A publicação de hoje é resultado da compilação dos quinze posts publicados em 2014 sobre os casos hilários relacionados a meu falecido amigo Pintão, acrescidos de mais três textos publicados em anos mais recentes, o último deles em 2018. Tinha pensado em migrar todos esses posts para 2021 tal como foram originalmente publicados, mas resolvi deixá-los "lá" e empacotar uma cópia de todos em um único e sui generis post - pois merece até música no Fantástico, graças às três introduções sucessivas (contando com esta). É atípico também pelo número de páginas em Word Arial 12 (muitas!).
Hoje em dia,
quando vejo que a intolerância e o rancor, independente de que lado do espectro
político ou espiritual em que as pessoas estejam, continuam tão presentes no Brasil
e em outros países, eu me lembro de uma pessoa a quem tive a sorte, a honra e o
prazer de conhecer, um humanista, um sujeito que celebrava a amizade e a tolerância
como dois dos grandes valores que sempre nortearam sua vida.
É à memória desse cara, o melhor amigo que já tive, que dedico os próximos posts que, reunidos, formam o texto original que escrevi sobre ele logo após sua morte. E foi muito bom remexer nessas lembranças, relembrar suas histórias. Todos os nomes e apelidos citados são fictícios e foram trocados para preservar a privacidade de quem participou dos casos contados. Ao todo, serão quinze os posts que tentam preservar as histórias contadas e vividas por uma pessoa absolutamente singular. Assim, esta semana e também a próxima serão dedicadas ao Digão, meu amigo queridíssimo. A um eventual leitor desse blog, eu sugiro que leia todos os quinze posts, pois trazem casos divertidos e histórias saborosas. Por isso, som na caixa:
Por absoluta falta
do que fazer e por já ter contado esses casos para muitas pessoas, resolvi escrevê-los,
como forma de passar o tempo enquanto o serviço não surgia. Descobri com isso que
o trabalho de escrever é muito cansativo e enfadonho, pois é cheio de faz e refaz,
correções ortográficas e coisas que me fazem pensar em monges da idade média, reclusos
em suas celas, com todo o tempo do mundo para refletir sobre suas vidas, enquanto
copiavam e ilustravam pacientemente textos antigos de outros povos e outras épocas.
Ou seja, um senhor programa de índio.
Depois que comecei a escrever, percebi que este texto, para mim, é uma forma de homenagear a memória de um amigo querido, ao registrar suas histórias e casos mirabolantes.
Falando francamente, alguns são tão insólitos que nunca saberei se realmente aconteceram tal como nos foram contados ou, até mesmo, se não são invencionices de um grande contador de casos. Os diálogos, mesmo que recriados, são o mais próximo possível do que consegui lembrar e tentam manter a mesma descontração com que foram proferidos.
É à memória desse cara, o melhor amigo que já tive, que dedico os próximos posts que, reunidos, formam o texto original que escrevi sobre ele logo após sua morte. E foi muito bom remexer nessas lembranças, relembrar suas histórias. Todos os nomes e apelidos citados são fictícios e foram trocados para preservar a privacidade de quem participou dos casos contados. Ao todo, serão quinze os posts que tentam preservar as histórias contadas e vividas por uma pessoa absolutamente singular. Assim, esta semana e também a próxima serão dedicadas ao Digão, meu amigo queridíssimo. A um eventual leitor desse blog, eu sugiro que leia todos os quinze posts, pois trazem casos divertidos e histórias saborosas. Por isso, som na caixa:
Depois que comecei a escrever, percebi que este texto, para mim, é uma forma de homenagear a memória de um amigo querido, ao registrar suas histórias e casos mirabolantes.
Falando francamente, alguns são tão insólitos que nunca saberei se realmente aconteceram tal como nos foram contados ou, até mesmo, se não são invencionices de um grande contador de casos. Os diálogos, mesmo que recriados, são o mais próximo possível do que consegui lembrar e tentam manter a mesma descontração com que foram proferidos.
O INÍCIO
Foi no início da década
de oitenta, talvez em 1980 ou 1981, que ouvi falar do Rodrigão, um sujeito que viria
a ser meu melhor amigo fora do ambiente familiar, apesar da grande diferença de
idade existente – uns trinta anos, talvez.
Trabalhávamos na mesma
sala eu e o Anísio, colega recém-transferido para a sede da empresa, vindo de uma
obra em Belo Horizonte. Com o passar do tempo, meu colega começou a falar sobre
o Rodrigo, a contar alguns casos, sempre rindo muito. Disse que esse sujeito era
tratado por alguns engenheiros pelo apelido "Digão" para diferenciá-lo
do filho Diguinho, que também trabalhava na empresa e tinha o mesmo nome do pai.
Esse “Digão” era cunhado
do presidente da empresa, pois sua primeira esposa, mãe do “Diguinho” e já falecida,
era irmã do dono. Assim, antes de conhecê-lo, já sabia que era apaixonado por livros,
que tinha cinco mil livros em casa, que era muito engraçado, etc.
Um belo dia entra em
nossa sala um senhor de cabelos grisalhos já quase integralmente brancos, de óculos,
vestindo o que me pareceu ser paletó de terno, mas sem gravata (o que acho feio
demais). Além de notar a calva que avançava em direção à nuca, pareceu-me ser estrábico.
Tinha também o nariz ligeiramente adunco, a pele seca, enrugada e meio avermelhada.
E era velho, bem mais velho que eu e meu colega, pois aparentava ter uns setenta
anos ou mais.
Ao ser apresentado
a ele pelo Anísio – “Olha aí, esse é o cara de quem falei”, reagi com a maior
efusão:
- Ah, você é
que é o famoso Digão?
A reação foi a mais
chocha e tímida possível, deixando-me constrangido e meio descrente das histórias
hilariantes que já tinha ouvido sobre ele. Naquele dia, entretanto, começava uma
amizade muito grande, um relacionamento quase diário, espontâneo, cordial e divertidíssimo,
que durou até o ano de 1994, quando saí da empresa.
Depois disso, embora
sempre caloroso, o contato ficou muito esporádico, feito através de ligações telefônicas
que geralmente partiam dele (“Venha me visitar antes que eu morra, pô!”).
Em 2007 eu e minha
mulher fizemos três visitas a ele, quando já o encontramos bem alquebrado. Morreu
em 2008, mas vira e mexe eu me lembro dele, de sua companhia agradabilíssima e de
seus casos mirabolantes. Como este:
O OLHO DE VIDRO
Um dia, pela manhã,
pouco tempo depois de já estar trabalhando conosco na mesma sala, ele não apareceu.
Perguntei ao Diguinho, que ainda era estagiário, onde estava seu pai.
– Ele foi trocar
o olho.
Não entendi nada, e
perguntei: – Foi trocar o óleo?
– Não, pô, foi
trocar o olho, olho de vidro, que gastou e está causando irritação na pálpebra.
Você não sabia que ele tem olho de vidro?
Depois do almoço, o
Digão – com um sorriso meio irônico e uma expressão que eu definiria como cara de
vaca – ficou nos olhando de sua mesa. Eu, meio constrangido, sorri sem jeito enquanto
notava que o cristalino da nova prótese parecia ligeiramente maior que o da anterior.
Ele não se conteve e disse:
– Vocês são
péssimos observadores!
Meu colega, mais debochado,
retruca: – "Que é que foi, 'Véio'?”
– Eu estou de
olho novo e vocês nem falam nada!
A partir daí, começamos
a conversar sobre a prótese e sobre o motivo da perda do olho, como se estivéssemos
comentando sobre outra pessoa ou conversando sobre futebol, tão à vontade ele nos
deixou.
