segunda-feira, 8 de março de 2021

HISTÓRIAS DO PINTÃO - VERSÃO REVISTA

 
A publicação de hoje é resultado da compilação dos quinze posts publicados em 2014 sobre os casos hilários relacionados a meu falecido amigo Pintão, acrescidos de mais três textos publicados em anos mais recentes, o último deles em 2018. Tinha pensado em migrar todos esses posts para 2021 tal como foram originalmente publicados, mas resolvi deixá-los "lá" e empacotar uma cópia de todos em um único e sui generis post - pois merece até música no Fantástico, graças às três introduções sucessivas (contando com esta). É atípico também pelo número de páginas em Word Arial 12 (muitas!).


Hoje em dia, quando vejo que a intolerância e o rancor, independente de que lado do espectro político ou espiritual em que as pessoas estejam, continuam tão presentes no Brasil e em outros países, eu me lembro de uma pessoa a quem tive a sorte, a honra e o prazer de conhecer, um humanista, um sujeito que celebrava a amizade e a tolerância como dois dos grandes valores que sempre nortearam sua vida.
É à memória desse cara, o melhor amigo que já tive, que dedico os próximos posts que, reunidos, formam o texto original que escrevi sobre ele logo após sua morte. E foi muito bom remexer nessas lembranças, relembrar suas histórias. Todos os nomes e apelidos citados são fictícios e foram trocados para preservar a privacidade de quem participou dos casos contados. Ao todo, serão quinze os posts que tentam preservar as histórias contadas e vividas por uma pessoa absolutamente singular. Assim, esta semana e também a próxima serão dedicadas ao Digão, meu amigo queridíssimo. A um eventual leitor desse blog, eu sugiro que leia todos os quinze posts, pois trazem casos divertidos e histórias saborosas. Por isso, som na caixa:
 
 
Por absoluta falta do que fazer e por já ter contado esses casos para muitas pessoas, resolvi escrevê-los, como forma de passar o tempo enquanto o serviço não surgia. Descobri com isso que o trabalho de escrever é muito cansativo e enfadonho, pois é cheio de faz e refaz, correções ortográficas e coisas que me fazem pensar em monges da idade média, reclusos em suas celas, com todo o tempo do mundo para refletir sobre suas vidas, enquanto copiavam e ilustravam pacientemente textos antigos de outros povos e outras épocas. Ou seja, um senhor programa de índio.
Depois que comecei a escrever, percebi que este texto, para mim, é uma forma de homenagear a memória de um amigo querido, ao registrar suas histórias e casos mirabolantes.
Falando francamente, alguns são tão insólitos que nunca saberei se realmente aconteceram tal como nos foram contados ou, até mesmo, se não são invencionices de um grande contador de casos. Os diálogos, mesmo que recriados, são o mais próximo possível do que consegui lembrar e tentam manter a mesma descontração com que foram proferidos.
 

O INÍCIO
 
Foi no início da década de oitenta, talvez em 1980 ou 1981, que ouvi falar do Rodrigão, um sujeito que viria a ser meu melhor amigo fora do ambiente familiar, apesar da grande diferença de idade existente – uns trinta anos, talvez. 
Trabalhávamos na mesma sala eu e o Anísio, colega recém-transferido para a sede da empresa, vindo de uma obra em Belo Horizonte. Com o passar do tempo, meu colega começou a falar sobre o Rodrigo, a contar alguns casos, sempre rindo muito. Disse que esse sujeito era tratado por alguns engenheiros pelo apelido "Digão" para diferenciá-lo do filho Diguinho, que também trabalhava na empresa e tinha o mesmo nome do pai. 
Esse “Digão” era cunhado do presidente da empresa, pois sua primeira esposa, mãe do “Diguinho” e já falecida, era irmã do dono. Assim, antes de conhecê-lo, já sabia que era apaixonado por livros, que tinha cinco mil livros em casa, que era muito engraçado, etc. 
Um belo dia entra em nossa sala um senhor de cabelos grisalhos já quase integralmente brancos, de óculos, vestindo o que me pareceu ser paletó de terno, mas sem gravata (o que acho feio demais). Além de notar a calva que avançava em direção à nuca, pareceu-me ser estrábico. Tinha também o nariz ligeiramente adunco, a pele seca, enrugada e meio avermelhada. E era velho, bem mais velho que eu e meu colega, pois aparentava ter uns setenta anos ou mais. 
Ao ser apresentado a ele pelo Anísio – “Olha aí, esse é o cara de quem falei”, reagi com a maior efusão: 
- Ah, você é que é o famoso Digão? 
A reação foi a mais chocha e tímida possível, deixando-me constrangido e meio descrente das histórias hilariantes que já tinha ouvido sobre ele. Naquele dia, entretanto, começava uma amizade muito grande, um relacionamento quase diário, espontâneo, cordial e divertidíssimo, que durou até o ano de 1994, quando saí da empresa. 
Depois disso, embora sempre caloroso, o contato ficou muito esporádico, feito através de ligações telefônicas que geralmente partiam dele (“Venha me visitar antes que eu morra, pô!”).
 
Em 2007 eu e minha mulher fizemos três visitas a ele, quando já o encontramos bem alquebrado. Morreu em 2008, mas vira e mexe eu me lembro dele, de sua companhia agradabilíssima e de seus casos mirabolantes. Como este:
 
 
O OLHO DE VIDRO

Um dia, pela manhã, pouco tempo depois de já estar trabalhando conosco na mesma sala, ele não apareceu. Perguntei ao Diguinho, que ainda era estagiário, onde estava seu pai. 
– Ele foi trocar o olho. 
Não entendi nada, e perguntei: – Foi trocar o óleo? 
– Não, pô, foi trocar o olho, olho de vidro, que gastou e está causando irritação na pálpebra. Você não sabia que ele tem olho de vidro?
 
Depois do almoço, o Digão – com um sorriso meio irônico e uma expressão que eu definiria como cara de vaca – ficou nos olhando de sua mesa. Eu, meio constrangido, sorri sem jeito enquanto notava que o cristalino da nova prótese parecia ligeiramente maior que o da anterior. Ele não se conteve e disse: 
– Vocês são péssimos observadores!
Meu colega, mais debochado, retruca: – "Que é que foi, 'Véio'?” 
– Eu estou de olho novo e vocês nem falam nada!
 
A partir daí, começamos a conversar sobre a prótese e sobre o motivo da perda do olho, como se estivéssemos comentando sobre outra pessoa ou conversando sobre futebol, tão à vontade ele nos deixou. 
Fiquei sabendo que perdeu a visão aos quinze anos, ao levar um tiro de chumbinho de um amigo, que brincava com uma espingarda de ar comprimido (–“Vou te dar um tiro!” – "Então dá, pô!”). Esse tiro, segundo ele, acabou com o maior sonho de sua vida, que era ser piloto de avião. 
Depois do tiro, em lugar de ser extraído todo o olho, foi colocada apenas uma capa no que restou do globo ocular. Assim, os movimentos do olho cego foram preservados, causando no máximo a impressão de que sofria de estrabismo.
 
Quando ficou viúvo, os quatro filhos (três meninas e um menino) eram pequenos e ficavam durante o dia aos cuidados da avó materna. À noite, ao voltar do serviço, ele os levava para casa. Os meninos, como qualquer criança sadia, eram provavelmente, irrequietos, levados. Como ficavam o dia todo longe do pai e sem a mãe para tomar conta, eles ficavam em um “freje” danado, segundo suas palavras. Para manter os meninos quietos enquanto tomava banho, tirava a prótese e a colocava sobra a mesa, com uma ameaça do tipo: 
- É bom não fazer bagunça, pois eu estou vendo! 
E os meninos ficavam acuados, encolhidos talvez, olhando aquela coisa, aquele olhar congelado. 
Segundo o Digão, essa história maluca foi lembrada por uma das filhas vigiadas.
 
