terça-feira, 1 de março de 2016

PNEU FURADO

Minha mulher às vezes reclama que eu tenho andado muito nervoso, impaciente e isso me deixa sem graça, porque eu adoro essa menina. Mas ela tem razão, pois de uns tempos para cá eu realmente fiquei sem paciência para um monte de coisas, situações e pessoas.

Burrice e ignorância, por exemplo, destroem meu saco. Mau humor (dos outros!), presunção, tudo isso azeda meu fígado. Aquecimento global, fundamentalistas religiosos, extremistas de qualquer tipo, políticos brasileiros e gente muito "honesta" talham meu sangue. Ou seja, quase tudo que eu vejo, sinto e escuto hoje.

Tentando entender essa mudança de mister simpatia (eu já fui um!) para ogro, lembrei-me de um pneu furado (eu estou sóbrio!). Muitos anos atrás, quando os pneus do meu carro usavam câmara de ar, era comum ir a alguma borracharia para consertar um pneu que tinha furado, tão logo o período chuvoso começava. Intrigado com aquilo, perguntei ao borracheiro se isso era apenas coincidência, neurose minha ou realidade. Depois de dizer que era mesmo verdade, explicou-me o motivo. 

Segundo ele, preguinhos, pontas de ferro, pedaços de arame e todo tipo de pequenos objetos que conseguem atravessar o pneu e furar a câmara de ar, ficam normalmente próximos ao meio-fio, ocultos por terra, lixo, capim, poeira do asfalto e todo tipo de material que se acumula ao longo do ano nas ruas e avenidas. Como a varrição nem sempre é "uma brastemp", eles ficam por ali. Quando começa a chover e a água a escoar pelas ruas em direção aos bueiros e bocas de lobo, esses pequenos ETs podem ser arrastados para o meio da pista ou ficar expostos junto às calçadas e aí, ssssssss. Achei a explicação super plausível e o caso morreu por aí.

Lembrando-me dessa explanação, fiquei pensando que o motivo da minha atual irritabilidade guarda alguma semelhança com isso. Com o passar do tempo, o avanço da idade foi aos poucos removendo a cordialidade interesseira, lavando a gentileza artificial, levando para o ralo a simpatia pré-fabricada. 

Com isso, as arestas, quinas vivas, superfícies cortantes e todo tipo de aspereza e pontas afiadas que haviam sido cuidadosamente escondidas passaram a ficar expostas e cumprindo o que se espera dessa gama de "qualidades": rasgando, ferindo, irritando e provocando dor em quem se aproxima distraído.

Se não for essa a explicação, só pode ser síndrome de abstinência de leite com Toddy ou a chegada silenciosa do "alemão". 

4 comentários:

  1. Perfeito, JB. Só me atreveria dizer que não é o tempo e o desfiar dos anos o causador do estrago, mas o uso que nem sempre é mau. Em alguns casos, é o desgaste de um milhão de vidas numa só. E não se preocupe muito não, um par de margaridas roubadas do vizinho e um bom beijo nessa moleca por hoje resolvem . ;)
    "J"

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    1. Na verdade, não é ela o alvo de minha impaciência. Nem ela nem nossos filhos. O que me incomoda é o resto. Apesar de ninguém ter se manifestado sobre um texto de ficção que escrevi recentemente, existe nele uma frase que define bem essa sensação: "parece que a Vida não cabe dentro de mim". Aliás, foi essa frase que motivou a criação do tal texto.

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  2. O pior é que quem não tem culpa, leva ferro. Não dói sua consciência?

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    1. A primeira tentação é responder “sim” ou ”não”. Mas surge outra pergunta: a sinceridade seria causa de remorso? Por outro lado, essa minha falsidade nunca prejudicou ninguém a não ser eu mesmo, pois virei um camaleão. A (às vezes) falsa atenção que sempre dediquei aos velhinhos (hoje já sou um eles), as brincadeiras e sorrisos só os deixaram felizes. Pensando bem, eu sempre dei atenção e fui cortês com todo mundo ( mesmo que não estivesse nem ouvindo o que diziam para mim). E atenção é o que as pessoas mais desejam. Então, a resposta é “não”. Para ser sincero, ela poderia ter sido dada no início da resposta.

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