Fiquei sabendo que
perdeu a visão aos quinze anos, ao levar um tiro de chumbinho de um amigo, que brincava
com uma espingarda de ar comprimido (–“Vou te dar um tiro!” – "Então dá,
pô!”). Esse tiro, segundo ele, acabou com o maior sonho de sua vida, que era
ser piloto de avião.
Depois do tiro, em
lugar de ser extraído todo o olho, foi colocada apenas uma capa no que restou do
globo ocular. Assim, os movimentos do olho cego foram preservados, causando no máximo
a impressão de que sofria de estrabismo.
Quando ficou viúvo,
os quatro filhos (três meninas e um menino) eram pequenos e ficavam durante o dia
aos cuidados da avó materna. À noite, ao voltar do serviço, ele os levava para casa.
Os meninos, como qualquer criança sadia, eram provavelmente, irrequietos, levados.
Como ficavam o dia todo longe do pai e sem a mãe para tomar conta, eles ficavam
em um “freje” danado, segundo suas palavras. Para manter os meninos quietos
enquanto tomava banho, tirava a prótese e a colocava sobra a mesa, com uma ameaça
do tipo:
- É bom não
fazer bagunça, pois eu estou vendo!
E os meninos ficavam
acuados, encolhidos talvez, olhando aquela coisa, aquele olhar congelado.
Segundo o Digão, essa
história maluca foi lembrada por uma das filhas vigiadas.
O CONTO DA MEMÓRIA
O Digão era muito culto
e um ótimo contador de casos, sempre dizia coisas interessantes e era particularmente
bom no que se conhece como “cultura inútil”. Nas conversas diárias sempre saía algum
assunto curioso, precedido pelo vocativo – “Aqui, você viu...?”. Quando o
assunto foi “memória”, gabou-se de ter uma excelente para números, sendo capaz de
lembrar com facilidade quinze ou mais algarismos. O Anísio ironizou – “Qualé,
Véio, você não lembra nem quando nasceu!..”
Seguiu-se uma animada
discussão sobre a forma utilizada por ele para guardar números – “É tudo uma
questão de ritmo”, disse, batendo ritmadamente a mão na mesa. Questionado sobre
isso, comentou que no início da humanidade, ainda na ausência de escrita, os ensinamentos
religiosos eram divulgados oralmente, de forma cantada e cadenciada, mais fácil
de memorizar. A explicação me pareceu fascinante, totalmente lógica e, claro, fruto
de uma grande cultura. Aí ele propôs um teste para demonstrar sua “incrível” memória..
– Escreve aí qualquer
número, que eu vou ler e memorizar, disse para o Anísio.
Condescendente, o Anísio
sugeriu que ele mesmo escrevesse os algarismos. Para empatar, ele foi ditando os
algarismos e o Anísio anotando. De vez em quando perguntava quantos já tinham sido
escritos. Quando chegou a vinte, parou. Olimpicamente, pegou o papel, leu-o por
alguns minutos e o devolveu para meu colega. Em seguida, batendo cadenciadamente
a mão na mesa, começou:
– 2 71 82 81
14 15 92 65 35 26 14
Meu colega, com um
sorriso irônico, comentou que o número estava correto.
– Eu posso guardar
esse número por, pelo menos, um mês, diz o Digão, exultante.
Encantado com esse
prodígio de memória peguei o papel e pedi que repetisse. E ele, satisfeito, repetiu
tudo sem errar: – “2 71 82”...
No dia seguinte, o
Anísio refez o teste e ele acertou na mosca. Aí eu comecei a fazer propaganda de
sua memória com os outros engenheiros. Uma semana depois, eu já contava esse feito
extraordinário para os gerentes. Um mês depois, eu contei para o diretor.
Ao ficar sabendo disso,
o Digão e o Anísio começaram a rir descontroladamente. Sem entender nada, perguntei
o que estava acontecendo:
– Isso é uma
brincadeira! Eu não tenho memória nenhuma. Esses números são o número e (base dos
logaritmos neperianos), seguido pelo número PI com 10 algarismos e mais o telefone
lá de casa, sem o prefixo.
– Filhos da
puta!!!!! Eu fiz a maior propaganda de sua memória, seu bosta! Agora, eu não acredito
em merda nenhuma que você contar.
E tome xingamentos
do otário aqui e tome risadas da parte dos cúmplices no conto da memória
A VACA VOADORA
Essa história é muito,
muito inverossímil, embora ele jurasse que aconteceu mesmo. Mas é uma das melhores
contadas por aquele velho maluco.
– Quando fomos
chegando perto, o fogo já foi melhorando.
Desistir naquela hora
seria a suprema humilhação, apesar de todo o risco de vida embutido na ideia maluca
de pular da ponte.
– Quando eu
olhei aquela água passando lá em baixo, eu pulei o guarda-corpo, agarrei-me à viga
da ponte e fiquei pendurado ali, até não mais aguentar, quando soltei as mãos.
Só conseguiu sair da
água uns três quilômetros rio abaixo.
– A partir daí,
foi um sucesso, cansei de ganhar apostas com os visitantes da obra. Para grande
alegria dos meus colegas de serviço, lógico.
A PAIXÃO POR LIVROS
O Digão tinha uma paixão
desmedida por livros. Para ele, um livro era muito mais que um objeto de leitura.
Era sempre o presente escolhido para dar a alguém, era sempre o presente desejado
no aniversário ou Natal. Os livros novos eram manuseados, cheirados, examinada a
textura e a gramatura das folhas. Eram, enfim, tratados quase como uma joia.
Quando perguntado sobre
a quantidade, sempre dizia que tinha uns cinco mil volumes. Esse número permaneceu
estável ao longo do tempo, não só por não tê-los mais contado, como, segundo ele,
pela frequente subtração de romances cometida pelas filhas do primeiro casamento,
fato compensado pela aquisição permanente de novos livros. Além dos livros, encadernava
também as revistas que comprava – National Geographic, Scientific American, Veja
(desde o primeiro número, se não me engano). O mesmo fazia com jornais especiais
que já haviam saído de circulação, caso do jornal Opinião e até de um jornal
do século XIX.
Aos sábados ia à Livraria
Van Damme, onde era amigo do proprietário. Durante a semana, diariamente ou quase
isso, ia à Livraria Ouvidor que ficava a um quarteirão de distância da empresa onde
trabalhávamos. Ali folheava livros e revistas importadas, encomendava e comprava
compulsivamente, a ponto de ter conseguido com o gerente a comodidade de pagar após
o recebimento do salário. Comprava “na caderneta”, como ainda se faz em alguns armazéns
de bairro. Como comprava muito e sobre qualquer assunto, útil ou inútil, às vezes
comprava o mesmo livro duas vezes. Se pudesse devolver ou trocar por outro, ótimo.
Se não, presenteava os amigos com os duplicados. Ganhei uns dois livros dele dessa
forma.
Um dia chegou entusiasmado
com um prospecto sobre a nova edição da Enciclopédia Britânica. Falou maravilhas
e disse que estava pensando em comprar. Como eu sabia que já possuía outras enciclopédias,
perguntei-lhe o que iria fazer com uma enciclopédia nova, se já não tinha mais filhos
em idade escolar e, principalmente, se já possuía uma edição anterior.
– Vocês são
uns ignorantes – irritou-se ele. – vocês acham que enciclopédia é
só para fazer trabalho escolar de menino? Além do mais, ela foi totalmente reprogramada
e ampliada, é outra enciclopédia!
– Porque você
então não se desfaz da edição antiga? – perguntei a ele.
Algum tempo depois,
chega ele todo sorridente:
– Comprei a
Britânica. É uma beleza!
– E a outra,
vendeu?
– Não, resolvi
ficar com as duas, pois são muito diferentes...
– Animal!!!!