 
O CONTO DA MEMÓRIA
 
O Digão era muito culto e um ótimo contador de casos, sempre dizia coisas interessantes e era particularmente bom no que se conhece como “cultura inútil”. Nas conversas diárias sempre saía algum assunto curioso, precedido pelo vocativo – “Aqui, você viu...?”. Quando o assunto foi “memória”, gabou-se de ter uma excelente para números, sendo capaz de lembrar com facilidade quinze ou mais algarismos. O Anísio ironizou – “Qualé, Véio, você não lembra nem quando nasceu!..”
 
Seguiu-se uma animada discussão sobre a forma utilizada por ele para guardar números – “É tudo uma questão de ritmo”, disse, batendo ritmadamente a mão na mesa. Questionado sobre isso, comentou que no início da humanidade, ainda na ausência de escrita, os ensinamentos religiosos eram divulgados oralmente, de forma cantada e cadenciada, mais fácil de memorizar. A explicação me pareceu fascinante, totalmente lógica e, claro, fruto de uma grande cultura. Aí ele propôs um teste para demonstrar sua “incrível” memória..
Escreve aí qualquer número, que eu vou ler e memorizar, disse para o Anísio.
 
Condescendente, o Anísio sugeriu que ele mesmo escrevesse os algarismos. Para empatar, ele foi ditando os algarismos e o Anísio anotando. De vez em quando perguntava quantos já tinham sido escritos. Quando chegou a vinte, parou. Olimpicamente, pegou o papel, leu-o por alguns minutos e o devolveu para meu colega. Em seguida, batendo cadenciadamente a mão na mesa, começou: 
– 2 71 82 81 14 15 92 65 35 26 14 

Meu colega, com um sorriso irônico, comentou que o número estava correto. 
Eu posso guardar esse número por, pelo menos, um mês, diz o Digão, exultante. 
Encantado com esse prodígio de memória peguei o papel e pedi que repetisse. E ele, satisfeito, repetiu tudo sem errar: – “2 71 82”...
 
No dia seguinte, o Anísio refez o teste e ele acertou na mosca. Aí eu comecei a fazer propaganda de sua memória com os outros engenheiros. Uma semana depois, eu já contava esse feito extraordinário para os gerentes. Um mês depois, eu contei para o diretor. 

Ao ficar sabendo disso, o Digão e o Anísio começaram a rir descontroladamente. Sem entender nada, perguntei o que estava acontecendo: 
– Isso é uma brincadeira! Eu não tenho memória nenhuma. Esses números são o número e (base dos logaritmos neperianos), seguido pelo número PI com 10 algarismos e mais o telefone lá de casa, sem o prefixo. 
– Filhos da puta!!!!! Eu fiz a maior propaganda de sua memória, seu bosta! Agora, eu não acredito em merda nenhuma que você contar. 
E tome xingamentos do otário aqui e tome risadas da parte dos cúmplices no conto da memória
 

A VACA VOADORA
 
Essa história é muito, muito inverossímil, embora ele jurasse que aconteceu mesmo. Mas é uma das melhores contadas por aquele velho maluco.

O Digão trabalhou em obras durante muitos anos, a maior parte do tempo fora das capitais. Uma dessas obras foi a construção de um trecho de estrada no norte do Brasil, bem no meio da selva, ligando, se não me engano, Porto Velho a Rio Branco.
 
Segundo ele, o acesso inicial ao local era feito de barco. Os equipamentos pesados, provavelmente transportados por balsa, abriram uma clareira na floresta, que logo deu lugar a uma pista de pouso. A empresa tinha um avião DC-3 ou Constelation, adaptado para o transporte de carga. Assim, a porta se abria para dentro do avião, sabe lá Deus por qual motivo. O piloto, meio aloprado, havia sido demitido de uma das companhias da época (Panair, Real ou outra qualquer).
 
A obra transcorria dentro da normalidade, exceto por um detalhe: a carne servida aos operários era necessariamente salgada, charque. Depois de um tempo, começaram as reclamações, pois ninguém mais aguentava comer todo dia essa carne.
 
A primeira solução encontrada foi contratar um caçador que, apesar de estarem na selva, só conseguia trazer macacos, cobras, coisas assim. Segundo o Digão, um macaco limpo (sem os pelos, sei lá), lembra muito uma criança recém nascida. Já viu que devia ser uma maravilha de se preparar ou comer, não é?
 
O fato é que o abastecimento de carne era um problema real. Surgiu então a ideia de comprar algumas cabeças de gado, deixadas em Rio Branco ou Porto Velho. Na medida da necessidade, os bois eram abatidos e a carne levada para a obra no DC-3. Entretanto, devido a algum problema, às vezes o voo atrasava. Assim, quando a carne chegava ao local da obra era jogada fora, pois já estava esverdeada e cheirando mal, provavelmente devido ao calor e falta de refrigeração.
 
Aí, surgiu a solução definitiva: levar o boi vivo para a obra. Para isso, o boi era colocado em um cercado improvisado, feito com uma espécie de rede usada para prender a carga dentro do avião. Chegando à obra, o boi era abatido, esquartejado, desossado e tudo o mais que é necessário para um cristão poder comer carne fresca.
 
Pela paixão que tinha por aviões, quase todas as vezes que havia voo para buscar alguma coisa, o Digão ia junto. Segundo ele, foi assim, nessas viagens e graças ao piloto aloprado, que aprendeu a pilotar o DC-3, sem, no entanto, decolar ou aterrissar.
 
Em uma dessas aconteceu o caso da vaca. A viagem transcorria normalmente, com a vaca presa na rede, até que apareceu um “CB”, um cumulus nimbus, que é uma nuvem com intensa turbulência interna segundo meu amigo.
 
O piloto ainda tentou contornar a nuvem, mas o avião começou a balançar muito. Com isso, a vaca começou a ficar agitada e tentando se desvencilhar da rede que a prendia. O piloto começou a dar ordens: 
– Acalma essa vaca! 
E o avião chacoalhando e a vaca cada vez mais agitada. E o piloto ainda mais agitado: 
– Acalma essa vaca aí, pô!!
 
Os poucos passageiros tentavam acalmar o animal, mas a situação estava realmente preta, com grande risco para todos. Decidiram que a vaca deveria ser jogada para fora do avião. 
O fato é que utilizaram a tal rede para fazer um corredor até a porta do avião (que abria para dentro, como já dito antes). Uns puxavam, outros empurravam e a vaca foi chegando perto da porta. E o piloto, já possesso: 
– Joga essa vaca pra fora!!! 
E eles lá, tentando: 
– Vai, neguinha, vai!!! 
Mas a vaca empacou perto da porta, provavelmente assustada com o barulho do vento e do avião. Tentaram empurrar, mas nada. E o piloto, já histérico: 
– JOGA ESSA VACA PRA FOORA!!!!!!!
 
Aí, alguém teve a ideia salvadora: tirou um punhal ou peixeira e espetou na bunda da vaca que, mugindo de dor, saltou, melhor dizendo, voou pela porta afora. Nesse ponto, enquanto literalmente chorávamos de rir com a história, o Digão emendou, a título de gozação: 
– Não sei se é verdade, mas dizem que até hoje tem lá uma tribo que adora uma vaca que caiu do céu.
 
 
A PONTE
 
Além da experiência rodoviária, o Digão trabalhou também na construção de pontes, inclusive fazendo parte da equipe que iniciou as obras da Ponte Rio - Niterói. O caso a seguir relaciona-se com outra ponte, de menor porte.
 
As fundações de alguns dos pilares da tal ponte ficavam localizadas dentro do rio. Para a execução dessas fundações foram feitos aterros provisórios, que avançavam para dentro da água, permitindo assim o acesso de máquinas e a construção das bases e estacas em terreno mais seco. Com isso, o rio ficava mais estrangulado e a água, consequentemente, passava com maior velocidade no local. Foi também construída uma ponte metálica de serviço, provisória, para facilitar o acesso de uma à outra margem.
 
