sábado, 20 de julho de 2024

COMO É QUE VOCÊ SABE ESSAS COISAS?

 
Recentemente, depois de algum comentário feito por mim sobre história antiga ou arqueologia, uma de minhas cunhadas perguntou “como eu sei dessas coisas”. Minha resposta foi dizer que me interesso por assuntos que a maioria das pessoas não tem tempo ou interesse em saber e passa batida, que é a chamada cultura inútil. E este texto é exatamente isso.
 
Tive um colega e amigo que era um devorador de livros, um leitor voraz que lia sobre qualquer assunto contido nos volumes que comprava compulsivamente, chegando a ter 5.000 livros arrumados em estantes metálicas iguais às encontradas em bibliotecas públicas. Na verdade, não era só alguém cujo maior prazer era o hábito da leitura constante. Era um bibliófilo literal, cumprindo quase um ritual a cada novo livro comprado. Para ele, um livro era muito mais que um objeto de leitura. Os livros novos eram manuseados, cheirados, examinados quanto à textura e à gramatura das folhas. Eram, enfim, tratados quase como joias.
 
Ele era também católico convertido, um ex-ateu tão devoto que acabou sendo ordenado "irmão leigo dominicano". Muitas vezes fui à sua sala, onde conversávamos sobre religião, sobre religiões, Deus e fé. Eu expunha minhas dúvidas e ele me acalmava com sua fé serena e profunda. Em uma dessas conversas, ele me emprestou um livro interessantíssimo sobre o Santo Sudário, escrito por um médico cirurgião francês, cujo título é “A Paixão de Cristo segundo o Cirurgião”.
 
Lembrei-me desse livro enquanto esperava atendimento sentado na antessala de um consultório. Na verdade, estava ali refletindo sobre a capacidade que temos de nos iludir e de aceitar tudo o que nos é vendido por líderes políticos ou religiosos como a expressão máxima da verdade. Aparentemente, a maioria das pessoas sente-se mais confortável em aceitar sem questionamento o que lhe ensinam ou impingem.
 
Mas não quero falar de política ou da manipulação de emoções e crenças que líderes populistas conseguem fazer, confundindo nossas mentes. Hoje eu quero falar de crenças religiosas ou ligadas às religiões. Obviamente, nem me preocupo com as grandes questões filosóficas sobre o sentido da vida e a criação do universo. Meu foco está nas pequenas crenças e crendices que poderiam ser facilmente desmentidas, mas não são porque ninguém parece estar interessado em rever ou repensar aquilo em que sempre acreditou ou, melhor dizendo, o que lhe ensinaram a acreditar.
 
Mesmo que hoje eu seja um "católico ateu", não discuto o valor das crenças e da fé para anestesiar nossos medos e angústias existenciais. Hoje, sinto inveja de pessoas que têm uma fé sólida e serena, pois têm onde se apegar ou se consolar quando o mundo ou a vida se torna muito hostil e difícil de suportar.
 
E era esse tipo de divagação que alimentava as conversas que eu tinha com meu amigo. Uma delas era sobre a autenticidade ou não do Santo Sudário, relíquia mais que sagrada para a Igreja Católica. Creio que todo mundo já tenha ouvido falar do Sudário de Turim, mas vou só dar um "briefing" sobre ele.

O Sudário de Turim é um lençol de linho com mais de quatro metros de comprimento que teria envolvido o corpo de Jesus após a crucificação. Por um processo até hoje não definido, esse tecido traz impressa a imagem de um homem nu com sinais de sevícias e ferimentos. Ainda que seja considerado uma relíquia, a Igreja Católica não atesta sua autenticidade nem a contesta.
 
A imagem do Sudário foi descoberta no final do século XIX, após ser fotografado. Durante o processo de revelação da foto, o fotógrafo amador notou algo surpreendente: o negativo da fotografia mostrava uma representação muito mais detalhada e clara da imagem esmaecida e quase invisível contida no tecido. Isso mostrou que a imagem no Sudário tinha as características de um "negativo fotográfico natural do corpo e do rosto de um homem que parecia ter sofrido uma crucificação, com detalhes que não eram facilmente visíveis a olho nu no tecido original".
 
Essa descoberta gerou inúmeras investigações, teorias e hipóteses contra e a favor de sua autenticidade. E uma das investigações mais interessantes está contida no livro escrito pelo cirurgião francês Pierre Barbet que meu colega e amigo me emprestou um dia.
 
Pierre Barbet (1884-1961) foi um médico francês e o cirurgião chefe do Hospital Saint Joseph, em Paris. Por conta de sua vasta experiência, apresentou um conjunto de teorias sobre a crucificação de Jesus. Barbet afirmou que sua experiência como cirurgião no campo de batalha durante a Primeira Guerra Mundial o levou a concluir que a imagem no Sudário de Turim era autêntica, anatomicamente correta e consistente com os relatos da crucificação de Jesus.
 
