domingo, 21 de março de 2021

O GRANDE ARTISTA QUE O MUNDO PERDEU - CARLOS HEITOR CONY

Depois de mencionar o imperador Nero (gente boa!) em um post recente, encontrei uma crônica de um craque da literatura brasileira totalmente dedicada ao romano. Não sei o que a motivou (precisa saber?), só sei que gostei demais. Por isso, resolvi transcrevê-la aqui no Blogson. Foi publicada em 02/08/1996 no jornal Folha de São Paulo. Muito boa!


Aos 17 anos, só pensava em poesia, música e dança. Acreditava-se um artista e acreditou nisso até o fim, quando pediu a um de seus escravos que lhe metesse um punhal na garganta. Tinha então 31 anos, um a mais do que o habitual para ser confiável aos jovens da época.
Odiava a guerra, detestava a política, desdenhava as futricas palacianas de sua família.
Tantas e tamanhas, essas futricas o fizeram, com pouco mais de 16 anos, imperador de Roma. De certa forma, imperador do mundo e dos homens que nele viviam.
Quatorze anos depois, escorraçado, amaldiçoado por todos, foi obrigado a fugir. Encurralado, com repugnância de cometer qualquer violência contra si mesmo, pediu ao escravo que o matasse, mas não o desfigurasse no rosto.
Consta que pronunciou a frase que ficou sendo um epitáfio e um ridículo: "Que grande artista o mundo vai perder!"
Sim, foi um artista, ao gosto de sua época e de seu próprio gosto. Ficou em aberto a qualidade de sua arte, falta-nos elementos para julgá-la.
Seus poemas são medíocres, seus cantos e sua voz não foram gravados. O depoimento dos contemporâneos é suspeito: todos o bajulavam ou o odiavam.
Mesmo assim, há indícios de que sua voz era suave e sua habilidade na lira ou na cítara davam para o gasto.
Não promoveu campanhas enquanto imperador: tinha horror às guerras. Contudo, fez questão de participar, como simples menestrel, nos Jogos Olímpicos de 68, em Corinto.
Poesia e canto eram modalidades olímpicas naquele tempo. Esse seria o seu único triunfo, o único que comemorou, mandando erguer um arco em homenagem a seus poemas, tal como Tito, Vespasiano e Constantino fariam para perpetuar no mármore a glória obtida nos campos da guerra.
Apesar disso, não escapou do politicamente correto de seu tempo e lugar. Transou com a mãe, Agripina, a mulher mais bela e sensual de Roma, que atravessara e vencera a cólera de três imperadores (Tibério, Calígula e Claudio).
Mandou matá-la, depois, não porque tenha desgostado da transa, mas por motivos de Estado. E também mandou matar os dois mestres (Burro e Sêneca), aos quais dedicava um afeto de filho e uma admiração de pupilo.
Era piromaníaco: gostava de iluminar os jardins de sua casa com tochas humanas: mandava embeber escravos em petróleo; o cheiro não era lá essas coisas, mas a luz era excelente.
Por essas e outras, foi considerado a encarnação do Anticristo. Primeiro imperador romano a colocar o cristianismo fora da lei. Oficializou a perseguição aos seguidores de um tal de Crestus -que os romanos não sabiam exatamente quem era nem o que pregava.
A vingança veio mais tarde, mas veio. Os cristãos tomaram o poder e como vencedores escreveram a história. E a ele foi atribuído o incêndio de Roma.
Era pouco. A tradição garante que ele aproveitou o espetáculo, subiu na torre mais alta de seu palácio, empunhou a cítara e teve seus melhores momentos de poeta e cantor. Dois mil anos depois, nenhum artista o superaria nesse "happening".
Pudesse, não cantaria apenas a destruição da cidade dos Césares. Sendo um deles, cantaria a própria destruição dos Césares. Um monstro, sem dúvida, mas um esteta.
Ninguém como ele desprezou o lado marcial do poder e o próprio poder. Usou de sua força para ampliar e melhorar a qualidade dos espetáculos do circo que tinha seu nome.
Benfeitor das artes e protetor dos artistas, favoreceu o teatro e os torneios de música e dança. A ele deve ser creditado o uso da cor para tornar mais atraente o show.
O número mais atraente era duplo: enquanto um touro mantinha relações sexuais com uma jovem, do alto de uma torre jovens escravos se atiravam ao ar, nus, com asas de cera cobertas de penas de ganso -e se esborrachavam no chão, uns mais depressa que outros.
Por mais que hoje nos pareça extraordinário, havia alguns que se sustinham no espaço mais tempo.
Suetônio garante que ele apreciava esse número final e teve a revolucionária idéia de levar duas enormes esmeraldas que colocava à frente dos olhos. Por meio do prisma esverdeado, o espetáculo ficava mais emocionante.
Foi um ancestral do LSD: o imperador via a realidade com mais cor.
Tantas ele fez, tantas inventou e tantas deixou que outros fizessem com menos arte e criatividade que, aos 30 anos, sentiu que não dava mais pé.
Tentou negociar sua vida: renunciava ao império, a tudo, trocaria o poder por um cargo obscuro e mal remunerado numas das províncias, na Hispânia, na Gália, em qualquer lugar bem longe do Forum, do Capitólio.
Era impossível. Roma só conhecia dois tipos de imperadores: o vivo e os mortos. Lucio Domizio Enobardi, mais conhecido como Nero, não teve coragem de se matar.
Pediu que o escravo lhe metesse o punhal na garganta. O mundo perderia um grande artista, mas seu nome teria excelente serventia.
Cinco em dez cachorros de todo o mundo têm o seu nome. E, com um pouco de boa vontade, corrigindo-se uma ou outra aberração própria de sua época e condição, ele poderia ser o patrono da juventude de todos os tempos e modos.
 


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