Devido à distância da obra em relação às cidades mais próximas, os engenheiros e todo o resto continuavam acampados nos finais de semana, sem ter muita coisa a fazer, a não ser encher a cara. 
O Digão foi um ótimo nadador em sua juventude, tendo como rival nas piscinas o Fernando Sabino. Um dia, já de cara cheia, apostou uma caixa de cerveja que saltaria da ponte provisória. Naquele salta não salta, pegaram o carro e dirigiram-se ao local da ponte, ele e vários outros, entre apostadores e curiosos. 

– Quando fomos chegando perto, o fogo já foi melhorando. 
Desistir naquela hora seria a suprema humilhação, apesar de todo o risco de vida embutido na ideia maluca de pular da ponte. 
– Quando eu olhei aquela água passando lá em baixo, eu pulei o guarda-corpo, agarrei-me à viga da ponte e fiquei pendurado ali, até não mais aguentar, quando soltei as mãos. 
Só conseguiu sair da água uns três quilômetros rio abaixo. 
– A partir daí, foi um sucesso, cansei de ganhar apostas com os visitantes da obra. Para grande alegria dos meus colegas de serviço, lógico.
 
 
A PAIXÃO POR LIVROS
 
O Digão tinha uma paixão desmedida por livros. Para ele, um livro era muito mais que um objeto de leitura. Era sempre o presente escolhido para dar a alguém, era sempre o presente desejado no aniversário ou Natal. Os livros novos eram manuseados, cheirados, examinada a textura e a gramatura das folhas. Eram, enfim, tratados quase como uma joia.
 
Quando perguntado sobre a quantidade, sempre dizia que tinha uns cinco mil volumes. Esse número permaneceu estável ao longo do tempo, não só por não tê-los mais contado, como, segundo ele, pela frequente subtração de romances cometida pelas filhas do primeiro casamento, fato compensado pela aquisição permanente de novos livros. Além dos livros, encadernava também as revistas que comprava – National Geographic, Scientific American, Veja (desde o primeiro número, se não me engano). O mesmo fazia com jornais especiais que já haviam saído de circulação, caso do jornal Opinião e até de um jornal do século XIX.
 
Aos sábados ia à Livraria Van Damme, onde era amigo do proprietário. Durante a semana, diariamente ou quase isso, ia à Livraria Ouvidor que ficava a um quarteirão de distância da empresa onde trabalhávamos. Ali folheava livros e revistas importadas, encomendava e comprava compulsivamente, a ponto de ter conseguido com o gerente a comodidade de pagar após o recebimento do salário. Comprava “na caderneta”, como ainda se faz em alguns armazéns de bairro. Como comprava muito e sobre qualquer assunto, útil ou inútil, às vezes comprava o mesmo livro duas vezes. Se pudesse devolver ou trocar por outro, ótimo. Se não, presenteava os amigos com os duplicados. Ganhei uns dois livros dele dessa forma.
 
Um dia chegou entusiasmado com um prospecto sobre a nova edição da Enciclopédia Britânica. Falou maravilhas e disse que estava pensando em comprar. Como eu sabia que já possuía outras enciclopédias, perguntei-lhe o que iria fazer com uma enciclopédia nova, se já não tinha mais filhos em idade escolar e, principalmente, se já possuía uma edição anterior.
– Vocês são uns ignorantes – irritou-se ele. – vocês acham que enciclopédia é só para fazer trabalho escolar de menino? Além do mais, ela foi totalmente reprogramada e ampliada, é outra enciclopédia!
– Porque você então não se desfaz da edição antiga? – perguntei a ele.
 
Algum tempo depois, chega ele todo sorridente: 
– Comprei a Britânica. É uma beleza! 
– E a outra, vendeu? 
– Não, resolvi ficar com as duas, pois são muito diferentes... 
– Animal!!!!
 
 
Noutro dia, chegou ao serviço com um livro grande, novinho, pedindo-nos para escrever uma dedicatória para ele mesmo. Perguntei o que pretendia com isso: 
– Esse livro custou caro pra burro e, se eu chegar com ele lá em casa, a Dona Maria vai reclamar que estou gastando muito.
 
A dedicatória saiu mais ou menos assim: “Ao prezado Rodrigo, com a amizade de...” e vinham os nomes assinados de uns três colegas. 
Quando mostrou para a esposa o “presente” que havia ganhado, ouviu o comentário irônico: 
– É, seus colegas devem gostar muito mesmo de você, estão sempre te dando livros de presente sem nenhum motivo!
 
 
De outra vez, chegou com um livro comprado em um sebo, que era na verdade um catálogo de equipamentos e artefatos hospitalares. Disse que iria dar de presente para um dos irmãos, que estava fazendo aniversário. O catálogo era bacana mesmo, em inglês, publicado por volta de 1910, capa dura, os desenhos feitos a bico de pena, folhas em papel couchê brilhante, uma beleza. Ficamos olhando os desenhos e as ferramentas bizarras ali oferecidas: fórceps, carrinhos para transportar cadáveres, ferramentas para amputação e coisas do gênero. Alguns dias depois perguntei se o irmão havia gostado do presente: 
– Eu não dei o livro, fiquei com ele para mim e comprei outro para ele.
 
 
Antes de aposentar-se, morava em uma casa no bairro Serra. Essa casa tinha um cômodo totalmente ocupado por livros e estantes, igual a uma biblioteca. Havia também livros espalhados por outros aposentos, tal a quantidade. Um dia comentou que havia mandado instalar umas prateleiras, presas com corrente, sobre a cabeceira da cama dos dois filhos homens que moravam com ele. Começamos a caçoar, dizendo que ele tinha feito uma armadilha para se livrar dos filhos “delinquentes”. Quando uma das duas filhas do segundo casamento resolveu morar com a avó, o Digão não perdeu tempo: imediatamente instalou estantes no quarto desocupado.
 
 
Além dos livros comprados em duplicata por engano, ganhei dele outros livros, sempre com dedicatória. Um catecismo católico atualizado, um livro sobre música clássica e um sobre a presença de cristãos-novos no Brasil. 
Segundo ele, por volta de 1500 e poucos, os judeus de Portugal foram obrigados a converter-se ao cristianismo, na marra. Após a “conversão”, foram batizados e tiveram os sobrenomes mudados para nomes de animais e plantas, criaturas de Deus. Surgiram aí os Pereira, Figueira, Pinto, Coelho, Laranjeira, etc. A designação “cristão-novo” foi utilizada para diferenciar dos cristãos originais, cristãos-velhos, portanto. Muitos desses judeus “convertidos” vieram para o Brasil, fugindo da Inquisição, etc. Tempos depois dessa aula dada por ele, ganhei o tal livro, com a seguinte dedicatória: “Ao amigo ..., um cristão-novo da melhor categoria”.
 
 
Tendo ficado em São Paulo por quase um mês, voltou com uns dez ou mais livros, sobre os mais diversos assuntos, cada um mais inútil que o outro. Entre os títulos havia coisas como: “Perfil Geológico da Serra do Mar no trecho tal”, “Conheça o interior de sua calculadora científica”; “A economia do Rio de Janeiro no Século XVIII”, as coisas mais estapafúrdias ou inúteis. 
– Para que serve essa merda? – perguntei. A resposta foi a habitual: 
– Você é um ignorante! Olha só que troço joia esse livro sobre circuitos de televisão! 
– É, só se for usado para calçar uma mesa ou cadeira manca! 
E ele se ria, divertido.
 
 
O VOO CEGO
 
Quando foi trabalhar no sul do país, na construção de uma outra ponte, mudou-se para lá com toda a família. Ali ficou sabendo que uma senhora estava vendendo o monomotor do marido, já falecido. Graças à sua paixão por aviões, resolveu comprá-lo, em sociedade com outro funcionário da obra. 
Já sabia pilotar aviões – apesar do olho cego – desde a obra onde aconteceu o caso da vaca (– “Aprendi a voar antes de aprender a decolar”).
 
Para utilizar o avião, mandou fazer uma pista de terra próxima à casa onde morava. A cabeceira da pista ficava logo após uma linha de alta tensão, o que o obrigava a uma aterrissagem rápida após a passagem sobre os fios. E o mecânico do avião era o mesmo que dava manutenção no trator de esteiras... 
Altamente especializado – disse rindo.
 