Noutro dia, chegou
ao serviço com um livro grande, novinho, pedindo-nos para escrever uma dedicatória
para ele mesmo. Perguntei o que pretendia com isso:
– Esse livro
custou caro pra burro e, se eu chegar com ele lá em casa, a Dona Maria vai reclamar
que estou gastando muito.
A dedicatória saiu
mais ou menos assim: “Ao prezado Rodrigo, com a amizade de...” e vinham os
nomes assinados de uns três colegas.
Quando mostrou para
a esposa o “presente” que havia ganhado, ouviu o comentário irônico:
– É, seus colegas
devem gostar muito mesmo de você, estão sempre te dando livros de presente sem nenhum
motivo!
De outra vez, chegou
com um livro comprado em um sebo, que era na verdade um catálogo de equipamentos
e artefatos hospitalares. Disse que iria dar de presente para um dos irmãos, que
estava fazendo aniversário. O catálogo era bacana mesmo, em inglês, publicado por
volta de 1910, capa dura, os desenhos feitos a bico de pena, folhas em papel couchê
brilhante, uma beleza. Ficamos olhando os desenhos e as ferramentas bizarras ali
oferecidas: fórceps, carrinhos para transportar cadáveres, ferramentas para amputação
e coisas do gênero. Alguns dias depois perguntei se o irmão havia gostado do presente:
– Eu não dei
o livro, fiquei com ele para mim e comprei outro para ele.
Antes de aposentar-se,
morava em uma casa no bairro Serra. Essa casa tinha um cômodo totalmente ocupado
por livros e estantes, igual a uma biblioteca. Havia também livros espalhados por
outros aposentos, tal a quantidade. Um dia comentou que havia mandado instalar umas
prateleiras, presas com corrente, sobre a cabeceira da cama dos dois filhos homens
que moravam com ele. Começamos a caçoar, dizendo que ele tinha feito uma armadilha
para se livrar dos filhos “delinquentes”. Quando uma das duas filhas do segundo
casamento resolveu morar com a avó, o Digão não perdeu tempo: imediatamente instalou
estantes no quarto desocupado.
Além dos livros comprados
em duplicata por engano, ganhei dele outros livros, sempre com dedicatória. Um catecismo
católico atualizado, um livro sobre música clássica e um sobre a presença de cristãos-novos
no Brasil.
Segundo ele, por volta
de 1500 e poucos, os judeus de Portugal foram obrigados a converter-se ao cristianismo,
na marra. Após a “conversão”, foram batizados e tiveram os sobrenomes mudados para
nomes de animais e plantas, criaturas de Deus. Surgiram aí os Pereira, Figueira,
Pinto, Coelho, Laranjeira, etc. A designação “cristão-novo” foi utilizada para diferenciar
dos cristãos originais, cristãos-velhos, portanto. Muitos desses judeus “convertidos”
vieram para o Brasil, fugindo da Inquisição, etc. Tempos depois dessa aula dada
por ele, ganhei o tal livro, com a seguinte dedicatória: “Ao amigo ..., um cristão-novo
da melhor categoria”.
Tendo ficado em São
Paulo por quase um mês, voltou com uns dez ou mais livros, sobre os mais diversos
assuntos, cada um mais inútil que o outro. Entre os títulos havia coisas como: “Perfil
Geológico da Serra do Mar no trecho tal”, “Conheça o interior de sua calculadora
científica”; “A economia do Rio de Janeiro no Século XVIII”, as coisas mais estapafúrdias
ou inúteis.
– Para que serve
essa merda? – perguntei. A resposta foi a habitual:
– Você é um
ignorante! Olha só que troço joia esse livro sobre circuitos de televisão!
– É, só se for
usado para calçar uma mesa ou cadeira manca!
E ele se ria, divertido.
O VOO CEGO
Quando foi trabalhar
no sul do país, na construção de uma outra ponte, mudou-se para lá com toda a família.
Ali ficou sabendo que uma senhora estava vendendo o monomotor do marido, já falecido.
Graças à sua paixão por aviões, resolveu comprá-lo, em sociedade com outro funcionário
da obra.
Já sabia pilotar aviões
– apesar do olho cego – desde a obra onde aconteceu o caso da vaca (– “Aprendi
a voar antes de aprender a decolar”).
Para utilizar o avião,
mandou fazer uma pista de terra próxima à casa onde morava. A cabeceira da pista
ficava logo após uma linha de alta tensão, o que o obrigava a uma aterrissagem rápida
após a passagem sobre os fios. E o mecânico do avião era o mesmo que dava manutenção
no trator de esteiras...
– Altamente especializado
– disse rindo.
Segundo sua explicação,
o centro de gravidade desse modelo, quando o piloto está voando sozinho, fica no
segundo banco, que contém os mesmos comandos da frente do avião. Caso contrário,
o peso do motor mais o peso do piloto inclinam o avião para a frente, sei lá com
que consequências. Com duas pessoas, o problema deixa de existir, pela melhor distribuição
de peso.
No caso dele, por ser
cego de um olho, pilotar sozinho, sentado no banco de trás, era impossível. Para
resolver o problema, utilizava um saco de cimento colocado no banco de trás, ou
levava junto o Diguinho. Ao passar em voos rasantes sobre a casa, o Xulipa (que
era como chamava o filho) acenava freneticamente, com o corpo meio para fora da
janela:
– Hei, mãe!!!
Por duvidar dessa loucura,
perguntei ao Diguinho se a história era verdadeira e ele confirmou, rindo.
Um domingo pela manhã,
com “céu de brigadeiro”, para testar os limites do avião, resolveu subir até onde
a potência do motor conseguisse superar o ar cada vez mais rarefeito.. E foi subindo
em espiral, até onde o avião aguentou.
Ao verificar a altitude – no olho, pois o avião não tinha altímetro funcionando – resolveu descer, também em espiral – “fazendo belíssimas voltas” enquanto apreciava a paisagem.
Olhando para sua casa,
notou que havia se formado um pequeno ajuntamento de gente na porta. Em seguida,
viu o carro de sua mulher sair em disparada, na direção da pista de pouso. Sem entender
nada, continuou descendo, sempre na espiral.
Ao chegar à altitude
adequada, endireitando o avião para o pouso, em linha reta com a pista, a cabine
foi invadida por uma fumaça preta. Foi a conta de desviar da linha de alta tensão,
mergulhar o avião e descer correndo, tão logo o calhambeque aéreo parou. Mas nada
explodiu ou se incendiou. A fumaça foi diminuindo e acabou.
Explicação: o parafuso
de drenagem do óleo do motor estava meio bambo, fazendo com que o óleo, pela ação
do movimento de descida, deslocamento de ar e tal, fosse “cair” sobre a superfície
quente do motor, queimando-se e provocando a fumaceira preta, que saía pela tangente
e para cima e ia ficando sempre fora de sua visão, principalmente por sair do lado
do olho cego, até ele alinhar o avião com a pista.
– Foi o fim
da picada! – disse rindo – Depois disso, Dona Maria me fez vender
o avião...
ESCATOLOGIA
O Digão era um sujeito
curioso, pois sendo um pai severíssimo, ao tratar com os colegas, transmutava-se,
tornava-se tão igual aos demais, que ninguém ligava para a diferença de idade existente
entre ele e nós outros. Assim, às vezes os assuntos descambavam para a mais pura
escatologia, como se dois ou mais pré-adolescentes estivessem conversando.
Um dia comentou conosco
que tinha sido operado de hemorroidas, contou alguns detalhes da operação e disse
que um procedimento pós-operatório era o “alargamento do ânus”, para que
a cicatrização fosse realizada adequadamente, evitando com isso o estreitamento
do reto. Mas no caso dele, esclareceu, não foi feito esse “tratamento de choque”:
– O dedo do médico
era da grossura do meu punho, pô!!
