quinta-feira, 9 de maio de 2019

UM PÉ DESCALÇO


Miss Marple - a simpaticíssima personagem criada por Agatha Christie - resolvia os assassinatos mirabolantes imaginados pela autora graças a silogismos, associações de ideias e analogias que fazia dos crimes e criminosos com personagens e episódios de sua cidadezinha natal. Tenho percebido que adotei o mesmo procedimento em muitos dos textos que escrevi. Ou seja, a partir de algum caso ou lembrança antiga fiz minhas divagações rasteiras e banais sobre acontecimentos recentes. Hoje aconteceu a mesma coisa com uma lembrança de minha avó materna.

Como talvez se lembrem os 2,3 leitores deste blog, morei na casa de minha avó até me casar. Aos 24 anos. Quando estava com dezesseis, Dona Leta começou a apresentar sinais inesperados e até constrangedores de demência, uma demência crescente, tão mais assustadora quanto mais passava o tempo. Depois de falar mais palavrões que um Olavo de Carvalho, de dançar como uma adolescente, de destratar noras que não aceitava, morreu ao fim de seis anos de demência, em posição fetal, com reações de bebê recém-nascido. Mas, bem no início, quando ainda falava e misturava realidade com delírio, um dia chegou mancando perto de minha mãe, pois estava calçando chinelo apenas em um dos pés.

Minha mãe não achou nada engraçado e perguntou onde estava o outro pé. Com um ar meio aparvalhado, minha avó disse que não sabia. Procura daqui, procura dali, debaixo da cama, atrás da porta, dentro do guarda-roupa e nada de chinelo. Outro par deve ter sido providenciado até que se achasse o "fujão". Que foi encontrado ainda no mesmo dia, quando minha mãe resolveu reabastecer a lata de biscoitos que ficava ao lado da cabeceira de minha avó. Era lá que ele estava, na companhia dos biscoitos ainda não comidos. Todos riram com isso, provavelmente comentando que "Mãe está caducando". E essa é a imagem que me veio à mente: o pé descalço de minha avó.

Ultimamente, tenho visto, lido ou ouvido tantas barbaridades circulando pelas redes sociais ou nos noticiários do rádio e da TV, que acabo ficando triste, surpreso, irritado, aterrorizado ou acabrunhado. O radicalismo, o ódio e o preconceito estão atingindo níveis nunca sonhados por mim. E o pior é que vejo isso partindo de pessoas que conheço há muito tempo: primos, cunhados, amigos, vizinhos. Como cantou João Bosco, "meu companheiro está armado até os dentes". Pessoas cordialíssimas, simpaticíssimas, gentilíssimas. Mas, na prática, gente que sonha com moinhos inexistentes, que acha normal, louvável e até desejável andar "só com um pé calçado", seja ele o esquerdo ou o direito. 

Não estão senis, não são dementes, mas, graças à sua visão insuspeitadamente radical, andam "mancando", pois se recusam a aceitar que o normal, o desejável é o equilíbrio, a moderação, a ponderação. E, pior, talvez para convencer-se de que estão certos divulgam notícias e imagens falsas, ridicularizam tudo o que não está de acordo com sua limitada visão de mundo. E defendem o indefensável, elogiam o condenável e aplaudem o deplorável. No meio dessa gente minha avó não poderia se sentir mais à vontade. Mesmo guardando um pé de chinelo na lata de biscoitos.

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