Segundo sua explicação, o centro de gravidade desse modelo, quando o piloto está voando sozinho, fica no segundo banco, que contém os mesmos comandos da frente do avião. Caso contrário, o peso do motor mais o peso do piloto inclinam o avião para a frente, sei lá com que consequências. Com duas pessoas, o problema deixa de existir, pela melhor distribuição de peso. 
No caso dele, por ser cego de um olho, pilotar sozinho, sentado no banco de trás, era impossível. Para resolver o problema, utilizava um saco de cimento colocado no banco de trás, ou levava junto o Diguinho. Ao passar em voos rasantes sobre a casa, o Xulipa (que era como chamava o filho) acenava freneticamente, com o corpo meio para fora da janela: 
– Hei, mãe!!! 
Por duvidar dessa loucura, perguntei ao Diguinho se a história era verdadeira e ele confirmou, rindo.
 

Um domingo pela manhã, com “céu de brigadeiro”, para testar os limites do avião, resolveu subir até onde a potência do motor conseguisse superar o ar cada vez mais rarefeito.. E foi subindo em espiral, até onde o avião aguentou.
Ao verificar a altitude – no olho, pois o avião não tinha altímetro funcionando – resolveu descer, também em espiral – “fazendo belíssimas voltas” enquanto apreciava a paisagem. 
Olhando para sua casa, notou que havia se formado um pequeno ajuntamento de gente na porta. Em seguida, viu o carro de sua mulher sair em disparada, na direção da pista de pouso. Sem entender nada, continuou descendo, sempre na espiral. 
Ao chegar à altitude adequada, endireitando o avião para o pouso, em linha reta com a pista, a cabine foi invadida por uma fumaça preta. Foi a conta de desviar da linha de alta tensão, mergulhar o avião e descer correndo, tão logo o calhambeque aéreo parou. Mas nada explodiu ou se incendiou. A fumaça foi diminuindo e acabou.
 
Explicação: o parafuso de drenagem do óleo do motor estava meio bambo, fazendo com que o óleo, pela ação do movimento de descida, deslocamento de ar e tal, fosse “cair” sobre a superfície quente do motor, queimando-se e provocando a fumaceira preta, que saía pela tangente e para cima e ia ficando sempre fora de sua visão, principalmente por sair do lado do olho cego, até ele alinhar o avião com a pista. 
– Foi o fim da picada! – disse rindo – Depois disso, Dona Maria me fez vender o avião...
 
 
ESCATOLOGIA
 
O Digão era um sujeito curioso, pois sendo um pai severíssimo, ao tratar com os colegas, transmutava-se, tornava-se tão igual aos demais, que ninguém ligava para a diferença de idade existente entre ele e nós outros. Assim, às vezes os assuntos descambavam para a mais pura escatologia, como se dois ou mais pré-adolescentes estivessem conversando.
 
Um dia comentou conosco que tinha sido operado de hemorroidas, contou alguns detalhes da operação e disse que um procedimento pós-operatório era o “alargamento do ânus”, para que a cicatrização fosse realizada adequadamente, evitando com isso o estreitamento do reto. Mas no caso dele, esclareceu, não foi feito esse “tratamento de choque”: 
O dedo do médico era da grossura do meu punho, pô!!


Depois de ser designado chefe do setor de projetos, mudou-se para o outro extremo do prédio, no mesmo andar, onde ficavam os desenhistas e projetistas, mas ia todo dia conversar fiado na antiga sala. Normalmente, chamava a atenção com a expressão –“Aqui, vocês já viram...” Na falta momentânea de assunto, saiu um dia esse diálogo: 
Aqui, você já cagou hoje? 
Já. 
Muito ou pouco? 
Normal. 
- Qual a cor? 
Marrom... 
Mole ou duro? 
Normal!!! 
Fino ou grosso? 
Vá à puta que pariu!
 
 
O caso a seguir é um dos que classifico como fantasioso e de gosto mais que duvidoso, diga-se. Entretanto, o que mais impressiona nele é o fato de ter sido contado sem nenhuma preocupação de parecer ridículo, para um grupo de colegas que riram até a barriga doer, por um senhor de cabelos brancos, educadíssimo, muito culto, um cavalheiro, enfim. Em outras palavras, ele sempre fez questão de se comportar como qualquer um de nós, nunca quis ser tratado com a deferência e respeito a que tinha direito e merecia. E era essa simplicidade e sabedoria que faziam dele o grande sujeito que realmente era e de quem todos gostavam. Mas vamos à história, tão “suja” quanto sanitário de posto de gasolina:
 
Um dia, quando ainda trabalhava em outra empresa, foi encarregado de levar ao Rio de Janeiro uma proposta para uma licitação de obra. Como iria voltar no mesmo dia, só levou uma pasta com os documentos necessários. Enquanto aguardava o seu voo, ficou no restaurante do aeroporto com um colega, tomando chope – vários, segundo ele – e beliscando tira-gostos. Chegou ao Rio, almoçou e foi direto para o órgão público para a abertura das propostas concorrentes, mas começou a sentir um pouco de cólica. Aguentou firme até o final do processo licitatório (demorado, na maioria das vezes).
 
Pegou um táxi, mas percebeu que não seria boa ideia ir direto para o aeroporto, distante do local onde estava. Pediu para o motorista seguir para o hotel onde costumava ficar quando ia à cidade. 
Chegou à recepção já muito apertado e pediu a chave de um quarto, pois precisava ir ao banheiro urgentemente. Perto dele, um grupo de estudantes preenchia suas fichas, ficando com “risinhos irônicos” ao perceber a afobação do meu amigo. 
Recebeu a chave de um quarto em andar mais elevado. O recepcionista disse que alguém iria acompanhá-lo até lá, mas ele dispensou, com o intestino já na mais aberta rebelião. Ao sair do elevador, o quarto ficava no final de um longo corredor: 
Parecia que tinha um quilômetro!
 
A chave salvadora destrancou a porta e a mão acionou a maçaneta, mas a porta não abriu – a fechadura tinha duas voltas. 
Quando a porta não se abriu na primeira volta da chave, todos os controles entraram em colapso e ele se liquefez ali mesmo, na porta do quarto, com "o intestino" descendo pela perna até o sapato e manchando o carpete do corredor. Correu ao banheiro, pegou uma toalha, encharcou-a no lavatório e limpou o carpete, que ficou com uma mancha úmida “suspeitíssima”. Agora, era hora da higiene: tomou um longo banho, lavou a toalha, as calças, a cueca e os sapatos.
 
Depois que acabou, constatou que não poderia sair do quarto, por não ter trazido nenhuma muda de roupa. Chamou a camareira e perguntou pela lavanderia do hotel e soube que já estava fechada. Sem outra solução, perguntou quanto a funcionária ganhava por semana e ofereceu a ela a mesma quantia, para que fosse à sua casa secar a calça “que havia caído na água, ao tomar banho”. 
Duas ou três horas depois, volta a camareira com a calça seca e comenta, se desculpando: 
Não ficou muito bom não, porque a calça estava meio suja na bainha. O senhor deve ter pisado em algum barro...
 
 
VIDA CRISTÃ
 
Quem toma conhecimento dos casos já contados pode imaginar que meu amigo era um debochado, uma pessoa vazia e irresponsável, o que é um ledo engano. O Digão era um cavalheiro, profissional correto e interessado, marido dedicado, pai severo e, às vezes, impaciente, sério e respeitoso ao tratar com qualquer mulher e um católico fervoroso.
 
Um de seus nove filhos, não sei se do primeiro ou do segundo casamento, nasceu com anencefalia. Segundo ele, não havia a mais remota chance da criança sobreviver sem o auxílio de um respirador artificial. Diante disso, ele perguntou ao médico quais eram os procedimentos médicos obrigatórios. O médico respondeu que tudo o que a ética médica mandava fazer já havia sido feito. 
Ele então pediu que não fosse feito mais nada. Com a criança nos braços, batizou-o ele mesmo, abençoou-o e ficou ali carinhosamente abraçado com o menino, até que ele morresse.
 