Ao verificar a altitude – no olho, pois o avião não tinha altímetro funcionando – resolveu descer, também em espiral – “fazendo belíssimas voltas” enquanto apreciava a paisagem.
Depois de ser designado chefe do setor de projetos, mudou-se para o outro extremo do prédio, no mesmo andar, onde ficavam os desenhistas e projetistas, mas ia todo dia conversar fiado na antiga sala. Normalmente, chamava a atenção com a expressão –“Aqui, vocês já viram...” Na falta momentânea de assunto, saiu um dia esse diálogo:
O caso a seguir é um dos que classifico como fantasioso e de gosto mais que duvidoso, diga-se. Entretanto, o que mais impressiona nele é o fato de ter sido contado sem nenhuma preocupação de parecer ridículo, para um grupo de colegas que riram até a barriga doer, por um senhor de cabelos brancos, educadíssimo, muito culto, um cavalheiro, enfim. Em outras palavras, ele sempre fez questão de se comportar como qualquer um de nós, nunca quis ser tratado com a deferência e respeito a que tinha direito e merecia. E era essa simplicidade e sabedoria que faziam dele o grande sujeito que realmente era e de quem todos gostavam. Mas vamos à história, tão “suja” quanto sanitário de posto de gasolina:
Muitas e muitas vezes fui à sua sala, onde conversávamos sobre Religião, sobre religiões, Deus e fé, onde expunha minhas dúvidas e ele me acalmava com sua fé serena e profunda. Por conta dessas conversas, emprestou-me um livro interessantíssimo sobre o Santo Sudário, escrito por um médico legista francês, cujo título é A Paixão de Cristo segundo o Cirurgião.
Os desenhos originais
estavam escritos em alemão, com a indicação de vários cortes (schnitt). E
o alemão começou a contá-los na nossa frente, para conferir:
– eins, zwei, drei,
vier... E o Digão emenda: – fünf, sechs, sieben, acht…
O alemão, que aparentava
idade próxima à de meu amigo, um senhor, portanto, surpreende-se.
– O senhorrr fala
alemáo? – pergunta encantado.
– Não, só sei contar
até dez – responde o Anta.
Começamos a rir depois que o Canetão saiu.
– Animal, você forneceu
pro alemão a prova definitiva que o Brasil não é um país sério, sua Anta!!!
BATATEIRO
Embora fosse um leitor
voraz e muito culto, o Digão era muito “batateiro”, como ele mesmo dizia. Um dia
comentou que era um “previlégio” alguma coisa e repetiu. Caímos de pau nele:
– Olha o animal!
O cara é analfabeto!
Rindo, ele confessou
que nunca soube que a palavra era “pri” e não "pre”.
Em uma consulta médica
de rotina, o médico perguntou como estava a vida sexual. E o Digão:
– O meu
líbido está joia.
E o médico: – Porque
a sua libido...
E o Digão, de novo:
– Porque o meu líbido...
Contando-nos da nova
“batata”, brincou:
– O som das proparoxítonas
é mais erúdito...
NO TRÂNSITO
Devido à falta de um
olho, dirigir para ele era um pouco mais complicado. Assim, às vezes, cometia alguma
barbeiragem. Ao assustar alguém que queria atravessar, ouviu o comentário:
– Cuidado aí, vovô!
Tendo um gênio mais
impaciente e, mesmo sem razão, emendou:
– Vovô, não, pois
eu comi foi sua mãe, não sua avó, seu filho da puta!
Quando os filhos ainda
eram crianças, entrando com o carro na Getúlio Vargas, encontrou pela frente uma
senhora que andava no meio das duas pistas. Tentou passar por um lado, mas a mulher
encostou justamente para a mesma pista; tentou ultrapassar pela outra pista, mas
a mulher, de novo, encostou para o mesmo lado. E foram assim oscilando, até que,
já exasperado, conseguiu emparelhar com ela:
O filho que estava com ele e era ainda pequeno,
explodiu: –“Reage, pai, reage, pai!!!”
– Como é que eu
podia reagir? Eu estava desse tamanhinho – Contou, juntando o polegar ao indicador.
CIRURGIA DE CORAÇÃO
Com um estilo de vida
sedentário e tendo fumado por uns cinquenta anos pelo menos, começou a ter uns piripaques
de vez em quando. O amigo e cardiologista de confiança pediu uma cineangiocoronariografia.
Levou o resultado do
exame para o escritório e, rindo meio sem graça, comentou ao nos mostrar, que era
sua certidão de óbito. Ao olhar os resultados, que indicavam “obstrução
de 87% na artéria x”, 100% de obstrução na artéria y”, 92% de obstrução na artéria
z”, começamos a rir irresponsavelmente, dizendo coisas como – “O 'Véio' tá
morto!”, – “Esqueceram de te enterrar!”. E ele meio enfurecido:
– Vocês são uns
cretinos!
A cirurgia de ponte
safena foi realizada e fomos visitá-lo no hospital, Tempos depois, comentou que
“tinha morrido” duas ou três vezes durante a cirurgia, pois seu coração tivera que
ser reanimado depois de algumas paradas cardíacas. Contou também que escondeu um
cigarro aceso na mão enquanto era levado para o bloco cirúrgico, um local rico em
oxigênio, bom para o combate às bactérias, mas também propício à combustão. Ao levar
o cigarro à boca, foi flagrado por uma enfermeira:
– Olha esse filho
da puta fumando aqui!!!!!!
Convalescente, comentou
com o cardiologista que estava muito ansioso e perguntou se não podia fumar um pouco.
O médico, sabedor de seu vício antigo, comentou que não deveria mais fumar. Entretanto,
diante das argumentações, concordou que ele fumasse “um ou dois cigarros por
dia”. Imediatamente, o consumo passou de dois para quatro e assim, sucessivamente,
até ser flagrado pelo amigo, na rua, com um maço no bolso da camisa:
– O que é isso,
Rodrigo? Você está fumando assim?
– Não! Este maço
é só para reforçar minha força de vontade.
– Hã, sei...
Só parou mesmo de fumar
anos depois, depois de se aposentar e depois de sofrer dois infartos. Mas, aí, já
era tarde.
A HOMENAGEM
Creio que essa foi
a última história maluca em que o Digão se envolveu. E sou testemunha de
sua veracidade, pois estive com as provas na mão, na penúltima vez que nos encontramos,
em seu sítio.
Como já foi dito, ele
trabalhou na construção da Ponte Rio Niterói, em seu início. Segundo ele, depois
que todos os problemas técnicos decorrentes da magnitude da obra já tinham sido
solucionados e com a obra já iniciada, o general-presidente da época destituiu o
primeiro consórcio, onde ele trabalhava, para entregar a um novo grupo de empresas
(as mesmas que, vira e mexe, aparecem citadas em alguma reportagem sobre obras faraônicas
ou com suspeita de super-faturamento).
Em 2005, o Clube de
Engenharia do Rio de Janeiro realizou uma solenidade comemorativa dos 30 anos da
inauguração da ponte, momento em que foram homenageados os engenheiros que trabalharam
em sua construção.
O Digão recebeu uma
carta ou algo parecido, convidando-o para a cerimônia. Por já estar com a saúde
frágil, pediu a um amigo, ex-colega de consórcio, que o representasse. Depois de
algum tempo, recebe a visita do amigo, que lhe entrega a placa comemorativa, onde
constavam os seguintes dizeres:
“AO ENGENHEIRO
RODRIGO ... UMA HOMENAGEM PÓSTUMA”...
Diante disso, enviou
uma carta ao presidente do Clube de Engenharia, dizendo que estava comovido e muito
honrado com a homenagem, Entretanto, “apesar das evidências em contrário”,
continuava ainda respirando.
