Minha mulher tem um horror paranoico às
baratas. Um horror tão grande que faz com que ela não olhe para o inseto (vivo
ou morto, tanto faz) e nem pronuncie seu nome. Na nossa casa a barata é uma
verdadeira “indesejada das gentes”, pois ninguém dorme enquanto um desses insetos
não for morto depois de ser avistado. E sempre há uns quatro frascos de inseticida em spray espalhados pela casa, pois ninguém se atreve (nem eu) a dar uma chinelada na distinta. Aquele "cloff" (som resultante do esmagamento) e a gosma que sai de dentro dela são muito repulsivos. Melhor é gastar logo meio tubo de inseticida e ficar vendo a coitada enlouquecer antes de bater as botas, ou melhor, as patas.
Uma vez minha mulher ganhou de alguém o livro
“Diário de um Cucaracha”, coletânea
de cartas escritas pelo Henfil a seus amigos durante o período em que morou nos
Estados Unidos. Como a capa do livro ostentava a foto de uma “bela” barata,
tive de encapá-lo para que ela pudesse lê-lo. Lembrando-me disso, resolvi
postar um texto engraçadíssimo do meu ídolo Millôr Fernandes, escrito em um
tempo onde o “politicamente correto” era ainda só uma ameaça distante. Olhaí:
A
barata é a mais lídima das aquisições democráticas do mundo. Quase toda a casa
a possui. Aos pobres lhes cabe melhor quinhão desses insetos, muito embora o
Sr. Guinle não possa se queixar pois o Copacabana também as tem apesar de todo
o DDT. Pertencendo à família das BLATÍDEAS, muito conhecida nos buracos de
rodapés, cantos de estantes, fundos de arquivos e de gavetas, as baratas têm
hábitos próprios interessantíssimos com os quais me familiarizei nos meus longos
anos de pertinaz contato com arcanos e alfarrábios.
Para se lidar com baratas há quem acredite em
inseticidas e baraticidas. Como em tudo mais, acredito em psicologia. Para se
aplicar a psicologia é preciso um certo método e uma vasta disciplina. Vejamos.
Encontra-se a barata. Para se encontrar uma barata não é preciso muito gasto de
energia. Em geral ela nos procura. E mais em geral ainda ela vem ao meio de
nossos dedos quando pegamos aquela pilha de livros que estava embaixo da escada.
No momento em que sentimos a barata presa em nossos dedos um sentimento de
horror inaudito corre nossa espinha. Largamos livros, agitamo-nos furiosamente,
batemos no chão, nos móveis e nos livros com o primeiro pano ou jornal que se
nos depara, mas, a essa altura, a barata já estará longe, escondida numa das
trezentos e sessenta e cinco mil páginas dos oitocentos e setenta livros que
espalhamos no chão. Como encontrá-la? eis o problema. Esse problema, depois de
acalmados nossos nervos e esfregadas nossas mãos com sabão e bastante álcool, é
que procuramos resolver.
Existem, para se pegar uma barata, dois processos distintos. Um é chamar a
empregada e dizer: "Tem uma barata aí! Quero isso bem limpo!" e virar
covardemente as costas. Dessa atitude pode resultar que a barata atinja um
extraordinário grau de longevidade pois a empregada passará um pano nos livros
e jogará por cima deles um pouco de DDT, dando-se por satisfeita. A barata
também. E daqui há seis meses, quando você for pegar aquele velho exemplar de
Balzac, terá a desagradável surpresa de ver, à página 276, olhando-o com
aqueles olhos brejeiros e aquelas antenas irônicas que lhe são próprios, a
mesma barata que você tinha condenado à morte. Vocês fitar-se-ão demoradamente.
Ela continuará baloiçando as antenas. E você, depois de um segundo de inércia,
saltará para o ar, jogará o livro para o outro lado e berrará femininamente.
Pois eis que as baratas têm o extraordinário poder de nos afeminar a todos,
afirmativa essa que se aceitará sem contestação se atentar para o grande número
de baratas que há em nossos teatros.
Portanto não se deve virar as costas a uma barata, como fazem os elementos da
ribalta, mas sim enfrentá-la masculamente. Para isso precisamos, antes de mais
nada, saber se a barata é uma BLATÍDEA comum ou se é uma PERIPLANETA AMERICANA,
ou, em linguagem menos científica, uma dessas baratas que voam. Se é dessas
aconselho o leitor a desistir de qualquer pretensão máscula, arrumar as malas,
fechar as portas de sua casa e entrar para o Teatro.
Agora,
se é das outras, sempre há recursos:
1 — Pegue um Correio da Manhã bem dobrado, deixando à mostra o artigo de fundo.
Sacuda os livros e espere, trepado numa cadeira. Atente sobretudo para o estilo
de bater quando a barata surgir. Lembre-se: o estilo é o homem.
2 — Quando a barata surgir bata de uma vez. Não durma na pontaria. Ela
normalmente pára um pouquinho, para sondar o ambiente cá de fora e confrontá-lo
com a literatura em que vive metida. esse o momento de atacar.
3 — Trate de verificar se o inseto em que você está batendo é uma barata ou um
barato. Nunca se esqueça: o barato sai caro.
4 — Nunca aproxime e afaste o jornal para fazer pontaria. As baratas sabem
muito bem o que as espera quando sentem esse ventinho, quando você bater de
verdade ela já terá embarcado para a Europa.
5 — Não tenha pena de bater. Bata firme, forte, decididamente. É a vida dela ou
a sua. Se você não a matar terá que passar a existência inteira alimentando-a a
inseticida.
6 — Não se importe com as coisas que o cercam. Afinal de contas que são meia
dúzia de copos partidos, um tapete manchado, dois livros com as páginas
rasgadas e uma perna de cadeira quebrada se você conseguiu eliminar uma barata?
7 — Se falhar, só a paciência lhe dará outra oportunidade. A barata não lhe
dará outra tão cedo, enquanto permanecer em sua memória o trauma da pancada que
quase lhe tirava a vida. Não adianta você sacudir livro após livro porque se
recusará a aparecer. Agarrar-se-á às páginas e, se cair ao chão, correrá
rapidamente, escondendo-se por trás do guarda-roupa.
8 — Não se deixe levar pela vaidade. Às vezes você atinge uma barata de leve e
ela vira-se de barriga para o ar agitando as perninhas ininterruptamente, com a
expressão de quem está dando uma gargalhada, achando você engraçadíssimo. Isso
poderá lisonjeá-lo mas não a poupe por esse motivo.
9 — Às vezes elas tentam outro truque sentimental. Atingidas de leve elas vão
se arrastando tristemente, de vez em quando olhando para você com um olhar que
lhe dilacera o coração, como quem diz: "Seu malvado, viu o que você
fez?" Antes de começar a chorar bata até matar. Depois chore.
10 — De seis em seis meses faça um teste consigo próprio para ver se você está
mais desbaratador do que no semestre anterior. Se a resposta for negativa não
esmoreça. Continue lutando até que possa, como nós, cobrar caro pelas lições
administradas. E essa é nossa última recomendação: cobre sempre caro pelos seus
conselhos nesse setor. Não se barateie!