 
A morte da primeira mulher, causada por uma transfusão errada, se não me engano, provocou nele uma recusa total de Deus. Dizia coisas como –“se Deus existe eu quero que um raio caia sobre minha cabeça”. Mas, perto de sua casa, na Serra, havia um convento de dominicanos, religiosos extremamente cultos, “guardiões da fé”, segundo ele. Passou a frequentar a biblioteca do convento, a conversar com os irmãos e a alimentar-se do conforto espiritual ali encontrado. Resultado: tornou-se definitivamente um católico praticante, tão convicto de sua fé, tão religioso que foi admitido como irmão leigo. Na ordem, ele tinha a seguinte identificação: Frei Vicente de Ferrer, irmão leigo da Ordem Terceira dos Dominicanos.
 
Muitas e muitas vezes fui à sua sala, onde conversávamos sobre Religião, sobre religiões, Deus e fé, onde expunha minhas dúvidas e ele me acalmava com sua fé serena e profunda. Por conta dessas conversas, emprestou-me um livro interessantíssimo sobre o Santo Sudário, escrito por um médico legista francês, cujo título é A Paixão de Cristo segundo o Cirurgião.
 
Numa dessas conversas, comentei com ele que tinha lido uma frase estranha do Einstein, que era alguma coisa assim: “acredito no Deus de Spinoza” e perguntei o que poderia significar. Ele me disse que Spinoza era um filósofo judeu, mas que não sabia o que isso significava. Esqueci o assunto, até o dia em que entregou umas dez folhas sobre o Spinoza, só que manuscritas por ele! Ele deve ter gasto um tempo filhadamãe copiando os textos sei lá de onde, só para atender a um amigo, só para acalmar a minha fé vagabunda e oscilante (ao contrário da sua, que era sólida e tranquila). Figuraça!
 
 
FALANDO ALEMÃO
 
Quando saiu a licitação para a construção da usina nuclear Angra III, a empresa onde trabalhávamos mobilizou todos os recursos possíveis para ganhar essa obra (mas foi desclassificada). Como era uma tecnologia totalmente nova, alemã, diferente da americana utilizada na usina Angra I, uma das exigências do edital era a parceria com empresa que já tivesse construído usina semelhante. Essa empresa atuaria como consultora, antes e durante a execução da obra.
 
Feitos os contatos, chegaram a Belo Horizonte dois engenheiros alemães, sendo que apenas um falava espanhol. Foram logo apelidados por outro colega, crítico e irônico ao extremo, de “Grafite” e “Canetão”. Grafite, segundo a ótica desse colega, era aquele que iria arregaçar as mangas e trabalhar, pois usava apenas lapiseira – e borracha, naturalmente. O outro, justamente aquele que sabia espanhol, usava apenas caneta, útil apenas para assinar cheques, na visão desse colega.
 
Estávamos concentrados em nossas tarefas quando chega o Canetão: 
– Óia ‘este’ planta! Está faltando um corte que está indicado ‘neste outro’ planta! 

Os desenhos originais estavam escritos em alemão, com a indicação de vários cortes (schnitt). E o alemão começou a contá-los na nossa frente, para conferir: 
eins, zwei, drei, vier... E o Digão emenda: – fünf, sechs, sieben, acht… 

O alemão, que aparentava idade próxima à de meu amigo, um senhor, portanto, surpreende-se. 
O senhorrr fala alemáo? – pergunta encantado. 
Não, só sei contar até dez – responde o Anta. 

Começamos a rir depois que o Canetão saiu. 
Animal, você forneceu pro alemão a prova definitiva que o Brasil não é um país sério, sua Anta!!!
 
 
BATATEIRO
 
Embora fosse um leitor voraz e muito culto, o Digão era muito “batateiro”, como ele mesmo dizia. Um dia comentou que era um “previlégio” alguma coisa e repetiu. Caímos de pau nele: 
Olha o animal! O cara é analfabeto! 
Rindo, ele confessou que nunca soube que a palavra era “pri” e não "pre”. 
 
Em uma consulta médica de rotina, o médico perguntou como estava a vida sexual. E o Digão: 
O meu líbido está joia. 
E o médico: – Porque a sua libido... 
E o Digão, de novo: – Porque o meu líbido... 
Contando-nos da nova “batata”, brincou: 
O som das proparoxítonas é mais erúdito...
 
 
NO TRÂNSITO
 
Devido à falta de um olho, dirigir para ele era um pouco mais complicado. Assim, às vezes, cometia alguma barbeiragem. Ao assustar alguém que queria atravessar, ouviu o comentário: 
Cuidado aí, vovô! 
Tendo um gênio mais impaciente e, mesmo sem razão, emendou: 
Vovô, não, pois eu comi foi sua mãe, não sua avó, seu filho da puta! 
 
Quando os filhos ainda eram crianças, entrando com o carro na Getúlio Vargas, encontrou pela frente uma senhora que andava no meio das duas pistas. Tentou passar por um lado, mas a mulher encostou justamente para a mesma pista; tentou ultrapassar pela outra pista, mas a mulher, de novo, encostou para o mesmo lado. E foram assim oscilando, até que, já exasperado, conseguiu emparelhar com ela:
 
Vá aprender a dirigir, sua vaca!! – e seguiu triunfante, até a próxima esquina, quando o sinal fechou e a mulher parou atrás dele. Pelo retrovisor, viu a senhora descer do carro e caminhar em sua direção. Chegando ao seu lado, curvou-se um pouco, para fulminar: 
Meu senhor, eu não sou uma vaca. Em compensação, o senhor também não é um cavalheiro! – E retornou com toda a dignidade.

O filho que estava com ele e era ainda pequeno, explodiu: –“Reage, pai, reage, pai!!!” 
Como é que eu podia reagir? Eu estava desse tamanhinho – Contou, juntando o polegar ao indicador.
 
 
CIRURGIA DE CORAÇÃO
 
Com um estilo de vida sedentário e tendo fumado por uns cinquenta anos pelo menos, começou a ter uns piripaques de vez em quando. O amigo e cardiologista de confiança pediu uma cineangiocoronariografia.
 
Levou o resultado do exame para o escritório e, rindo meio sem graça, comentou ao nos mostrar, que era sua certidão de óbito. Ao olhar os resultados, que indicavam “obstrução de 87% na artéria x”, 100% de obstrução na artéria y”, 92% de obstrução na artéria z”, começamos a rir irresponsavelmente, dizendo coisas como – “O 'Véio' tá morto!”, – “Esqueceram de te enterrar!”. E ele meio enfurecido: 
Vocês são uns cretinos!
 
A cirurgia de ponte safena foi realizada e fomos visitá-lo no hospital, Tempos depois, comentou que “tinha morrido” duas ou três vezes durante a cirurgia, pois seu coração tivera que ser reanimado depois de algumas paradas cardíacas. Contou também que escondeu um cigarro aceso na mão enquanto era levado para o bloco cirúrgico, um local rico em oxigênio, bom para o combate às bactérias, mas também propício à combustão. Ao levar o cigarro à boca, foi flagrado por uma enfermeira: 
Olha esse filho da puta fumando aqui!!!!!!
 
Convalescente, comentou com o cardiologista que estava muito ansioso e perguntou se não podia fumar um pouco. O médico, sabedor de seu vício antigo, comentou que não deveria mais fumar. Entretanto, diante das argumentações, concordou que ele fumasse “um ou dois cigarros por dia”. Imediatamente, o consumo passou de dois para quatro e assim, sucessivamente, até ser flagrado pelo amigo, na rua, com um maço no bolso da camisa: 
O que é isso, Rodrigo? Você está fumando assim? 
Não! Este maço é só para reforçar minha força de vontade. 
Hã, sei...
 
Só parou mesmo de fumar anos depois, depois de se aposentar e depois de sofrer dois infartos. Mas, aí, já era tarde.
 
 
A HOMENAGEM
 
Creio que essa foi a última história maluca em que o Digão se envolveu. E sou testemunha de sua veracidade, pois estive com as provas na mão, na penúltima vez que nos encontramos, em seu sítio.
 