Recebeu de volta uma
carta com milhões de pedidos de desculpas pelo equívoco e com a explicação do engano:
normalmente nessas situações, quando alguém é representado por outra pessoa, é sinal
de que o homenageado já faleceu. E junto com a carta, outra placa.
Quando me contou isso
por telefone, eu ri demais e comentei que sua esposa, Dona Maria, uma senhora simpaticíssima,
poderia dizer após sua morte:
– “Meu marido era
tão querido que foi homenageado DUAS vezes"!
Ficamos fazendo troça
disso, e me lembro de uma de suas expressões prediletas:
– É o fim da picada!
Quando fui visitá-lo,
mostrou-me as duas placas e rimos de novo, comentando que sua homenagem tinha saído
mais em conta, pois foram duas homenagens pelo preço de uma.
A PRIMEIRA VISITA
Depois que eu saí da
empresa onde trabalhávamos e ele se aposentou, fiquei mais de dez anos sem vê-lo
e sem nenhum outro tipo de contato. Como gostava muito dele, um dia resolvi ligar,
mas seu nome não constava mais na lista telefônica. Assim, liguei para o Xulipa,
que me deu o telefone e informou que ele havia mudado para o sítio. Xulipa era o
nome utilizado pelo Digão para designar o Diguinho, seu filho. De posse do novo
número, liguei para ele, que teve a previsível reação de impaciência:
– Alô, quem está
falando?
– QUER FALAR COM
QUEM?
– Quero falar com
o Hans, um velho filho da puta!
– Quem tá falando?
É O Botelho? Ô menino, que alegria! Achei que você tinha morrido ou mudado para
Três Marias, pois você sumiu!
Hans era um apelido
que criei para ele a partir de um trocadilho infame, pois vivíamos ironizando sua
idade, chamando-o de “Véio”. Um dia, quando o chamei de Hans, reagiu:
– Porque Hans? Pelo
meu perfil ariano?
– Não, pô! Hans
, de Hans-cião.
– Vá à puta que
o pariu!
Depois desse telefonema,
quando insistiu para que eu fosse visitá-lo, às vezes eu ligava para ele, às vezes
era ele que fazia isso, mas de forma muito esporádica. A minha mulher, super carinhosa, mandava
cartões de Natal, mesmo sem conhecê-lo pessoalmente.
Um dia ele ligou, dizendo
que estava com saudades e que eu precisava visitá-lo, pois não saía mais de casa.
– Vem me visitar,
pô! Eu não demoro muito mais não. Tirei uma radiografia onde apareceram umas manchas
no pulmão, o médico olhou com cara muito feia, mas eu não quis nem saber o que é,
pois na idade em que estou, não pretendo ser operado.
Depois de ser transferido
para um novo setor, onde passei a fazer inspeções trimestrais em unidades da região
metropolitana, resolvi visitá-lo, instado por minha mulher, que achava um absurdo
o fato de eu não procurar um amigo tão querido e tão lembrado.
Chegando ao sítio,
apropriadamente chamado de Sítio das Flores, fomos recebidos por ele e por sua esposa,
Dona Maria, uma senhora elétrica, irrequieta e simpaticíssima.
Ao ser apresentada
a ele, minha mulher fez um comentário surpreendente e muito feliz, em virtude das
muitas histórias que já tinha ouvido a seu respeito:
– Hoje eu estou
conhecendo um mito!
Depois das apresentações
de praxe, a Dona Maria já foi logo sequestrando minha mulher para mostrar a ela
o sítio e deixando-me a conversar com o Digão.
Descobri que sua esposa
ficava o dia inteiro mexendo no sítio, só voltando para almoçar ou ao anoitecer,
ora plantando, ora podando, cuidando da criação, supervisionando a construção de
um pequeno açude (“para criar peixe”), uma azáfama sem fim. De tal sorte que, quando
alguém da família ligava procurando por ela, ele dizia em tom de piada:
– Está lá no pasto,
está pastando.
Graças a essa faina
incansável da Dona Maria, o sítio era um lugar lindo, encantador, com a frente toda
gramada e cheia de flores. Além da casa original, pequena, o sítio tinha também
um galpão de madeira, transformado inicialmente em sala de lazer e jogos, logo após
a compra do imóvel.
O galpão era uma construção
simples (originalmente erguido em caráter provisório), mas confortável pois, além
do salão, tinha dois quartos e um banheiro. Por ter sido o local naturalmente escolhido
para abrigar os cinco mil livros que tinha, organizados em estantes de aço como
em uma biblioteca, acabou se transformando na moradia real do Digão, que ali passava
o dia todo, lendo ou assistindo televisão. Por problemas de ronco (provavelmente
dos dois), cada um ocupava um dos quartos.
No galpão propriamente
dito, além das estantes repletas de livros e publicações, ficava uma mesa ou escrivaninha,
local predileto de leitura, um jogo de sofás, televisão, geladeira, vários objetos
de decoração e um cilindro grande de oxigênio, dotado de máscara, usado cada vez
com mais frequência pelo Digão, em virtude de seu enfisema ou coisa parecida. Quando
nos despedimos, reiterou a alegria causada por nossa visita, insistindo para que
voltássemos outra vez.
O ÚLTIMO ENCONTRO
Creio que a última
vez em que minha mulher e eu visitamos o Digão foi em julho de 2007. Eu aproveitava
minhas idas a serviço em cidades próximas à sua propriedade, para visitá-lo. Graças
a isso, fomos três vezes ao seu sítio.
Quando chegamos, notei
que estava bem mais abatido e alquebrado que da última vez em que tínhamos estado
com ele. Vestia uma camisa de lã e usava um boné do tipo “Chaves”, que tampava suas
orelhas.
Quando cheguei perto
dele para abraçá-lo, pegou meu rosto com as duas mãos, dizendo:
– Que alegria revê-los!
Informou que Dona Maria
havia saído “para fazer hidroginástica” numa cidade próxima, que não demoraria.
Sentamo-nos para conversar e, enquanto ficamos ali, não mais que uma hora, ele utilizou
a máscara de oxigênio uma ou duas vezes. Quando anunciamos que já estávamos de saída,
reclamou:
– Está cedo, a Maria
já deve estar chegando!
Insistimos que já estava
tarde, qualquer coisa do gênero e nos levantamos. Pediu-me então ajuda para poder
levantar-se e, em seguida, utilizou novamente a máscara de oxigênio. Despedimo-nos
afetuosamente dele, prometendo voltar em breve e saímos, deixando-o de pé na porta,
sorridente.
O final do ano chegou,
tirei férias em janeiro e programei mentalmente minha ida às cidades da sua região
depois que passasse o período chuvoso, pois o acesso ao seu sítio era feito por
uma estradinha de terra.
Um domingo à noite,
lendo o jornal, vi um aviso de falecimento, comunicando que o enterro de Rodrigo
... seria naquele dia, a tal hora, em tal cemitério. Minha primeira reação foi de
surpresa, por existir um sujeito com o mesmo nome do meu amigo. Em seguida, lendo
o anúncio com mais atenção, pude ver a referência à “esposa, filhos, genros,
noras e netos”. Aí é que eu me dei conta de que meu amigo tinha morrido.
Para confirmar, liguei
na segunda feira para o sítio. Quem atendeu foi seu filho Fábio, que confirmou o
falecimento. Disse que estava ali fazendo companhia à sua mãe, até que as coisas
se ajeitassem. Perguntei a causa da morte e ele me disse que tinha sido câncer no
pulmão, fato que a família desconhecia até a internação de seu pai, uma semana antes
de morrer.
