sexta-feira, 23 de setembro de 2022

MANTEIGA A PALITO

 
Quando eu tinha pouco mais de dois anos de formado, fui contratado como engenheiro de orçamentos por uma micro construtora com características realmente únicas. Nove irmãos de uma mesma família chefiavam os setores fundamentais da empresa - e outros nem tanto assim. Presidência, diretoria técnica, diretoria administrativa, compras, tesouraria, equipamentos, medicina do trabalho, secretaria geral e paisagismo. Além desses ainda havia o auxiliar de tesouraria, que era marido da tesoureira.
 
Outra particularidade era o relacionamento da família com a Igreja católica. Fixando-me apenas no presidente gente finíssima: sobrinho de bispo, irmão de freira e pai de padre. E hospedeiro do vigário de sua paróquia. Assim, por trabalhar em ambiente rigorosamente familiar, fiquei sem falar palavrão nos três excelentes anos em que trabalhei ali.
 
Outra característica interessante – e essa sim, que motivou este post – era o uso de estagiários em atividades administrativas para aliviar o trabalho dos engenheiros de obra.
 
Havia um ciclo desenhado para isso acontecer. Os estagiários eram admitidos para trabalhar no setor de orçamentos; quando já estavam familiarizados com projetos e levantamento de quantitativos eram deslocados para o setor de planejamento e acompanhamento de obras. Nesse setor recebiam uma obra para “cuidar”. Faziam medições de serviços executados, acompanhavam a programação de compras necessárias, mantinham contato com a fiscalização dos órgãos e empresas contratantes, monitoravam o pagamentos das faturas e outras atividades, deixando o engenheiro livre para focar apenas a execução e o andamento da obra, orientar os encarregados, etc. Quando já estavam craques no assunto e próximos da formatura eram deslocados para as obras, para auxiliar diretamente os poucos engenheiros que a construtora possuía, pois às vezes o mesmo engenheiro era responsável por duas ou três obras. E era aí que entrava o suporte do estagiário.
 
Eu ficava no início do ciclo. E como sempre havia muito serviço, pedi que se contratassem apenas estagiários de horário integral, estudantes de cursos noturnos. Foi dessa forma que conheci Tomás, estudante paraguaio e um dos mais interessantes estagiários que a construtora admitiu.
 
Às vezes, quando eu lhe passava algum serviço mais trabalhoso, resmungava alguma coisa em voz baixa. Como trabalhávamos no mesmo espaço eu ouvia os resmungos ditos em espanhol, achava graça mas não entendia nada. Um dia perguntei a ele o que significava aquilo:
- “É bueno, dijo la mula al freno”.
- Comequié?
- “É bueno, dijo la mula al freno”!
- Que significa essa maluquice?
- “É bom, disse a mula para o freio”. Freio é aquele ferro que colocan na boca dos cavalos e mulas.
 
A partir daí, sempre que fico de saco cheio por alguma coisa já vou logo dizendo - “É bueno, dijo la mula al freno!”.
 
 
Lendo um texto muito interessante no blog "Casa do Conde", lembrei-me de um caso contado pelo Tomás. Tudo aconteceu quando desejou ir a uma festa e estava sem dinheiro. Alguém comentou sobre uma obra que estava contratando serventes de pedreiro para encher uma laje. Dentro daquela linha de raciocínio de que “já que não tem tu vai tu mesmo”, foi lá, conseguiu ser contratado e passou o dia inteiro trabalhando feito um burro de carga, subindo com latas de concreto no ombro até a laje que estava sendo concretada. Ao fim do dia, recebeu o pagamento mas estava tão cansado e dolorido quando acabou o serviço que acabou dormindo e não foi à festa.
 
Mas, de todas as histórias que contava, a da fome é disparado a melhor, pois me fez literalmente chorar de rir.
 
Aluno conveniado, logo que chegou ao Brasil, Tomás hospedou-se em São Paulo, na casa de um parente ou conterrâneo. Que lhe entregou uma cópia da chave da casa. Ainda acostumando-se com o país, confundiu as datas e veio para BH uma semana antes do início das aulas, sinônimo também de antes do início de funcionamento do bandejão da escola.
 
Não sabia o que fazer, não conhecia ninguém e só tinha no bolso a chave da casa paulista do parente. Sem ter o que fazer, ficava parado na calçada ao lado de um orelhão, olhando o movimento. Alguém tentou usar o telefone, a ficha agarrou, não saiu e a pessoa foi embora, provavelmente puta da vida.
 