Como já foi dito, ele trabalhou na construção da Ponte Rio Niterói, em seu início. Segundo ele, depois que todos os problemas técnicos decorrentes da magnitude da obra já tinham sido solucionados e com a obra já iniciada, o general-presidente da época destituiu o primeiro consórcio, onde ele trabalhava, para entregar a um novo grupo de empresas (as mesmas que, vira e mexe, aparecem citadas em alguma reportagem sobre obras faraônicas ou com suspeita de super-faturamento).
 
Em 2005, o Clube de Engenharia do Rio de Janeiro realizou uma solenidade comemorativa dos 30 anos da inauguração da ponte, momento em que foram homenageados os engenheiros que trabalharam em sua construção. 
O Digão recebeu uma carta ou algo parecido, convidando-o para a cerimônia. Por já estar com a saúde frágil, pediu a um amigo, ex-colega de consórcio, que o representasse. Depois de algum tempo, recebe a visita do amigo, que lhe entrega a placa comemorativa, onde constavam os seguintes dizeres:
 
“AO ENGENHEIRO RODRIGO ... UMA HOMENAGEM PÓSTUMA”...
 
Diante disso, enviou uma carta ao presidente do Clube de Engenharia, dizendo que estava comovido e muito honrado com a homenagem, Entretanto, “apesar das evidências em contrário”, continuava ainda respirando.
 
Recebeu de volta uma carta com milhões de pedidos de desculpas pelo equívoco e com a explicação do engano: normalmente nessas situações, quando alguém é representado por outra pessoa, é sinal de que o homenageado já faleceu. E junto com a carta, outra placa.
 
Quando me contou isso por telefone, eu ri demais e comentei que sua esposa, Dona Maria, uma senhora simpaticíssima, poderia dizer após sua morte: 
“Meu marido era tão querido que foi homenageado DUAS vezes"! 
Ficamos fazendo troça disso, e me lembro de uma de suas expressões prediletas: 
É o fim da picada!
 
Quando fui visitá-lo, mostrou-me as duas placas e rimos de novo, comentando que sua homenagem tinha saído mais em conta, pois foram duas homenagens pelo preço de uma.
 
 
A PRIMEIRA VISITA
 
Depois que eu saí da empresa onde trabalhávamos e ele se aposentou, fiquei mais de dez anos sem vê-lo e sem nenhum outro tipo de contato. Como gostava muito dele, um dia resolvi ligar, mas seu nome não constava mais na lista telefônica. Assim, liguei para o Xulipa, que me deu o telefone e informou que ele havia mudado para o sítio. Xulipa era o nome utilizado pelo Digão para designar o Diguinho, seu filho. De posse do novo número, liguei para ele, que teve a previsível reação de impaciência: 
Alô, quem está falando? 
QUER FALAR COM QUEM? 
Quero falar com o Hans, um velho filho da puta! 
Quem tá falando? É O Botelho? Ô menino, que alegria! Achei que você tinha morrido ou mudado para Três Marias, pois você sumiu!
 
Hans era um apelido que criei para ele a partir de um trocadilho infame, pois vivíamos ironizando sua idade, chamando-o de “Véio”. Um dia, quando o chamei de Hans, reagiu: 
Porque Hans? Pelo meu perfil ariano? 
Não, pô! Hans , de Hans-cião. 
Vá à puta que o pariu!
 
Depois desse telefonema, quando insistiu para que eu fosse visitá-lo, às vezes eu ligava para ele, às vezes era ele que fazia isso, mas de forma muito esporádica. A minha mulher, super carinhosa, mandava cartões de Natal, mesmo sem conhecê-lo pessoalmente.
 
Um dia ele ligou, dizendo que estava com saudades e que eu precisava visitá-lo, pois não saía mais de casa. 
Vem me visitar, pô! Eu não demoro muito mais não. Tirei uma radiografia onde apareceram umas manchas no pulmão, o médico olhou com cara muito feia, mas eu não quis nem saber o que é, pois na idade em que estou, não pretendo ser operado.
 
Depois de ser transferido para um novo setor, onde passei a fazer inspeções trimestrais em unidades da região metropolitana, resolvi visitá-lo, instado por minha mulher, que achava um absurdo o fato de eu não procurar um amigo tão querido e tão lembrado. 
Chegando ao sítio, apropriadamente chamado de Sítio das Flores, fomos recebidos por ele e por sua esposa, Dona Maria, uma senhora elétrica, irrequieta e simpaticíssima. 
Ao ser apresentada a ele, minha mulher fez um comentário surpreendente e muito feliz, em virtude das muitas histórias que já tinha ouvido a seu respeito: 
Hoje eu estou conhecendo um mito!
 
Depois das apresentações de praxe, a Dona Maria já foi logo sequestrando minha mulher para mostrar a ela o sítio e deixando-me a conversar com o Digão. 
Descobri que sua esposa ficava o dia inteiro mexendo no sítio, só voltando para almoçar ou ao anoitecer, ora plantando, ora podando, cuidando da criação, supervisionando a construção de um pequeno açude (“para criar peixe”), uma azáfama sem fim. De tal sorte que, quando alguém da família ligava procurando por ela, ele dizia em tom de piada: 
Está lá no pasto, está pastando.
 
Graças a essa faina incansável da Dona Maria, o sítio era um lugar lindo, encantador, com a frente toda gramada e cheia de flores. Além da casa original, pequena, o sítio tinha também um galpão de madeira, transformado inicialmente em sala de lazer e jogos, logo após a compra do imóvel. 
O galpão era uma construção simples (originalmente erguido em caráter provisório), mas confortável pois, além do salão, tinha dois quartos e um banheiro. Por ter sido o local naturalmente escolhido para abrigar os cinco mil livros que tinha, organizados em estantes de aço como em uma biblioteca, acabou se transformando na moradia real do Digão, que ali passava o dia todo, lendo ou assistindo televisão. Por problemas de ronco (provavelmente dos dois), cada um ocupava um dos quartos.
 
No galpão propriamente dito, além das estantes repletas de livros e publicações, ficava uma mesa ou escrivaninha, local predileto de leitura, um jogo de sofás, televisão, geladeira, vários objetos de decoração e um cilindro grande de oxigênio, dotado de máscara, usado cada vez com mais frequência pelo Digão, em virtude de seu enfisema ou coisa parecida. Quando nos despedimos, reiterou a alegria causada por nossa visita, insistindo para que voltássemos outra vez.
 
 
O ÚLTIMO ENCONTRO
 
Creio que a última vez em que minha mulher e eu visitamos o Digão foi em julho de 2007. Eu aproveitava minhas idas a serviço em cidades próximas à sua propriedade, para visitá-lo. Graças a isso, fomos três vezes ao seu sítio.
 
Quando chegamos, notei que estava bem mais abatido e alquebrado que da última vez em que tínhamos estado com ele. Vestia uma camisa de lã e usava um boné do tipo “Chaves”, que tampava suas orelhas. 
Quando cheguei perto dele para abraçá-lo, pegou meu rosto com as duas mãos, dizendo: 
Que alegria revê-los!
 
Informou que Dona Maria havia saído “para fazer hidroginástica” numa cidade próxima, que não demoraria. Sentamo-nos para conversar e, enquanto ficamos ali, não mais que uma hora, ele utilizou a máscara de oxigênio uma ou duas vezes. Quando anunciamos que já estávamos de saída, reclamou: 
Está cedo, a Maria já deve estar chegando! 
Insistimos que já estava tarde, qualquer coisa do gênero e nos levantamos. Pediu-me então ajuda para poder levantar-se e, em seguida, utilizou novamente a máscara de oxigênio. Despedimo-nos afetuosamente dele, prometendo voltar em breve e saímos, deixando-o de pé na porta, sorridente.
 