Não me lembro porque
deixei de ir à missa de sétimo dia. Talvez estas lembranças me redimam dessa descortesia
com o amigo. (Julho/2008)
MAIS
UMA HISTÓRIA DO DIGÃO - A ONÇA
Na época em
que escrevi os quinze textos originais sobre meu amigo Pintão (ou “Digão”, o apelido
falso que usei para contar seus casos mirabolantes), talvez tenha achado boba ou
irrelevante essa lembrança, mas, hoje, passado tanto tempo, seu finalzinho faz valer
a pena contá-la, principalmente pelos pontos em comum com o texto recente em que
eu lembrava as histórias inventadas por meu pai, de tão boa aceitação.
Antes, um comentário:
como eu consigo lembrar bobagens como essa, de forma quase fotográfica? A resposta
eu mesmo encontrei muito tempo atrás: eu guardo tudo o que é inútil e esqueço tudo
o que realmente importa. Isso é literalmente a verdade! Além disso, minha memória
principal é mais visual que tudo, pois lembro-me até da posição e expressões da
pessoa com quem conversei. Mas nunca consigo guardar nomes (não é mesmo, Renato?).
Agora, chega de enrolação.
Não sei mais por qual
motivo meu querido amigo contou esse caso. Na época, seu filho Du, era estagiário
de engenharia na empresa onde trabalhávamos. E é com ele ainda criança que surgiu
o caso da onça.
O Pintão disse que
estava contando histórias para seu(s?) filho(s?) quando resolveu inventar uma caçada
de onça. Com cinco ou seis anos, o Du logo se empolgou. A partir de agora, vou tentar
reproduzir a descrição do “Digão" para seu filho, tal como nos contou.
- Eu estava
na floresta caçando, quando apareceu na minha frente uma onça. Eu peguei a espingarda,
mirei e... "pá"!
- Matou ela!
- Não, a espingarda
falhou. Ela veio para cima de mim. Peguei então um pedaço de pau e bati na cabeça
dela!... mas o pau quebrou.
(O Du foi ficando inquieto
com aquela situação, mas o pai continuou, veemente).
- Aí eu peguei
minha faca e enfiei nela!
- Ela morreu?
- Não... a faca
entortou!
- E o que você
fez???
(Nesse momento da história,
com o Du preocupadíssimo e de olhos arregalados, o Pintão comentou conosco que não
sabia mais o que inventar. Só não podia reproduzir a piada, dizendo que a onça o
teria comido. E saiu o fecho “empolgante”):
- Quando ela
pulou em mim, eu a agarrei pelo pescoço e nós rolamos pelo chão, mas dei uma gravata
com tanta força que ela acabou morrendo sem ar. Então eu peguei a onça pelo rabo,
rodei, rodei e joguei ela lá longe!
(a reação empolgadíssima
do filho pequeno foi hilária):
- EITA PAI FEDAPUTA!!!!!
Nesse ponto, meu amigo
encerrou a historinha com um comentário bem a seu estilo. Rindo, disse:
- Acho que foi
o maior elogio que recebi na minha vida!
FESTA NA COLÔNIA
Graças a uma casualidade
própria das redes do Facebook, acabei fazendo contato com um dos genros do meu saudoso
amigo Luis Felipe Pintão. Mandei para ele o link do primeiro dos quinze posts dedicado
a seu sogro e parece que gostou. Mas “desafiou-me” a lembrar de mais casos. O maior
problema é que já se passaram mais de vinte anos desde o tempo em que trabalhávamos
na mesma empresa. As lembranças vão ficando esmaecidas, desbotadas, borradas como
uma folha de papel impressa a jato de tinta e que foi respingada com água. Dá para
lembrar de alguma coisa, mas muitos trechos ficam “ilegíveis”.
Apesar dessa limitação,
fiquei com isso na cabeça e acabei por me lembrar de um caso em que o protagonista
não foi meu amigo, mas um de seus irmãos (aparentemente, tão aloprados quanto ele).
A história é a seguinte:
Um de seus irmãos foi
comandante de navio da marinha mercante. Nas idas e vindas pelos mares e portos
do mundo, conheceu uma alemã, com quem se casou. Creio que fixou residência no sul
do país, em cidade com forte presença de alemães e, obviamente, de seus descendentes.
Muito bem.
Um dia, foi a uma festa
de aniversário de um dos ilustres membros da colônia local, um alemão já bem velhinho.
Segundo meu amigo Pintão, depois de devidamente calibrado, seu irmão resolveu fazer
um discurso em homenagem ao aniversariante. Nenhum problema haveria nisso, não fosse
o fato do discurso ter sido feito em “alemão” e que o orador não soubesse porra
nenhuma dessa língua.
Já chapado, começou
seu discurso com um entusiasmo que só aumentava, gesticulando de forma teatral e
dizendo coisas desse tipo (lembrando-me do Pintão a imitar os gestos e o discurso,
peguei um texto em alemão e saí trocando letras, só para dar a sensação de um discurso
inacreditavelmente sem noção):
Mein fichndicht dor
wort dichetrch ichn ranichr lotanicichn form thichodircich ichrrtmolr ichm einsbein
ichm r päprtlichchichn nenticher???
Mein enichrt ollichrdichngr bichr hichetich, ob marlene dietrich toträchlichch da rprochich dichr wolkichr ichn dichetrchhroem) gichmant wor???
As aftas ardem e doem wichnichg dichetlichchichr wichrd das wichrbichndeng zem lond dichr dichetrchichn ichrrt zwa johrich rpätichr...
Fohnichnflecht an andichetichgichr bichlichg bichratr anich wondleng won eichnsbeichn ichn zu dichetrchich prochich wollzogichn sprach wor deutsche leben!!! Obrigado!
Segundo o Pintão, seu
mano foi entusiasticamente aplaudido (já devia estar todo mundo bêbado mesmo!).
O homenageado aproximou-se com os olhos lacrimejantes e agradeceu:
- “Fiquei muito
comovido e emocionado com suas palavras, mas confesso que não entendi nada do que
o senhor disse. Imagino que deve ter falado em um dialeto que desconheço”.
- “Claro, claro”,
teria sido a provável resposta do brother, capaz de fazer coisas tão sem noção quanto
meu amigo Pintão.
PINTÃO EM GOTAS
Logo no início deste
blog, publiquei uma série de quinze posts sobre meu amigo e colega Pintão. Esses
textos foram escritos ainda antes da criação do Blogson, pois em toda reunião ou
festa de família eu contava os mirabolantes casos acontecidos ou inventados por
ele, fazendo as pessoas rolar de rir com suas maluquices. Por isso, para que não
fossem apagados da memória com o passar do tempo, resolvi escrevê-los. Depois, com
algum esforço, fui me lembrando de frases e casos “twitter” do meu amigo.
Essas lembranças foram sendo pulverizadas no blog ao longo do tempo. Recentemente,
descobri no Facebook um retrato desse amigo. Aí surgiu a ideia de reunir em um único
post o retrato e as lembranças esparsas desse “ex-parça” (gostou, Marreta?).
Bora lá.
ANIVERSÁRIO
Meu amigo ficou viúvo muito moço. Um dia, provavelmente conversando sobre nossa descrença no espiritismo e afins, ele contou um caso ocorrido quando já estava casado novamente (com uma senhora simpaticíssima). Como era um autêntico bibliófilo, converteu um dos cômodos da casa em biblioteca, onde ficavam expostos e organizados em prateleiras metálicas seus amados livros (mais de cinco mil). Provavelmente, um lugar onde passava a maior parte de suas horas de folga.
Era dia de seu aniversário e ele estava sentado nessa biblioteca quando, sem nenhuma explicação plausível (rajada de vento, netos ou filhos brincando de esconde-esconde, ratos ou gatos, tremor de terra, etc.), um livro caiu da estante. Levantou-se, apanhou o livro para recolocá-lo no lugar quando viu que era um livro dado a ele de presente de aniversário por sua primeira esposa. E tinha uma dedicatória que era algo assim: “para o meu amado (ou ‘querido’) Luiz Felipe, etc.”. Surpreso com a coincidência, teria murmurado “Obrigado, Silvinha”.
