quinta-feira, 22 de setembro de 2022

CARTA DE DESISTÊNCIA - LEONARDO HABERKORN


 
Recebi este texto de um amigo que já foi diretor do colégio onde minha mulher lecionou, escreve poesias, é extremamente culto, gente finíssima, continua na área de educação (mas não sei em qual função), etc., etc. E virou meu amigo real apesar do pouquíssimo contato que temos. Pois bem, recebi dele este texto que dedico integralmente a meu amigo Azarão (ou Marreta), titularíssimo do blog A Marreta do Azarão. Olhai, Marreta.

 
O jornalista e acadêmico uruguaio Leonardo Haberkorn deixou o cargo de professor no Programa de Comunicação da Universidade ORT, em Montevidéu. Sua despedida foi um alerta para todos os educadores do mundo:
 
Depois de dezenas de anos lecionando, dei hoje a minha última aula nesta universidade. (...) Cansei de lutar contra os celulares, contra o WhatsApp e o Facebook. Eles me derrotaram, eu desisto, jogo a toalha. Cansei de falar de assuntos que me apaixonam diante de jovens que não conseguem tirar os olhos do celular e receber selfies.
 
É verdade que nem todos são assim. Mas há cada vez mais alunos desse tipo em todas as aulas. Até três ou quatro anos atrás, a proibição de usar o celular durante os noventa minutos de aula ainda surtia efeito — nem que fosse para que o aluno se sentisse culpado.
 
Isso acabou. Talvez seja eu... talvez eu tenha me desgastado e esteja cansado desse combate. Talvez até esteja errado. Uma coisa, porém, é certa: muitos desses jovens não têm consciência do quanto é ofensivo e prejudicial o que eles fazem. É cada vez mais difícil explicar como o jornalismo funciona para pessoas que não o consomem ou não veem sentido em se informar.
 
Esta semana na aula surgiu o tema da Venezuela. Só um aluno em vinte conseguiu explicar os fundamentos do problema. Só o básico, do resto ele não fazia a menor ideia. Perguntei se eles sabiam o nome do uruguaio que estava no meio da tempestade. Obviamente, nenhum deles sabia.
 
Perguntei-lhes se sabiam quem era o uruguaio Luis Almagro (secretário-geral da OEA). Silêncio. Por fim, do fundo da sala, uma jovem gaguejou: "Ele não é o Ministro das Relações Exteriores?"
 
 “O que está acontecendo na Síria?” Silêncio. (...)
 
“Qual partido é mais liberal, ou mais à esquerda nos Estados Unidos, os democratas ou os republicanos? Silêncio.
 
"Você sabe quem é Vargas Llosa?" Sim!
“Alguém aqui já leu um livro dele?" Ninguém.
 
Tentar conectar pessoas tão desinformadas com o básico do  jornalismo é complicado. É como ensinar botânica a alguém de um planeta onde não existe vida vegetal.
 
No exercício em que os alunos tiveram que sair para procurar uma notícia nas ruas, um deles voltou com esta notícia: “Jornais e revistas ainda são vendidos!” (...)
 
Existe um momento em que o jornalista funciona contra você. Porque você é treinado para se colocar no lugar de outras pessoas, cultiva a empatia como ferramenta básica de trabalho. Esses alunos ainda têm a mesma inteligência, simpatia e cordialidade de sempre, e a culpa dessa situação não é só deles. A falta de cultura, o desinteresse e a alienação não nascem por conta própria.
 
A curiosidade deles morreu aos poucos, a cada vez que um professor deixou de corrigir seus erros ortográficos. Aos poucos, lhes ensinaram que tudo tem mais ou menos o mesmo valor. E quando você percebe que eles também são vítimas, acaba baixando a guarda quase sem se dar conta.
 
Nesse momento o aluno mau é aprovado como mediano; o medíocre passa por bom; o aluno simplesmente bom, nas poucas vezes em que consegue uma boa nota, é celebrado como se fosse brilhante. Não quero mais fazer parte desse círculo perverso. Nunca fui assim e me recuso a ser.
 
Sempre gostei de fazer bem feito tudo que faço, com o melhor de minha capacidade. (...) Vejo rostos apáticos. Desinteresse. Um rapaz largado, olhando o Facebook. O ano inteiro foi igual. (...)
 
Silêncio. Silêncio. Silêncio. Nessas horas, o que eles mais queriam é que eu terminasse a aula.
 
Eu também.

6 comentários:

  1. Lendo o texto me veio à mente a voz unanime de todos os meus professores do Ensino Médio que repetidamente falavam sobre isso.
    Imagino o tamanho da frustração para quem leciona.

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    1. O Marreta é um exemplo disso.

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    2. Achei o máximo!!
      A "quarta década" me lembrou um pouco o ator Sam Elliott.

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  2. Respostas
    1. Você é muito mais novo e parece ser muito mais politizado que eu (talvez no bom e no mau sentido). Sinceramente falando, eu só ouço falar no Paulo Freire (bem ou mal), mas não faço a menor ideia do que fez ou deixou de fazer.

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  3. "Nesse momento o aluno mau é aprovado como mediano; o medíocre passa por bom; o aluno simplesmente bom, nas poucas vezes em que consegue uma boa nota, é celebrado como se fosse brilhante. Não quero mais fazer parte desse círculo perverso."
    Isso é perfeito. Ou melhor, retrata perfeitamente a tragédia que se instalou no ensino.
    Concordo integralmente com o autor, exceto, talvez, quando ele coloca o aluno como uma total vítima do processo. Se é que ele é vítima, ele é uma vítima bem feliz com a situação, uma vítima que se recusa em ser ajudada, em ser resgatada de seu cativeiro.
    Agora, se o que ele quis dizer foi que quando ele pega esse aluno, já no ensino superior, não há o que mais ser feito com ele, que o estrago já é irreversível, eu concordo. Eu, que os pego no ensino médio, vejo que já não há mais o que fazer. Reprová-los a essa altura já de nada valeria.
    Ainda hoje sai lá no Marreta uma postagem bem concernente a esse tema, uma postagem que, enfim, acaba sendo até engraçada. Um caso verídico, que aconteceu comigo hoje - tirei até foto pra provar.
    Reproduzirei esse texto também no Marreta.

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