O final do ano chegou, tirei férias em janeiro e programei mentalmente minha ida às cidades da sua região depois que passasse o período chuvoso, pois o acesso ao seu sítio era feito por uma estradinha de terra. 
Um domingo à noite, lendo o jornal, vi um aviso de falecimento, comunicando que o enterro de Rodrigo ... seria naquele dia, a tal hora, em tal cemitério. Minha primeira reação foi de surpresa, por existir um sujeito com o mesmo nome do meu amigo. Em seguida, lendo o anúncio com mais atenção, pude ver a referência à “esposa, filhos, genros, noras e netos”. Aí é que eu me dei conta de que meu amigo tinha morrido. 
Para confirmar, liguei na segunda feira para o sítio. Quem atendeu foi seu filho Fábio, que confirmou o falecimento. Disse que estava ali fazendo companhia à sua mãe, até que as coisas se ajeitassem. Perguntei a causa da morte e ele me disse que tinha sido câncer no pulmão, fato que a família desconhecia até a internação de seu pai, uma semana antes de morrer.
 
Não me lembro porque deixei de ir à missa de sétimo dia. Talvez estas lembranças me redimam dessa descortesia com o amigo. (Julho/2008)
 
 
MAIS UMA HISTÓRIA DO DIGÃO - A ONÇA
 
Na época em que escrevi os quinze textos originais sobre meu amigo Pintão (ou “Digão”, o apelido falso que usei para contar seus casos mirabolantes), talvez tenha achado boba ou irrelevante essa lembrança, mas, hoje, passado tanto tempo, seu finalzinho faz valer a pena contá-la, principalmente pelos pontos em comum com o texto recente em que eu lembrava as histórias inventadas por meu pai, de tão boa aceitação.
 
Antes, um comentário: como eu consigo lembrar bobagens como essa, de forma quase fotográfica? A resposta eu mesmo encontrei muito tempo atrás: eu guardo tudo o que é inútil e esqueço tudo o que realmente importa. Isso é literalmente a verdade! Além disso, minha memória principal é mais visual que tudo, pois lembro-me até da posição e expressões da pessoa com quem conversei. Mas nunca consigo guardar nomes (não é mesmo, Renato?). Agora, chega de enrolação.
 
Não sei mais por qual motivo meu querido amigo contou esse caso. Na época, seu filho Du, era estagiário de engenharia na empresa onde trabalhávamos. E é com ele ainda criança que surgiu o caso da onça. 
O Pintão disse que estava contando histórias para seu(s?) filho(s?) quando resolveu inventar uma caçada de onça. Com cinco ou seis anos, o Du logo se empolgou. A partir de agora, vou tentar reproduzir a descrição do “Digão" para seu filho, tal como nos contou.
 
- Eu estava na floresta caçando, quando apareceu na minha frente uma onça. Eu peguei a espingarda, mirei e... "pá"! 
- Matou ela! 
- Não, a espingarda falhou. Ela veio para cima de mim. Peguei então um pedaço de pau e bati na cabeça dela!... mas o pau quebrou.
 
(O Du foi ficando inquieto com aquela situação, mas o pai continuou, veemente). 
- Aí eu peguei minha faca e enfiei nela! 
- Ela morreu? 
- Não... a faca entortou! 
- E o que você fez??? 
(Nesse momento da história, com o Du preocupadíssimo e de olhos arregalados, o Pintão comentou conosco que não sabia mais o que inventar. Só não podia reproduzir a piada, dizendo que a onça o teria comido. E saiu o fecho “empolgante”):
 
- Quando ela pulou em mim, eu a agarrei pelo pescoço e nós rolamos pelo chão, mas dei uma gravata com tanta força que ela acabou morrendo sem ar. Então eu peguei a onça pelo rabo, rodei, rodei e joguei ela lá longe! 
(a reação empolgadíssima do filho pequeno foi hilária):
 
- EITA PAI FEDAPUTA!!!!!
 
Nesse ponto, meu amigo encerrou a historinha com um comentário bem a seu estilo. Rindo, disse: 
- Acho que foi o maior elogio que recebi na minha vida!
 
 
FESTA NA COLÔNIA
 
Graças a uma casualidade própria das redes do Facebook, acabei fazendo contato com um dos genros do meu saudoso amigo Luis Felipe Pintão. Mandei para ele o link do primeiro dos quinze posts dedicado a seu sogro e parece que gostou. Mas “desafiou-me” a lembrar de mais casos. O maior problema é que já se passaram mais de vinte anos desde o tempo em que trabalhávamos na mesma empresa. As lembranças vão ficando esmaecidas, desbotadas, borradas como uma folha de papel impressa a jato de tinta e que foi respingada com água. Dá para lembrar de alguma coisa, mas muitos trechos ficam “ilegíveis”.
 
Apesar dessa limitação, fiquei com isso na cabeça e acabei por me lembrar de um caso em que o protagonista não foi meu amigo, mas um de seus irmãos (aparentemente, tão aloprados quanto ele). A história é a seguinte:
 
 
Um de seus irmãos foi comandante de navio da marinha mercante. Nas idas e vindas pelos mares e portos do mundo, conheceu uma alemã, com quem se casou. Creio que fixou residência no sul do país, em cidade com forte presença de alemães e, obviamente, de seus descendentes. Muito bem.
 
Um dia, foi a uma festa de aniversário de um dos ilustres membros da colônia local, um alemão já bem velhinho. Segundo meu amigo Pintão, depois de devidamente calibrado, seu irmão resolveu fazer um discurso em homenagem ao aniversariante. Nenhum problema haveria nisso, não fosse o fato do discurso ter sido feito em “alemão” e que o orador não soubesse porra nenhuma dessa língua.
 
Já chapado, começou seu discurso com um entusiasmo que só aumentava, gesticulando de forma teatral e dizendo coisas desse tipo (lembrando-me do Pintão a imitar os gestos e o discurso, peguei um texto em alemão e saí trocando letras, só para dar a sensação de um discurso inacreditavelmente sem noção):
 
Mein fichndicht dor wort dichetrch ichn ranichr lotanicichn form thichodircich ichrrtmolr ichm einsbein ichm r päprtlichchichn nenticher???
Mein enichrt ollichrdichngr bichr hichetich, ob marlene dietrich toträchlichch da rprochich dichr wolkichr ichn dichetrchhroem) gichmant wor???
As aftas ardem e doem wichnichg dichetlichchichr wichrd das wichrbichndeng zem lond dichr dichetrchichn ichrrt zwa johrich rpätichr...
Fohnichnflecht an andichetichgichr bichlichg bichratr anich wondleng won eichnsbeichn ichn zu dichetrchich prochich wollzogichn sprach wor deutsche leben!!! Obrigado!
 
Segundo o Pintão, seu mano foi entusiasticamente aplaudido (já devia estar todo mundo bêbado mesmo!). O homenageado aproximou-se com os olhos lacrimejantes e agradeceu: 
- “Fiquei muito comovido e emocionado com suas palavras, mas confesso que não entendi nada do que o senhor disse. Imagino que deve ter falado em um dialeto que desconheço”. 
- “Claro, claro”, teria sido a provável resposta do brother, capaz de fazer coisas tão sem noção quanto meu amigo Pintão.
 
 
PINTÃO EM GOTAS
 
Logo no início deste blog, publiquei uma série de quinze posts sobre meu amigo e colega Pintão. Esses textos foram escritos ainda antes da criação do Blogson, pois em toda reunião ou festa de família eu contava os mirabolantes casos acontecidos ou inventados por ele, fazendo as pessoas rolar de rir com suas maluquices. Por isso, para que não fossem apagados da memória com o passar do tempo, resolvi escrevê-los. Depois, com algum esforço, fui me lembrando de frases e casos “twitter” do meu amigo. Essas lembranças foram sendo pulverizadas no blog ao longo do tempo. Recentemente, descobri no Facebook um retrato desse amigo. Aí surgiu a ideia de reunir em um único post o retrato e as lembranças esparsas desse “ex-parça” (gostou, Marreta?). Bora lá.
 