E ficamos ali, pensando sobre os mistérios e coincidências do mundo. Esse caso, tão delicado e íntimo, eu preferi nunca registrar, pois era muito, muito pessoal. Hoje, passados tantos anos desde seu falecimento, achei que seria mais uma oportunidade para homenagear sua lembrança e de mantê-lo “vivo”.
CAFETÃO
Um dia, eu e minha mulher fomos a um evento de produtores de café gourmet. Muitos stands ofereciam degustação de seu produto. Sem açúcar! Comecei a me sentir um bronco no meio daqueles "cafetões" (pessoas que vivem às custas do café, entendeu?), a sentir orgulho da minha própria ignorância "cafeeira" Em que lugar da história ficaram os bebedores de café adoçado? Até comentei com um ou dois expositores que estava me sentindo um muçulmano entre cristãos, pois o café que eu bebo diariamente leva açúcar (ou adoçante). Pude notar a expressão de horror em um deles, fazendo-me temer ser escorraçado da feira como herege e até a tomar um banho de água benta (fácil de acontecer, pois bastaria abençoar a chuva que caía sem parar).
Para suavizar, contei a receita de café ensinada por meu falecido amigo Pintão.
Segundo ele, em um daqueles cafés do Rio de Janeiro do final do século XIX ou início do século XX, lia-se pintada na parede azulejada a seguinte frase, atribuída a um Barão de sei lá o quê, do tempo do império: "O café deve ser negro como a noite, quente como o inferno e doce como o amor". Nem esse lirismo todo abalou a rígida convicção do cafetão!
CERTIDÃO DE NASCIMENTO
Quando nasceu a primeira filha do segundo casamento, o Pintão estava trabalhando no norte do país. Por isso, quem providenciou o registro da criança foi o sogro. Quando pôde vir a Belo Horizonte, perguntou ao sogro qual era o nome da criança. O sogro disse que era "Fulana de tal Melo Pinto...". Decepcionado com o mau gosto daquela melada no pinto, reclamou com o sogro:
- "Com efeito, Sr. (nome do sogro), 'Fulana de Tal Melo Pinto'"?
O sogro, provavelmente sem graça, perguntou com toda a ingenuidade:
- "Você não gostou de 'Fulana de tal'?
O mal já estava feito.
FODA DE PORCO
Um dia, a propósito de algum famoso que tinha fama de pegador, comentou:
- “Dizem que esse cara faz muito sucesso com as mulheres. Parece que ele tem tesão de galo, pau de jumento e foda de porco”.
Alguém perguntou o que significava essa "foda de porco" e ele explicou:
- “Você nunca viu porco trepando? É o fim da picada! Demora pra danar. Ele sobe em cima da porca e fica lá, fuçando. Sei lá, acho que fica cansado e dá até uma cochilada, mas sem sair de cima. Aí acorda e continua. Coisa de louco!”
SACER LOCUS
Esse caso é mais uma das lembranças twitter do meu amigo Pintão. Mesmo sendo extremamente católico, não era carola; mas, às vezes, diante das tijoladas pornográficas que alguém dizia, reagia com um ar de fingida seriedade, dizendo uma frase em "latim", que traduzia em seguida:
- "Sacer locus, puer, extra mijit"! ou "O lugar é sagrado, menino, vá mijar lá fora"!
Isso me fez lembrar de uma piadinha que meu amigo Pintão gostava de repetir:
- “Os quatro cavaleiros do Apocalipse são três, Esaú e Jacó”.
JAMES!
Um dia, estávamos conversando fiado – como sempre – quando eu disse a meu amigo alguma coisa como "a gente precisa..." (não sei como é em outros lugares, mas em BH, pelo menos, é comum usar-se a expressão "a gente" como sinônimo de "nós"). Com uma falsa impaciência, meu amigo retrucou:
- “A gente, não. Você precisa! Fui claro, James?”
Diante do comentário, perguntei o que significava o "James" na história. E ele explicou:
- “É como aquela história do nobre inglês e seu mordomo. Um dia, pela manhã, o mordomo entra no quarto do patrão, abre as cortinas e diz: - ‘Parece que teremos um belo dia hoje, milord’. Ao que o nobre responde – ‘Errado, James. Eu terei o meu belo dia e você terá o seu belo dia!".
NERO
Um dia, comentando sobre Nero, disse que o imperador romano era um incompreendido. Afinal, só tinha mandado assassinar a mãe, o meio irmão, um porrilhão de cristãos e incendiar Roma enquanto tocava harpa, etc.
Rindo, dizia que era tudo intriga histórica, e que antes do incêndio, Roma era uma grande favela, com vielas mal cheirosas e barracos construídos de forma precária. E que Nero demonstrou ser um grande urbanista, pois traçou largas avenidas e belos palácios na área destruída. E lembrou a lenda a respeito de sua morte, quando, ao ser apunhalado teria dito a frase “que grande artista o mundo vai perder!”.
PRESENTE
Um dia, sem nenhum motivo ou data especial, meu amigo “Digão” deu-me de presente o livro “Máximas e Mínimas do Barão de Itararé”, com a seguinte dedicatória:
“Para o amigo Botelho oferece um de seus mais humildes escravos. 07/04/87"
O motivo do presente foi um comentário feito por ele durante uma de nossas conversas sobre esse falso barão, pois eu nunca tinha ouvido falar de Apparício Torelly, “Aporelly” ou “Barão de Itararé”, nomes que identificam um jornalista gaúcho nascido em 1895, que tinha a manha do humor inteligente, feito de frases engraçadíssimas, textos precisos e trocadilhos de fazer inveja ao pessoal do Casseta e Planeta. Aliás, foi realmente dono do jornal “A Manha”, criado em 1926, onde fazia de tudo. Detalhe: o nome era (mais) um trocadilho com o nome do jornal "Correio da Manhã", onde havia trabalhado.
UFANISMO
Meu amigo Pintão era muito bom em cultura inútil. A diferença é que sua cultura inútil era um pouco mais "culta", pois frequentemente baseada em curiosidades literárias. Um dia mencionou a existência de um livro escrito por um "nobre" brasileiro, que tinha esse título: "Porque me ufano de meu país". E ironizou esse “ufanismo” ao contar que o livro tinha como subtítulo a frase (em inglês!) "right or wrong, my country". Por causa dessa idiotice, a palavra “ufanismo” passou a ser relacionada a sentimentos de patriotismo exacerbado, “acrítico, ingênuo, incondicional". Convenhamos, esse livro “precisava” ser reeditado, pois combina bem com o estilo dos dias atuais!
RETRATO
Graças ao onipresente Facebook, recentemente encontrei um retrato do meu amigo, com seu olho de vidro e cara de vaca (quase dava marchinha de carnaval!). Com essa imagem, creio ter agora esgotado todas as lembranças do melhor amigo que tive. Olha ele aí:
Mein enichrt ollichrdichngr bichr hichetich, ob marlene dietrich toträchlichch da rprochich dichr wolkichr ichn dichetrchhroem) gichmant wor???
As aftas ardem e doem wichnichg dichetlichchichr wichrd das wichrbichndeng zem lond dichr dichetrchichn ichrrt zwa johrich rpätichr...
Fohnichnflecht an andichetichgichr bichlichg bichratr anich wondleng won eichnsbeichn ichn zu dichetrchich prochich wollzogichn sprach wor deutsche leben!!! Obrigado!
Meu amigo ficou viúvo muito moço. Um dia, provavelmente conversando sobre nossa descrença no espiritismo e afins, ele contou um caso ocorrido quando já estava casado novamente (com uma senhora simpaticíssima). Como era um autêntico bibliófilo, converteu um dos cômodos da casa em biblioteca, onde ficavam expostos e organizados em prateleiras metálicas seus amados livros (mais de cinco mil). Provavelmente, um lugar onde passava a maior parte de suas horas de folga.