Ao examinar e investigar os detalhes da imagem em negativo do corpo de um homem contidos no Sudário, o cirurgião francês agiu como médico legista e o livro que escreveu sobre suas descobertas e conclusões poderia ser considerado um laudo de necropsia ou autópsia, pois são descrições extremamente vívidas e técnicas da tortura e flagelação a que Jesus foi submetido.
 
 “É este, com efeito, um assunto que de há mais de vinte anos não me tem deixado o pensamento, indo às vezes até à obsessão”, escreveu no prefácio do livro A Paixão de Jesus Segundo o Cirurgião. 
 
Como este é um blog de amenidades, não me preocuparei em transcrever detalhes técnicos das descobertas, inferências e conclusões a que o cirurgião francês chegou e que encontrei na internet, principalmente para não deixar este texto mais longo do que já está. E antes que eu me esqueça, acredito totalmente na autenticidade do Sudário, especialmente depois de ler o livro que me foi emprestado.
 
O que me levou a escrever este post é a constatação de que a ignorância de quem escreveu os Evangelhos muitos anos depois da crucificação e morte de Jesus, ou sua tradução para outras línguas, transmitiu e foram aceitos como verdade pequenos detalhes que se mostram incorretos.
 
O primeiro equívoco é a crença sobre a cruz carregada por Jesus até o local onde seria crucificado. “O condenado carregava o patibulum, parte horizontal, onde se inscrevia o titulus, placa com o nome do prisioneiro e a razão de sua morte. A parte vertical costumava já estar fincada no local da crucificação”.

Aqui cabe um comentário: ao contrário de pinturas e esculturas feitas por vários artistas ou das representações da Via Crucis feitas durante a Semana Santa, é bastante ilógico pensar que Jesus tenha carregado uma cruz completa até o lugar onde seria crucificado. Além do peso da cruz completa, estimado em mais de 130 kg, basta imaginar o tempo gasto para furar um buraco no chão e que fosse fundo o suficiente para manter a cruz estável. Muito mais sensato e prático deve ter sido carregar apenas a viga horizontal onde ele teria as “mãos” pregadas.
 
A outra crença é sobre as feridas nas mãos provocadas pelos cravos ou pregos utilizados para prendê-las na cruz. No final do livro podiam ser vistas fotografias meio macabras de cadáveres crucificados pelo Dr. Barbet em seus estudos sobre o Sudário. Até onde me lembro, o cirurgião descobriu que se as mãos tivessem sido pregadas na cruz elas seriam rasgadas pelo peso do corpo, que logo esborracharia no chão. Ao contrário de pinturas e textos que falam das “chagas” nas mãos de Jesus, o que realmente aconteceu foi tal como descrito pelo médico: “Os pregos ou cravos, (...) eram cravados sobre os pulsos, pois se fosse nas mãos, elas se rasgariam completamente”.
 
Para finalizar este texto transcreverei apenas algumas frases e observações feitas pelo médico francês e sobre suas descobertas:
 
Tendo empreendido, com total independência de espírito e com a maior objetividade científica, um estudo do Sudário de Turim, o Doutor Pierre Barbet descobriu pouco a pouco, em vinte anos de investigação paciente e meticulosa, todos os detalhes dos sofrimentos suportados por um homem que teria sido crucificado.
 
Contudo, a concordância marcante das descobertas anatômicas, dos dados evangélicos e das imagens do Sudário leva o autor à convicção de que este linho continha o corpo de Cristo e que é, como disse o Papa Pio XI, "uma coisa sagrada como talvez nenhuma outra".
 
A mais extrema, cruel e angustiante forma de punição”, diz o Dr. Pierre Barbet, cirurgião do Hospital Saint Joseph de Paris, em seu livro “A Paixão de Cristo segundo o cirurgião”, onde descreveu de forma médica como Jesus morreu.
 
Ao apresentar seus estudos para o então Cardeal Pacelli, o futuro Papa Pio XII, ele exclamou com tristeza: “Não sabíamos; ninguém nunca nos disse isso!”
 
Após décadas de pesquisa, o Dr. Barbet ficou aterrorizado com o que descobriu. O próprio médico afirmou que não conseguia mais fazer a Via Sacra, a meditação de cada etapa da crucificação de Jesus. 
 

Agora, quando minha cunhada perguntar novamente "como eu sei essas coisas", apenas direi que sou um leitor assíduo do Blogson Crusoe. 

 


8 comentários:

  1. Ué, o Pio XI diz uma coisa e o Pio XII outra... Eu, hein?
    É certo que muito na bíblia foi romanceado. A desculpa que dão a algumas passagens é que são matáforas. A-ham. Daí chegam a citar alguma parábola de Jesus. Mas parábola é uma coisa, metáfora é outra. É claro que Jesus existiu e fez coisas impressionantes em uma época muito dissonante. Daí a acreditar fielmente no que escreveram na bíblia já é uma outra história.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Eu tenho o "gene da religiosidade", pois tudo sobre religião me atrai. O problema é que eu sou crítico em relação a muitas coisas que li. E isso foi afetando a minha fé. Mesmo que não pareça (e não parece mesmo) a motivação deste post foi criticar o comportamento que a maioria das pessoas tem de aceitar sem refletir e sem criticar tudo o que os poderosos, os líderes religiosos dizem. Eu sei que é mais fácil pensar assim e talvez os crentes (no sentido de crença, de credulidade) talvez sejam mais felizes do que os que duvidam ou questionam o que lhe ensinam. A Bíblia é exatamente a expressão disso. Por ter sido escrita por várias pessoas em várias épocas, muitos textos são pura alegoria ou crendice. E nem preciso ficar no AT. O primeiro Evangelho (Marcos) foi escrito 40 anos depois da crucificação de Jesus. O último (João) foi escrito 70(!) anos depois da morte de Jesus. Isso significa que pelo menos os Evangelhos de Mateus e João não foram escritos por eles mesmos, mas por autores anônimos que registraram o que era transmitido oralmente. Pense bem, passado tanto tempo assim, dá para acreditar em tudo o que está registrado? Eu já acreditei, mas hoje eu me permito duvidar – e duvido de muita coisa, mesmo que os ensinamentos de Cristo tenham sido preservados e transmitidos oralmente até serem escritos da forma mais piedosa possível. Mas, volto a dizer, a intenção oculta deste post era criticar aqueles que endeusam e babam no saco do Bozo e do Lula sem se deter a pensar: ”É assim mesmo?”. E antes que eu me esqueça, não coloquei nenhuma imagem ilustrativa porque eu não sei e nunca soube mexer com photoshop. Abraços.

      Excluir
    2. Vixe, esse seu comentário foi uma bomba, eu não sabia de nada disso. Se antes tinha meu pezinho atrás em relação à bíblia, imagine agora, sabendo disso tudo. Obrigado pela Luz!

      Excluir
    3. Sabe, Fabiano, como disse algumas vezes, tenho inveja das pessoas que possuem uma fé sólida que não discute, apenas aceita. Meu amigo Pintão dizia que na França essa fé era conhecida como a “fé do carvoeiro”, a fé das pessoas simples, sem cultura, ingênuas. Pode parecer paradoxal dizer isso, principalmente por ser crítico dessa forma de pensar sem questionar, uma espécie de “a gente segue amando entre tapas e beijos”. Eu vejo a crença religiosa como extremamente positiva para segurar a barra quando tudo desmorona à sua volta. Só que, infelizmente, eu não penso mais assim – daí a inveja. Minha visão sobre a Bíblia está contida no post https://blogsoncrusoe.blogspot.com/2024/02/um-ateu-catolico-ii.html, que não precisa ler. Mas eu gosto muito dos ensinamentos e parábolas de Jesus. Talvez tenham sido redigidas com palavras que não foram ditas por Ele, mas a essência é bem legal.

      Excluir
  2. Tema interessante. Teve uma época que eu também li muito sobre o sudário. Tenho formação protestante, fiz seminário, li trocentos livros sobre Bíblia e teologia, mas hoje estou fora da igreja. Acho que sou um agnóstico teísta...seja lá o que isso signifique. Sou ruim de me definir.
    Não acredito que o Sudário seja a imagem de Jesus. Mas pode ser. Jesus não foi o único crucificado em sua época, outros milhares sofreram a mesma má sorte.
    Os Evangelhos não são biografias nem reportagens, são um gênero literário bem especifico. Há histórias com interpretações pessoais do autor e liberdades literárias. Existe todo um tratado publicado para se tentar chegar ao máximo de certeza o que é e o que não é histórico nos Evangelhos, também li vários desses tratados.
    Jotabê também é cultura.
    Ah, tu escreve muito, uma coisa atrás da outra, às vezes não consigo acompanhar tudo...(foda-se eu)
    Não cheguei, acho, a ter 5 mil volumes, mas uns 3500 certamente...com todos esses toques de leitor e comprador de livros compulsivos.
    Hoje estou curado, 90% do que leio hoje é no Kindle, o que eu considero uma revolução.

    abraços.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Gostei muito do seu comentário, pois hoje eu talvez seja também um agnóstico teísta pacificado, mesmo que às vezes me entristeça por isso. Não sei se lê comentários de outras pessoas, mas talvez se interesse pelas respostas que dei ao Fabiano neste post. Pedindo desculpa pelo jogo de palavras (não resisto!) a discussão do Sudário dá muito pano pra manga. E eu publico muito por ser aposentado e ansioso de nascença ("síndrome de abstinência de publicação"). Abraços

      Excluir
    2. sim, eu li os comentários acima. Somos parecidos nessa questão da fé. Acho a fé um ato de coragem, até necessário para se viver. A fé em Deus (seja ela qual for) entra nessa equação. Creio em algo que poderia ser chamado de "Deus" mas sei que todos os deuses da cultura humana (incluindo o judaico-cristão) são formas culturais que nós inventamos para lidar com o "Totalmente Outro".

      Excluir

ESTRELA DE BELÉM, ESTRELA DE BELÉM!

  Na música “Ouro de Tolo” o Raul Seixas cantou estes versos: “Ah! Mas que sujeito chato sou eu que não acha nada engraçado. Macaco, praia, ...