ANIVERSÁRIO
Meu amigo ficou viúvo muito moço. Um dia, provavelmente conversando sobre nossa descrença no espiritismo e afins, ele contou um caso ocorrido quando já estava casado novamente (com uma senhora simpaticíssima). Como era um autêntico bibliófilo, converteu um dos cômodos da casa em biblioteca, onde ficavam expostos e organizados em prateleiras metálicas seus amados livros (mais de cinco mil). Provavelmente, um lugar onde passava a maior parte de suas horas de folga.
Era dia de seu aniversário e ele estava sentado nessa biblioteca quando, sem nenhuma explicação plausível (rajada de vento, netos ou filhos brincando de esconde-esconde, ratos ou gatos, tremor de terra, etc.), um livro caiu da estante. Levantou-se, apanhou o livro para recolocá-lo no lugar quando viu que era um livro dado a ele de presente de aniversário por sua primeira esposa. E tinha uma dedicatória que era algo assim: “para o meu amado (ou ‘querido’) Luiz Felipe, etc.”. Surpreso com a coincidência, teria murmurado “Obrigado, Silvinha”.
E ficamos ali, pensando sobre os mistérios e coincidências do mundo. Esse caso, tão delicado e íntimo, eu preferi nunca registrar, pois era muito, muito pessoal. Hoje, passados tantos anos desde seu falecimento, achei que seria mais uma oportunidade para homenagear sua lembrança e de mantê-lo “vivo”.
 
CAFETÃO
Um dia, eu e minha mulher fomos a um evento de produtores de café gourmet. Muitos stands ofereciam degustação de seu produto. Sem açúcar! Comecei a me sentir um bronco no meio daqueles "cafetões" (pessoas que vivem às custas do café, entendeu?), a sentir orgulho da minha própria ignorância "cafeeira" Em que lugar da história ficaram os bebedores de café adoçado? Até comentei com um ou dois expositores que estava me sentindo um muçulmano entre cristãos, pois o café que eu bebo diariamente leva açúcar (ou adoçante). Pude notar a expressão de horror em um deles, fazendo-me temer ser escorraçado da feira como herege e até a tomar um banho de água benta (fácil de acontecer, pois bastaria abençoar a chuva que caía sem parar).
Para suavizar, contei a receita de café ensinada por meu falecido amigo Pintão.
Segundo ele, em um daqueles cafés do Rio de Janeiro do final do século XIX ou início do século XX, lia-se pintada na parede azulejada a seguinte frase, atribuída a um Barão de sei lá o quê, do tempo do império: "O café deve ser negro como a noite, quente como o inferno e doce como o amor". Nem esse lirismo todo abalou a rígida convicção do cafetão!
 
CERTIDÃO DE NASCIMENTO
Quando nasceu a primeira filha do segundo casamento, o Pintão estava trabalhando no norte do país. Por isso, quem providenciou o registro da criança foi o sogro. Quando pôde vir a Belo Horizonte, perguntou ao sogro qual era o nome da criança. O sogro disse que era "Fulana de tal Melo Pinto...". Decepcionado com o mau gosto daquela melada no pinto, reclamou com o sogro:
- "Com efeito, Sr. (nome do sogro), 'Fulana de Tal Melo Pinto'"?
O sogro, provavelmente sem graça, perguntou com toda a ingenuidade:
- "Você não gostou de 'Fulana de tal'?
O mal já estava feito.
 
FODA DE PORCO
Um dia, a propósito de algum famoso que tinha fama de pegador, comentou:
- “Dizem que esse cara faz muito sucesso com as mulheres. Parece que ele tem tesão de galo, pau de jumento e foda de porco”.
Alguém perguntou o que significava essa "foda de porco" e ele explicou:
- “Você nunca viu porco trepando? É o fim da picada! Demora pra danar. Ele sobe em cima da porca e fica lá, fuçando. Sei lá, acho que fica cansado e dá até uma cochilada, mas sem sair de cima. Aí acorda e continua. Coisa de louco!”
 
SACER LOCUS
Esse caso é mais uma das lembranças twitter do meu amigo Pintão. Mesmo sendo extremamente católico, não era carola; mas, às vezes, diante das tijoladas pornográficas que alguém dizia, reagia com um ar de fingida seriedade, dizendo uma frase em "latim", que traduzia em seguida:
- "Sacer locus, puer, extra mijit"! ou "O lugar é sagrado, menino, vá mijar lá fora"!
Isso me fez lembrar de uma piadinha que meu amigo Pintão gostava de repetir:
- “Os quatro cavaleiros do Apocalipse são três, Esaú e Jacó”.
 
JAMES!
Um dia, estávamos conversando fiado – como sempre – quando eu disse a meu amigo alguma coisa como "a gente precisa..." (não sei como é em outros lugares, mas em BH, pelo menos, é comum usar-se a expressão "a gente" como sinônimo de "nós"). Com uma falsa impaciência, meu amigo retrucou:
- “A gente, não. Você precisa! Fui claro, James?”
Diante do comentário, perguntei o que significava o "James" na história. E ele explicou:
- “É como aquela história do nobre inglês e seu mordomo. Um dia, pela manhã, o mordomo entra no quarto do patrão, abre as cortinas e diz: - ‘Parece que teremos um belo dia hoje, milord’. Ao que o nobre responde – ‘Errado, James. Eu terei o meu belo dia e você terá o seu belo dia!".
 
NERO
Um dia, comentando sobre Nero, disse que o imperador romano era um incompreendido. Afinal, só tinha mandado assassinar a mãe, o meio irmão, um porrilhão de cristãos e incendiar Roma enquanto tocava harpa, etc.
Rindo, dizia que era tudo intriga histórica, e que antes do incêndio, Roma era uma grande favela, com vielas mal cheirosas e barracos construídos de forma precária. E que Nero demonstrou ser um grande urbanista, pois traçou largas avenidas e belos palácios na área destruída. E lembrou a lenda a respeito de sua morte, quando, ao ser apunhalado teria dito a frase “que grande artista o mundo vai perder!”.
 
PRESENTE
Um dia, sem nenhum motivo ou data especial, meu amigo “Digão” deu-me de presente o livro “Máximas e Mínimas do Barão de Itararé”, com a seguinte dedicatória:
 “Para o amigo Botelho oferece um de seus mais humildes escravos. 07/04/87"
O motivo do presente foi um comentário feito por ele durante uma de nossas conversas sobre esse falso barão, pois eu nunca tinha ouvido falar de Apparício Torelly, “Aporelly” ou “Barão de Itararé”, nomes que identificam um jornalista gaúcho nascido em 1895, que tinha a manha do humor inteligente, feito de frases engraçadíssimas, textos precisos e trocadilhos de fazer inveja ao pessoal do Casseta e Planeta. Aliás, foi realmente dono do jornal “A Manha”, criado em 1926, onde fazia de tudo. Detalhe: o nome era (mais) um trocadilho com o nome do jornal "Correio da Manhã", onde havia trabalhado.
 
UFANISMO
Meu amigo Pintão era muito bom em cultura inútil. A diferença é que sua cultura inútil era um pouco mais "culta", pois frequentemente baseada em curiosidades literárias. Um dia mencionou a existência de um livro escrito por um "nobre" brasileiro, que tinha esse título: "Porque me ufano de meu país". E ironizou esse “ufanismo” ao contar que o livro tinha como subtítulo a frase (em inglês!) "right or wrong, my country". Por causa dessa idiotice, a palavra “ufanismo” passou a ser relacionada a sentimentos de patriotismo exacerbado, “acrítico, ingênuo, incondicional". Convenhamos, esse livro “precisava” ser reeditado, pois combina bem com o estilo dos dias atuais!
 
RETRATO
Graças ao onipresente Facebook, recentemente encontrei um retrato do meu amigo, com seu olho de vidro e cara de vaca (quase dava marchinha de carnaval!). Com essa imagem, creio ter agora esgotado todas as lembranças do melhor amigo que tive. Olha ele aí:

 

 

2 comentários:

  1. Sou fã de Fernando Sabino, já li vários livros.
    É muito bom ver como ele retratou Minas na sua infância...

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    1. Li apenas dois, o manjadíssimo "O encontro marcado" e o "O menino no espelho" (de que gostei mais). Reparou que a maioria dos seus títulos começa com um artigo definido ("O", "A")?

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