado o instrumento que estava tocando para outro tão bom
quanto ele pegar e mandar ver.
Então, Maju, não é para me gambá, mas já conversei com o Lô, o
Gabriel, seu irmão Ian, o Toninho Horta, o Pereira da Viola e o até agora não
citado Tavinho Moura, que um dia me ofereceu um copo de cerveja (educadamente
recusado por mim) depois de eu lhe dizer que a música “Paixão e Fé” era tão absurdamente bonita que eu acreditava que
Deus esteve ao seu lado quando a compôs, dando umas dicas divinas – “Mude esse trecho da linha melódica, use
este acorde aqui”). Mas as conversas sempre versaram sobre música e sem
pedido de autógrafos nem beijos e abraços.
Por isso, se quiser que aconteça um encontro
casual com algum músico mais conhecido, talvez seja bom mudar para Santê. Mas
já aviso que nunca verá o misterioso e arredio Jotabê flanando pelos bares da
vida, ou melhor, do bairro.
Kkkkkk
ResponderExcluirAdorei, JB. Eu acho que não ia conseguir agir com naturalidade diante de artistas que gosto muito, ainda mais por vir de uma cidade que fica localizada no interior do fim do mundo, mais pacata que o nosso tão querido e fadigado blogger, kkkkk. Tudo me impressiona, tudo é maravilhoso demais. Eu torço pra que tenha a oportunidade, e torço mais ainda pra não ser a fã surtada. Kkkkkk
É claro que eu me aproximo como fã, mas sem espalhafato, pois todos são simples e agem naturalmente. Um dos casos mais pitorescos aconteceu com o Gabriel, filho do Beto Guedes. Um dia perguntei a ele como poderia desempenar o braço do meu violão (tinha ficado com as cordas tensionadas uns vinte anos). Aí ele falou para levá-lo à sua casa, que daria uma olhada e me deu o número de seu celular. Nunca levei nem sei onde foi parar o papel com o número que me deu. Se quiser assistir a um vídeo dele cantando uma música composta por ele e por meu amigo e vizinho Chico Moura, dê uma olhada neste link. O Chico (cujo nome verdadeiro é Fernando) me disse que ele chegou e perguntou: "Qual instrumento eu vou tocar?" Meu amigo (que tem um estúdio de gravação em sua casa) disse "Nenhum, você só vai cantar". Olha aí: https://www.youtube.com/watch?v=qgHZg2jVR-k. Quem canta com ele e toca piano é meu amigo. Espero que goste.
ExcluirOlha, que legal sua crônica musical-boêmia-gastronômica!! Eu sou muito fã da turma do Clube da Esquina, tenho uma coleção de CDs do Milton Nascimento que traz essa época, é de fato, divino!
ResponderExcluirAqui no Rio o bairro mais boêmio é sem dúvida Vila Isabel, berço de Noel Rosa e Martinho da Vila e tantos outros músicos que viviam em suas "calçadas musicais".
Vila Isabel foi projetado e construída nas terras da Imperial Quinta do Macaco, propriedade da Imperatriz D. Amélia, segunda esposa de D. Pedro I.
Mas temos também a Lapa, point maior hoje dos boêmios da cidade.
Não ou de ficar em bar até altas horas, também não bebo, mas sou um grande fã da boa música brasileira.
O que eu acho bacana é o fato de muitos compositores terem o Rio como tema. Mas é merecido, pois o Rio é bonito demais. Se fosse lançado um álbum só com músicas que falam da cidade, provavelmente seria duplo ou triplo. Sem desmerecer as demais, a de que mais gosto é uma versão instrumental e jazzística da “valsa de uma cidade” interpretada por Dick Farney, um cantor que fez muito sucesso na década de 14950 com sua voz aveludada, além de ser um pianista dos mais fodas. Recentemente (para mim, claro), o Caetano Veloso a regravou. Os versos mais conhecidos seriam estes:
ExcluirRio de Janeiro, gosto de você
Gosto de quem gosta
Deste céu, desse mar, dessa gente feliz
Uma experiência legal é ouvir a gravação do Caetano para conhecer a música e depois ouvir a versão instrumental em que o Dick Farney “estraçalha”. Caso se interesse em ouvir a versão instrumental (minha predileta), siga este link:
https://www.youtube.com/watch?v=7yp5SS5x22w