Tomás pegou a chavinha, tentou, tentou e conseguiu retirar a ficha. A luz se acendeu no cérebro. Continuou por ali, outra pessoa tentou telefonar, a ficha também agarrou e mais uma ficha foi para seu bolso. E assim ficou uns dois ou três dias até alguém reclamar do mau funcionamento e a companhia substituir o aparelho.
 
Com pouquíssimo dinheiro e sem as fichas que trocava em algum bar ou padaria, começou a comer um pãozinho francês por dia, acompanhado de água. Disse nunca ter sentido tanta fome assim... até encontrar um conterrâneo que já estava no segundo ou terceiro ano; comentou com ele o miserê em que se encontrava, etc. Diante disso, o amigo resolveu pagar um rodízio para ele.
 
- Eu nunca tinha ido a um lugar assim. O garçom trouxe o couvert - paezinhos torradinhas, azeitonas, picles e umas bolas amarelas que eu nunca tinha visto. Comecei a comer todos os panes e torradas, as azeitonas, os picles, peguei um palito, espetei uma das bolas amarelas e comi. Só depois de ter comido algunas foi que eu descobri estar comendo manteiga pura. Nunca tinha visto aquilo! Mas a fome era muita ainda. Pedi uma colher ao garçom e tomei o caldo do picles como se fosse sopa. Aí as carnes começaram a chegar. Tudo o que o garçom oferecia eu aceitava e comia. E comi, comi até non aguentar mais. Chega! Aí ele trouxe um carrinho com sobremesas diversas. Comi unas três!
 
Nesse ponto eu estava rolando de rir, principalmente por causa das “bolas de manteiga a palito”. Ele riu também e concluiu:
 
- Botelho, cheguei em casa, deitei-me na cama até passando mal, de tan estufada estava a barriga. Mas eu estava tan feliz!

4 comentários:

  1. HAHAHBAHAHA Esse Tomás parece ser muito gente boa, vocês perderam o contato?

    Isso me lembrou de uma história. No meu primeiro dia em uma obra nova lá em Goiânia eu conheci um carinha durante o processo de treinamento. Tinha umas 6 pessoas aguardando o técnico de segurança, pois ele era o responsável pelo treinamento, e a nossa espera foi longa. Uns dois estavam dormindo e o restante estava no celular, aí esse cara começou a puxar assunto comigo. Conversa vai, conversa vem e ele resolveu contar uma história sobre o último patrão dele:

    - Eu tava trabalhando em um barzinho quando eu ainda morava em Tocantins, você sabe, pião não para quieto. O problema é que fazia dois meses que eu não recebia meu salário, e o patrão só me enrolava. Acha que sou otário? Liguei pra ele e já falei que assim não tava dando, que ele tinha que me pagar até o fim do dia.

    Nesse momento eu pensei que isso fosse uma ameaça à vida do patrão, mas o que aconteceu foi ainda mais surpreendente, eu realmente não esperava por isso.

    - Eu era o responsável por abrir e fechar o bar e o patrão só ia lá de vez em quando. O dia passou e ele nem pisou os pés lá, foi aí que eu resolvi agir. Meu irmão, enchi o lugar de mulher, acabamos com as bebidas do patrão, chapei o coco, peguei todas as bebidas que eu conseguia carregar, enchi a mala e vazei fora. O patrão nunca mais ouviu falar de mim, e agora tô aqui, bora ver quanto tempo vai durar hahahahahahah.

    Ele contava essa história com um sorriso tão grande no rosto, como se tivesse se dado muito bem. Quando a história acabou todo mundo estava se mijando de rir, e ele (não me lembro o nome dele) estava contente como se tivesse recebido 4 salários do patrão, ao invés dos dois que ele não sentiu nem o cheiro.



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    1. Primeiro o comentário fundamental: sua história está tão boa e bem escrita que você precisa publicá-la no seu blog. Quanto ao Tomás, perdi totalmente o contato com ele há mais de 40 anos. Apenas sei que se casou com uma brassileira e que teria se mudado para o norte do país (ou talvez voltado para o Paraguai).

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    2. "sobrinho de bispo, irmão de freira e pai de padre. E hospedeiro do vigário de sua paróquia." Isso é sensacional. Mais até do que a manteiga a palito!

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    3. E eu omiti um detalhe: o padre morou em sua casa enquanto a igreja estava sendo construída, com a maior parte das despesas (cimento, etc.) bancadas por ele. Espero que ainda esteja vivo, pois era gente finíssima e de uma simplicidade absurda. Foram três anos de fantástica convivência (que eu troquei por salário maior em uma construtora onde só trabalhavam filhos da puta).

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