Era dia de seu aniversário e ele estava sentado nessa biblioteca quando, sem nenhuma explicação plausível (rajada de vento, netos ou filhos brincando de esconde-esconde, ratos ou gatos, tremor de terra, etc.), um livro caiu da estante. Levantou-se, apanhou o livro para recolocá-lo no lugar quando viu que era um livro dado a ele de presente de aniversário por sua primeira esposa. E tinha uma dedicatória que era algo assim: “para o meu amado (ou ‘querido’) Luiz Felipe, etc.”. Surpreso com a coincidência, teria murmurado “Obrigado, Silvinha”.
E ficamos ali, pensando sobre os mistérios e coincidências do mundo. Esse caso, tão delicado e íntimo, eu preferi nunca registrar, pois era muito, muito pessoal. Hoje, passados tantos anos desde seu falecimento, achei que seria mais uma oportunidade para homenagear sua lembrança e de mantê-lo “vivo”.
Um dia, eu e minha mulher fomos a um evento de produtores de café gourmet. Muitos stands ofereciam degustação de seu produto. Sem açúcar! Comecei a me sentir um bronco no meio daqueles "cafetões" (pessoas que vivem às custas do café, entendeu?), a sentir orgulho da minha própria ignorância "cafeeira" Em que lugar da história ficaram os bebedores de café adoçado? Até comentei com um ou dois expositores que estava me sentindo um muçulmano entre cristãos, pois o café que eu bebo diariamente leva açúcar (ou adoçante). Pude notar a expressão de horror em um deles, fazendo-me temer ser escorraçado da feira como herege e até a tomar um banho de água benta (fácil de acontecer, pois bastaria abençoar a chuva que caía sem parar).
Para suavizar, contei a receita de café ensinada por meu falecido amigo Pintão.
Segundo ele, em um daqueles cafés do Rio de Janeiro do final do século XIX ou início do século XX, lia-se pintada na parede azulejada a seguinte frase, atribuída a um Barão de sei lá o quê, do tempo do império: "O café deve ser negro como a noite, quente como o inferno e doce como o amor". Nem esse lirismo todo abalou a rígida convicção do cafetão!
Quando nasceu a primeira filha do segundo casamento, o Pintão estava trabalhando no norte do país. Por isso, quem providenciou o registro da criança foi o sogro. Quando pôde vir a Belo Horizonte, perguntou ao sogro qual era o nome da criança. O sogro disse que era "Fulana de tal Melo Pinto...". Decepcionado com o mau gosto daquela melada no pinto, reclamou com o sogro:
- "Com efeito, Sr. (nome do sogro), 'Fulana de Tal Melo Pinto'"?
O sogro, provavelmente sem graça, perguntou com toda a ingenuidade:
- "Você não gostou de 'Fulana de tal'?
O mal já estava feito.
Um dia, a propósito de algum famoso que tinha fama de pegador, comentou:
- “Dizem que esse cara faz muito sucesso com as mulheres. Parece que ele tem tesão de galo, pau de jumento e foda de porco”.
Alguém perguntou o que significava essa "foda de porco" e ele explicou:
- “Você nunca viu porco trepando? É o fim da picada! Demora pra danar. Ele sobe em cima da porca e fica lá, fuçando. Sei lá, acho que fica cansado e dá até uma cochilada, mas sem sair de cima. Aí acorda e continua. Coisa de louco!”
Esse caso é mais uma das lembranças twitter do meu amigo Pintão. Mesmo sendo extremamente católico, não era carola; mas, às vezes, diante das tijoladas pornográficas que alguém dizia, reagia com um ar de fingida seriedade, dizendo uma frase em "latim", que traduzia em seguida:
- "Sacer locus, puer, extra mijit"! ou "O lugar é sagrado, menino, vá mijar lá fora"!
Isso me fez lembrar de uma piadinha que meu amigo Pintão gostava de repetir:
- “Os quatro cavaleiros do Apocalipse são três, Esaú e Jacó”.
Um dia, estávamos conversando fiado – como sempre – quando eu disse a meu amigo alguma coisa como "a gente precisa..." (não sei como é em outros lugares, mas em BH, pelo menos, é comum usar-se a expressão "a gente" como sinônimo de "nós"). Com uma falsa impaciência, meu amigo retrucou:
- “A gente, não. Você precisa! Fui claro, James?”
Diante do comentário, perguntei o que significava o "James" na história. E ele explicou:
- “É como aquela história do nobre inglês e seu mordomo. Um dia, pela manhã, o mordomo entra no quarto do patrão, abre as cortinas e diz: - ‘Parece que teremos um belo dia hoje, milord’. Ao que o nobre responde – ‘Errado, James. Eu terei o meu belo dia e você terá o seu belo dia!".
Um dia, comentando sobre Nero, disse que o imperador romano era um incompreendido. Afinal, só tinha mandado assassinar a mãe, o meio irmão, um porrilhão de cristãos e incendiar Roma enquanto tocava harpa, etc.
Rindo, dizia que era tudo intriga histórica, e que antes do incêndio, Roma era uma grande favela, com vielas mal cheirosas e barracos construídos de forma precária. E que Nero demonstrou ser um grande urbanista, pois traçou largas avenidas e belos palácios na área destruída. E lembrou a lenda a respeito de sua morte, quando, ao ser apunhalado teria dito a frase “que grande artista o mundo vai perder!”.
Um dia, sem nenhum motivo ou data especial, meu amigo “Digão” deu-me de presente o livro “Máximas e Mínimas do Barão de Itararé”, com a seguinte dedicatória:
“Para o amigo Botelho oferece um de seus mais humildes escravos. 07/04/87"
O motivo do presente foi um comentário feito por ele durante uma de nossas conversas sobre esse falso barão, pois eu nunca tinha ouvido falar de Apparício Torelly, “Aporelly” ou “Barão de Itararé”, nomes que identificam um jornalista gaúcho nascido em 1895, que tinha a manha do humor inteligente, feito de frases engraçadíssimas, textos precisos e trocadilhos de fazer inveja ao pessoal do Casseta e Planeta. Aliás, foi realmente dono do jornal “A Manha”, criado em 1926, onde fazia de tudo. Detalhe: o nome era (mais) um trocadilho com o nome do jornal "Correio da Manhã", onde havia trabalhado.
Meu amigo Pintão era muito bom em cultura inútil. A diferença é que sua cultura inútil era um pouco mais "culta", pois frequentemente baseada em curiosidades literárias. Um dia mencionou a existência de um livro escrito por um "nobre" brasileiro, que tinha esse título: "Porque me ufano de meu país". E ironizou esse “ufanismo” ao contar que o livro tinha como subtítulo a frase (em inglês!) "right or wrong, my country". Por causa dessa idiotice, a palavra “ufanismo” passou a ser relacionada a sentimentos de patriotismo exacerbado, “acrítico, ingênuo, incondicional". Convenhamos, esse livro “precisava” ser reeditado, pois combina bem com o estilo dos dias atuais!
Graças ao onipresente Facebook, recentemente encontrei um retrato do meu amigo, com seu olho de vidro e cara de vaca (quase dava marchinha de carnaval!). Com essa imagem, creio ter agora esgotado todas as lembranças do melhor amigo que tive. Olha ele aí:
Sou fã de Fernando Sabino, já li vários livros.
ResponderExcluirÉ muito bom ver como ele retratou Minas na sua infância...
Li apenas dois, o manjadíssimo "O encontro marcado" e o "O menino no espelho" (de que gostei mais). Reparou que a maioria dos seus títulos começa com um artigo definido ("O", "A")?
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